Autônomo
Pouquíssimas pessoas sabem, pois os arquivos ainda não vieram a público, mas a Ditadura Militar brasileira (1964-1985) contratava detetives particulares para seguir e espionar suspeitos de subversão. Um dos relatos mais intrigantes, envolvendo um detetive particular e um suposto militante de esquerda, ocorreu em Salvador, Bahia, em 1970.
Tudo começou com Verbo, o detetive particular. Ele estava em seu escritório, quando chegou um homem em sua sala. Disse se chamar João e estava ali a serviço do governo brasileiro.
A tarefa não era nada complicada. João queria que Verbo seguisse e espionasse um homem chamado Deusdete. Teria que observar com extrema atenção a rotina do seu alvo.
O curioso é que Verbo nem respondeu se aceitaria o trabalho. João, no entanto, já o conhecia. A ditadura sabia tudo sobre Verbo e suas atividades como detetive particular. Sabia qual era o perfil de Verbo. Sabia que ele era um pragmático, alguém que nunca julga o cliente, ainda que o cliente seja um governo autoritário. “Trabalho é trabalho”, ele costumava dizer. Portanto, João sabia que Verbo iria aceitar o caso sem nem precisar perguntar.
O governo brasileiro bancaria tudo. O aluguel, a comida, as roupas, os instrumentos de detetive. Verbo passaria a ocupar o apartamento que foi escolhido de forma estratégica: em frente ao apartamento onde Deusdete mora. Se este saísse, Verbo deveria ir atrás sem que ele perceba. No fim do dia, depois de observar o cotidiano de Deusdete, o detetive iria escrever um relatório e enviar ao governo.
João não disse o que Verbo deveria encontrar de insólito ou ilegal na vida de Deusdete. Todavia, o que a ditadura procurava era óbvio.
“Preciso que comece hoje à noite”, disse João, enquanto entrega chaves para Verbo. “O apartamento já está à sua espera”. Uma das chaves abria um carro. Acostumado com clientes sovinas, Verbo não esperava receber tantos recursos para cumprir uma tarefa. É o governo brasileiro. Os caras gostam de gastar para encerrar incômodos políticos.
Verbo vai ao apartamento reservado para ele. Ficava no quinto andar de um edifício localizado no Centro Histórico. O detetive notou que tudo estava detalhadamente do jeito que ele gosta: o local da cama, o local da escrivaninha, os livros que ele curtia, onde ficam as ferramentas, a pistola em cima da mesa etc. O apartamento foi montado para ele. Isso o surpreendia de forma positiva, por um lado. Mas por outro, isso significava também que o governo sabia tudo sobre ele, até seus gostos mais banais.
Verbo sai do prédio e visita o outro edifício em frente. É onde mora Deusdete. Na recepção, descobre qual o andar onde o alvo mora. Volta ao seu apartamento. Começa a trabalhar. A janela de Deusdete era a quarta, da esquerda para a direita. O andar era o quinto.
Durante o dia inteiro, Deusdete não fez nada de mais. Escutava rádio enquanto olhava para uma página branca inserida numa máquina de escrever. Talvez ele quisesse ser escritor profissional. Mas mesmo diante da folha em branco por horas, não digitava nada. Depois, no fim da tarde, ele saiu do apartamento. Verbo viu ele sair e o seguiu pelo Centro Histórico de Salvador.
Verbo o seguiu pelas ruas por horas. Ele não fazia nada além de andar. Não havia nada suspeito nele, nada incomum. Será que sabia que estava sendo seguido e por isso fingia ter uma rotina normal? Não tinha como saber a resposta para essa pergunta. Mas Verbo tinha que fazer o relatório.
E foi assim durante meses.
Deusdete seguia rigidamente a rotina. Durante seis meses, ele fez a mesma coisa. Ou seja, os relatórios de Verbo eram idênticos entre si. Contudo, foi justamente esse férreo roteiro de hábitos que causou estranheza. Não é a rotina incomum que sugere anormalidade, é a rotina normal demais que indica algo insólito.
João fez esse raciocínio e disse a Verbo que ele ficaria espiando Deusdete por mais uma semana e que os agentes da ditadura iriam prender o alvo a qualquer momento. Porém, foi na segunda-feira dessa última semana que a rotina foi quebrada.
Depois de cinquenta minutos olhando a folha em branco, Deusdete enfim escreveu alguma coisa. Verbo ajustou os binóculos para tentar enxergar o que ele escreveu, mas a ferramenta não possuía a capacidade de ir mais longe. De repente, surgiu em Verbo a vontade de invadir o apartamento só para ver o que estava escrito naquela página. Uma estranha ansiedade tomou conta dele. Nunca havia se sentido assim antes. Desta vez, estava desejando que Deusdete saísse de casa o mais rápido possível. Não ia segui-lo. Seu foco mudou para o que estava naquela folha.
Cerca de uma hora depois, Deusdete saiu para dar sua habitual caminhada. Verbo nem prestou muita atenção. Desceu apressado pela escadaria do edifício. Atravessou a pista, foi até o prédio em frente, subiu as escadas e foi ao apartamento do seu alvo. Estranhamente, ele abriu a porta sem dificuldades.
Em cima da escrivaninha, o papel na máquina. Entretanto, antes que pudesse olhar, alguém apareceu atrás dele. Era Deusdete. Verbo instintivamente puxou sua pistola e apontou.
“Calma”, disse Deusdete, que levantou uma das mãos e usou a outra para fechar a porta.
“Foi uma armadilha?”, perguntou Verbo, visivelmente tenso.
Deusdete, com o cenho calmo, respondeu que não. Verbo, suando e gaguejando, disse que não acredita no que ouviu. "Eu estava preparado", disse o detetive. "Acho que você não contava com isso".
“Olhe o espelho”, disse Deusdete, apontando para o objeto em cima da estante.
“Por quê?"
Deusdete insistiu para que Verbo se olhasse no espelho.
“Só me interessa uma coisa”, afirmou Verbo. Após dizer isso, ele foi até a mesa e pegou a folha na máquina para ver o que estava escrito. Percebeu logo que era uma espécie de adaptação do Evangelho de João, capítulo 1, versículo 1:
“No princípio era o Verbo
E o Verbo era Deusdete.”
Então, ocorreu o momento em que Verbo percebeu que era personagem. Um escritor com o nome Deusdete inventou um detetive ficcional chamado Verbo, que seria uma versão melhorada de seu autor. Mas o personagem ganhou autonomia e assumiu o lugar de quem o criou.
Ao olhar para o quarto, viu que na verdade estava sozinho. Olhou-se no espelho e tomou um susto: possuía a aparência de Deusdete. Na porta, alguém bate violentamente.
“Já estou saindo”, disse Deusdete/Verbo, que deixou a pistola pronta para ser disparada.