Salvador, Cidade de Vidro

Assim como o personagem de “Cidade de Vidro”, história de Paul Auster, o escritor começou a ser perturbado pelo telefone celular que tocava em altas horas da noite. Na primeira vez que ele atendeu, a voz do outro lado da linha disse coisas enigmáticas e sem sentido.

“Você é o autor da crônica?”

“Qual? Escrevi várias.”

“Esta.”

“Não entendi.”

A voz masculina misteriosa explicou que aquela conversa entre eles era criação de um cronista, que era o próprio escritor. Depois dizer essa suposta maluquice, a ligação caiu.

No outro dia, o mesmo enredo: telefone celular tocando de madrugada. Desta vez, a mesma voz misteriosa do outro lado começou a lembrar de um crime ocorrido há dezoito anos.

“Não me lembro desse caso”, afirmou o escritor.

“Você estudava no Góes Calmon.”

Pego emprestado a metáfora de Belchior, na música “Divina comédia humana”, para dizer que a lembrança do crime voltou à memória do escritor “como um sol no quintal”. A reminiscência mostra um colega da escola lhe contando que “um homem foi morto por causa de um passarinho”.

“Mataram o cara por causa de um pássaro?” perguntou o escritor.

“Exato!”

Nesse momento, o escritor ficou perplexo. Um cara ligou para ele de madrugada. E para lembrar de um crime cometido há 18 anos! Aquele papo só poderia ser criação literária, ele pensou ironicamente.

“O que eu tenho a ver com isso?”, perguntou o escritor.

“O cara nunca foi pego, sabia?”

Na percepção do escritor, a conversa estava ganhando tons bizarros.

“Eu sinto muito”, disse o escritor. “Mas por que você está me falando isso? E essa hora? Por que não liga mais cedo?”

“Eu sei quem matou.”

O escritor aproveitou para fazer piada.

“Agora entendi. Você está tentando ligar para a polícia há dois dias. Mas digita o número errado. Anota aí: 1-9…”

“Não. Eu não errei. Procurar você é mais importante que ligar para a polícia”.

De novo, a voz começou a falar que aquela conversa entre eles não existia, que era criação de um cronista. E o escritor era o próprio cronista transformado em personagem. Desta vez, o escritor foi quem desligou o telefone. E cuidou de bloquear o número, para que o suposto troteiro nunca mais ligasse.

No entanto, desde então, sua mente começou produzir reminiscências cada vez mais esquisitas, que mostravam que o assassino… era ele. Sim, ele começou a lembrar que matou uma pessoa por causa de uma ave. A cada dia, as lembranças ficavam mais vívidas.

Procurou psicólogo, psiquiatra e até gente do espiritismo, pois ele cogitou a hipótese de isso ser uma lembrança de uma vida passada. Porém, ninguém conseguiu ajudar. Havia apenas uma pessoa. O cara do suposto trote.

Primeiro, o escritor desbloqueou o número e esperou que a misteriosa pessoa ligasse. Passaram-se vários dias e o telefonema esperado não aconteceu. O escritor lembrou do que a voz no telefone disse: “esta crônica que está acontecendo agora é criação sua”. Como a lembrança de um assassinato começou a aparecer magicamente na sua cabeça, não duvidava mais de nada. Talvez ele fosse uma criação de si mesmo.

Foi à biblioteca, procurou livros teóricos de literatura. Leu sobre metaficção, em que os personagens ficam cientes de que são ficcionais. O escritor estava quase convencido de que poderia ser mesmo um personagem.

Sua vida desceu “ladeira abaixo” depois disso. Adquiriu uma espécie de sofrimento existencial, ficou deprimido. Em uma determinada noite, atormentado por pensamentos que o culpavam de assassinato e que insistiam em lhe dizer “você não existe”, o escritor decidiu ter a iniciativa para telefonar para o homem que deu início a toda essa desgraça.

“Alô!”, disse a voz.

“Por que lembro de coisas que não aconteceram?”

A voz explicou que o autor da crônica, ele mesmo, decidiu escrever uma história policial em que ele é um assassino procurado por um detetive particular. O autor da crônica decidiu que o escritor é um bandido procurado, segundo a voz. Ou seja, o autor resolveu incluir esse detalhe na crônica.

“O que eu faço?!”, perguntou o escritor aflito.

“Não sei. Mas se você agora é um bandido, deve ter alguma arma por aí.”

Ligação caiu. Todavia, o escritor seguiu o conselho. Encontrou a arma embaixo do sofá depois de horas procurando. Agora só iria esperar o investigador chegar até ele.

Dias se passaram. Isolamento, tormento existencial, tristeza profunda. De repente, euforia. Era alguém na porta.

“Sr. *****, sou da Agência de Detetives, gostaria de ter uma palavra contigo.”

“Vou abrir a porta para você”, disse o escritor, pronto para atirar.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 18/06/2024
Reeditado em 19/06/2024
Código do texto: T8088424
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