A TEIA DA ARANHA
Personagens
Jarbas- mordomo-
Vera -copeira-
Tonha- copeira
Alaor- empresário, aniversariante, marido de Betina, amante de Serena
Betina- esposa de Alaor, irmã de Marcos
Cintia – irmã de Alaor
Alex- funcionário na empresa de Alaor ex marido de Serena
Serena – ex esposa de Alex, amante de Alaor.
Marcos- funcionário na empresa de Alaor. Irmão de Betina.
Noemia – prima de Alaor.
Delegado-
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Nota do autor= Cada parágrafo é a fala de um personagem, o desafio é saber quem fala e no final, descobrir quem é o assassino.
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Por acaso olho para cima e vejo uma teia de aranha no forro do vestíbulo. Fico estarrecido. Se alguém ver vai dizer que os criados são desleixados e incompetentes. Essa semana mandei as criadas limparem a casa do piso ao teto para a festa de aniversário do patrão. Eu fiz a supervisão e achei tudo perfeito. Não devo culpa-las, a aranha pode ter se instalado ali durante a noite. Não posso mandar limpar agora, sem chamar atenção. O jeito é rezar para que ninguém veja aquilo.
Trabalhar nessa casa não é fácil, ainda mais hoje que é a festa de aniversário do patrão. Não sei se ele faz quarenta e seis ou quarenta e nove anos. Trabalho há quase doze anos para a família e nunca ultrapassei a linha que separa patrão e empregado por decisão própria. Só falo quando autorizado, inquirido. Já me disseram que eu sou parte da família, mas sei bem que é apenas no sentido figurado. Dizem apenas para serem gentis. Sou um profissional que não se mete na vida alheia. Me inspirei em James Stevens, de Darlington Hall. Vejo pelo vidro da porta que está chegando um carro. O motorista estaciona, desce e corre quando começa a chover. Abro a porta antes que ele chegue na entrada. É o doutor Victor, gerente na empresa da família. O Doutor Alaor vem recebê-lo. Eles trocam um forte aperto de mão. Victor pega algo no bolso do paletó e Victor dá a ele uma caixinha de veludo azul que o patrão abre. É um relógio Rolex. Um sorri para o outro e tenho a impressão que eles têm mais do que simples amizade. Victor mexe no anel em seu dedo— enquanto Alaor coça a palma da mão. Eles seguem para o salão, conversando animadamente.
Minha bexiga está cheia, preciso ir ao banheiro antes que eu mije nas calças. A idade avança e os nervos ficam fracos. Não tem como segurar por muito tempo. Vou rápido e furtivo, faço o serviço, lavo as mãos, saio, dou uma volta por entre os convidados para ver se está tudo nos conformes. Volto à posição de estátua ao lado da porta.
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Da copa, ouço eles cantarem o Parabéns a Você. Enquanto encho as taças com champanhe, penso se devo ou não, dar o presente para o patrão. É uma camisa que me custou o salário de um mês. Agora, pensando bem, não vou dar nada, não sou obrigada, além do mais, o patrão é rico, tem centenas de camisas. Uma camisa a mais ou a menos, não vai fazer falta. Vou dar para o meu namorado, que deve estar precisando. Vou para o salão segurando firme a bandeja, a cabeça erguida, o braço para trás, e um sorriso falso no rosto bem cuidado. Não conheço a maioria dos convidados, são parentes, amigos, funcionários da empresa e colaboradores, como dizem. Sou nova aqui e não conheço todos. Parecem gente boa, se não são, fingem muito bem. Aliás, dá a impressão de que cada um esconde um segredo. Dou um giro pelo salão e a bandeja fica vazia. Retorno à copa, encho as taças e volto para o salão. Não tem bolo, não tem doce, apenas salgadinhos, chips, como dizem. A Tonha é quem serve os salgados. Festa de rico é outro nível.
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Entrego meu presente para Alaor, um livro da Agatha Christie, A Mansão Hollow e imagino ele num caixão de madeira nobre, lustroso, laqueado com alças douradas. No cemitério, todos de preto e óculos escuros, a viúva, enxugando os olhos, fingindo que chora. Com certeza sua morte será um alívio para algumas pessoas, principalmente para mim. Betina dará graças a Deus por se livrar do marido. Alaor agradece, dá um aperto de mão frouxo e diz que vai colocar na caixa. Não temos assunto para conversar. Ele se afasta. Afrouxo minha gravata e me arrependo de ter vindo de terno nessa festa fajuta.
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Aproveito que a Vera passa por mim e pego uma taça. Bebo o champanhe e devolvo a taça vazia à bandeja antes que a empregada se afaste. A vontade que tenho é ficar bêbada, mas preciso estar atenta. Preciso descobrir quem é o amante da Betina. Deixei minha bolsa não sei onde. Vejo Alex desconfortável mexendo naquela gravata horrível. Eu soube que ele se divorciou. Parece que isso é moda agora. Deixei meus cigarros na bolsa. Acho que ficou no quarto da Cíntia. Preciso filar um cigarro de alguém.
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Há horas que estou tentando falar com o Wladimir, mas não consigo. Ele deve ter desligado o celular. Pilantra! Ficou de vir à festa e não veio. Noêmia deixou a bolsa dela aqui. Tenho curiosidade para saber o que ela carrega de tão precioso. Pego a bolsa pra olhar. Fico espantada. Além das bugigangas que toda mulher carrega, tem um revólver! É uma daquelas armas pequenas para carregar na bolsa, ou no bolso. Já tive uma dessas. É pequena, mas o tiro bem dado é fatal, sem dúvidas. Lembro que Noêmia foi assaltada semana retrasada. Agora ela anda armada. Será que ela tem coragem de atirar em alguém? Mesmo sendo bandido?
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Alex me olha, mas não tem coragem de vir falar comigo. Eu o ignoro. Aproveito que Alaor está sozinho e me dirijo a ele com o meu presente, uma carteira de couro Louis Vuitton. Alaor tira do embrulho, olha, sorri, agradece, age como se a gente não se conhecesse. Pergunta o que eu estou bebendo. Respondo que é Martini. Sei que ele adora Martini. Pega o copo e bebe um longo gole. Me devolve o copo. Olha para minha mão e vê que eu estou sem a aliança, mas não diz nada e se afasta. Canalha! Pilantra!
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Vejo Cintia pendurar a bolsa no encosto de uma cadeira. Parece que andou chorando. Ela acena para Serena, cumprimentando-a. As duas fingem ser amigas. Cintia é mais amiga da Noêmia do que dela. Preciso de mais um drinque.
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Chego atrasado. Decidi vir na última hora. Minha irmã, Betina, é minha tábua de salvação. Ela me prometeu emprestar dinheiro para tapar o rombo que eu causei na empresa. Se Alaor descobrir o desfalque antes de eu tapar o buraco, estou ralado. Tiro a capa de chuva molhada e entrego para o Jarbas. Levo para Alaor o presente que comprei para ele, um quadro de Zdzislaw Beksinski, para que ele tenha pesadelos à noite. Vou dar um abraço, fingir um afeto que não existe.
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Resolvo tirar a gravata e colocar no bolso do paletó. Bebo mais uma taça de champanhe. Vejo que Alaor está irritado, ele e Betina estão discutindo, apesar de fingirem que não. Ela oferece uma taça de champanha para ele, mas Alaor recusa. Sussurram um para o outro. Agora Alaor e Betina disfarçam, sorriem para os convidados como se tudo estivesse correndo bem. Alaor se dirige para a toalete masculina.
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Encontro minha bolsa no encosto de uma cadeira. Meto a mão dentro, pego o maço de cigarros e acendo um. Alaor não aceita o divórcio. Aconselhei Betina a dizer que ela não quer mais viver com ele. Que gosta de outro homem. Ela não aceitou a ideia. Parece mesmo que ela tem um amante! Vi os dois discutindo. Será que ela falou? Logo hoje no aniversário do Alaor? Alaor se afasta, Betina fica no mesmo lugar, indecisa. Olho para Marcos que chega, ele tira a capa de chuva e entrega para um dos criados na porta. Quando volto a olhar para Betina, ela não está mais lá.
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As luzes se apagaram. Há um pequeno tumulto no salão. Alex tranquiliza a todos, pede para que fiquem em seus lugares e diz que eu vou providenciar a luz. Ele não se dirige a mim, mas sabe que ao ouvi-lo, farei o que diz porque sou competente. Não temos lanternas, lampiões, nem mesmo velas. Nunca imaginei uma situação dessas. Falha minha. A única coisa que posso fazer é examinar os disjuntores para ver se não desligaram por causa da tempestade. Sigo tateando a parede para o corredor. Chego a um ponto em que está claro, iluminado pela claridade pálida das luzes que vem de fora e a dos relâmpagos. Chego ao fim do corredor e me surpreendo com o quadro com a pintura de Caravaggio no chão, encostado na parede. Ouço um estampido, mas não sei de onde vem. Soam passos apressados que se afastam. Olho para trás, mas mais adiante a escuridão é total. Abro a tampa da caixa de força. Os disjuntores estão desligados. Volto a ligar. As luzes se acendem. Fecho a tampa e coloco o quadro no lugar.
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As luzes se apagam. Soam exclamações. Faltou energia, talvez por causa da tempestade. Permaneço de pé no mesmo lugar, segurando a bandeja vazia. Não enxergo nada. As pessoas murmuram, outras dão risadas. No salão a escuridão é total, mas vejo claridade no corredor. A luz deve vir de fora. Alguém passa roçando por mim. Sinto o cheiro de um perfume. É a Cintia que usa. Onde será que ela vai? Vejo a claridade dos relâmpagos atrás das cortinas. Uma voz se eleva e avisa que o Jarbas foi ver os disjuntores, que é para todos ficarem no mesmo lugar, a luz já vai voltar. Ouço um estalo. Parece o som de um tiro. As vozes se calam. Alguém tropeça numa cadeira ao meu lado. Não vejo nada. Fico parada. Espero. As luzes voltam, o salão se ilumina, as pessoas soltam exclamações de alívio, mas voltam a se calar quando um grito estremece a casa. Betina aparece transtornada com as mãos sujas de sangue. Ela não consegue falar, faz gestos para a toalete. Coloco a bandeja sobre a mesa e penso em ajudá-la, mas me contenho, melhor não, não tenho intimidade com ela. Alex e Marcos correm para o banheiro. Cintia vai atrás. Serena ampara Betina. Alex volta tenso, assustado, diz que Alaor está morto, que alguém deu um tiro nele. Cintia retorna, também está abalada. Diz que a arma que está no chão pertence a Noêmia e a acusa de ter matado o irmão dela. Todos olham para Noêmia. Ela fica assustada, mas não diz nada. Alguém fala que a Polícia está a caminho. Me sento numa cadeira. Vai ser uma longa noite.
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Logo que chego na delegacia, começo a examinar os rascunhos que fiz dos depoimentos das testemunhas do caso Alaor Cardinali Bonetti. Apesar da arma do crime pertencer a Noêmia, não se tem certeza de que ela matou Alaor. A pistola derringer 22 estava limpa, sem digitais. Se não foi Noêmia quem atirou, o verdadeiro atirador limpou a arma para que ela não fosse incriminada? Pode ser, ou pode ter sido a própria Noêmia, mas por que deixou a arma na cena do crime? Talvez tenha escondido a pistola no vestido, segurando com a mão, para que ninguém no salão visse e depois que atirou, simplesmente deixou a pistola cair no chão. É uma possibilidade.
Algumas pessoas têm motivos para querer ver Alaor morto. Marcos, pelo desprezo que Alaor tinha por ele e o desfalque na empresa, que só veio à tona agora. Cintia pelo suicídio do marido, depois que Alaor o acusou de incompetente. Alex, pelas transações fraudulentas, que o próprio Alaor praticou e colocou a culpa nele. Não vejo motivos para Serena, ex mulher de Alex, querer matar Alaor. Noêmia disse que esqueceu a bolsa no quarto de Cintia. Cintia confessou que deixou a bolsa na cadeira de Noêmia. As duas pessoas que sabiam que havia uma arma na bolsa de Noêmia, era ela mesma, e Cintia. Talvez alguém mais sabia que Noêmia andava armada, que tinha porte de arma de fogo em razão daquele assalto traumático que sofreu. Fazer os outros saberem é um modo de criar uma barreira de proteção e se mostrar intimidadora.
Chegou uma ordem do juiz para soltar Noêmia, ela vai responder ao processo em liberdade. Ou até que eu encontre outras evidências acusatórias. As provas que tenho são frágeis. Preciso saber exatamente onde estavam os suspeitos quando as luzes se apagaram. Se apagaram por causa da tempestade, ou porque alguém desligou os disjuntores? Será que o criminoso tinha um cúmplice?
Chega agora o resultado da autópsia. Pego o documento e leio. Começa com os termos protocolares, data, hora, identificação do cadáver, etc. etc. O que me interessa está no fim da página: Alaor recebeu um tiro no flanco direito, a bala passou a 8 cm do fígado, fixou-se na gordura do ventre. O projétil não atingiu nenhum órgão vital. Não foi o disparo que matou Alaor. Há resquícios de uma substância venenosa no organismo da vítima. Não no estômago, mas nas artérias
Veneno de uso tópico que alguém, de alguma forma, injetou na pele do Alaor.
Conclusão: Alaor morreu envenenado e não pelo tiro. Quem verdadeiramente matou Alaor? Preciso reler os depoimentos desse caso que parece uma teia de aranha. Preciso encontrar a aranha.
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Nota do autor= Se você, leitor, não conseguiu descobrir o assassino, recomendo ler novamente, as pistas estão no laudo do IML e nas falas dos personagens.