O olheiro
Quem mora em bairros perigosos sabe o quão arrepiante é escutar a frase “não pode ser coincidência”. Dois ou mais eventos são coincidentes entre si quando não há nenhuma (aparente) relação causal entre eles. Então, se um acontecimento que já precedeu uma situação de perigo imediato ocorre de novo, não haveria razão para ficar em alerta caso seja uma mera coincidência. Assumindo que não há nenhuma relação causal entre uma coisa e outra, não existiria motivo para acreditar que a situação perigosa vai ocorrer de novo. Haveria a possibilidade, mas não a certeza.
Por outro lado, se não for coincidência…
Certo dia, precisei lidar com um evento semelhante no bairro violento onde moro. Creio que servirá como exemplo concreto para o que eu quero dizer: se você escutar a frase “não pode ser coincidência”, procure um lugar para se proteger! Agora, vamos aos fatos.
Comecei a frequentar um mercadinho que se localiza um pouco distante da minha casa. Por dois motivos: 1) eu ia andando até o estabelecimento, e eu gosto de andar; 2) estava afim de uma das moças que ficam nos caixas.
Chego ao mercado e encontro Tom, uma espécie de gerente. Homem com fama de “ser atento demais”. Era um rapaz moreno, mãos cheias de calo, possuía bigode (alguns o chamavam de “bigodinho”) e usava boné, uma informalidade que era característica do mercadinho. Também possuía a extroversão como um elemento da sua personalidade. Era isso que me fazia temê-lo. Não que ele fosse alguma ameaça violenta para mim. Eu apenas desconfiava que ele era um rival na disputa pelo coração de Marília, a caixa que eu estava afim.
Ela era linda. Cabelo encaracolado, olhos castanhos claros que pareciam mel. Adorava os raros sorrisos dela. Tinha uma imagem que aparentava ser adepta do estoicismo. Fizemos alguns poucos contatos visuais. No entanto, ela me tratava como qualquer outro cliente, não havia nada de especial. Essa ambiguidade acaba comigo. Havia momentos de esperança e de pessimismo quando eu tentava conjecturar se ela tinha bons sentimentos por mim ou não.
Marília era sobrinho do dono do mercado, Flávio. Ele era conhecido pelas posições “preto ou branco” e pelo perfeccionismo. Pela sua personalidade, poderíamos facilmente deduzir: desde que seu empreendimento se estabeleceu ali, nunca havia sido assaltado. Sabe-se que antes de mudar para meu bairro, o seu mercadinho havia passado por outros dois bairros. Bastou apenas um assalto em cada um desses dois bairros para fazer Flávio decidir mudar de local. Sua esposa tentou convencer a mudar de ideia nessas duas vezes. Ela não teve sucesso. Vou ser honesto com o leitor, o breve diálogo abaixo é pura especulação minha:
- Não precisa mudar. Reforce a segurança. - disse a esposa.
- Você não entende. - disse Flávio
De acordo com Flávio, se ele foi assaltado no local, então esse local não presta mais. Não há segurança alguma. Ele deseja um bairro onde seu mercado nunca, em hipótese alguma, sofra nenhum tipo de violência.
Depois da breve biografia dos principais envolvidos, voltemos à minha chegada ao mercado. Fui à seção dos cup noodles, peguei um de sabor yakisoba e fui pagar. Havia duas caixas atendendo e é claro que eu ia dar meu jeito para ser atendido por Marília. Sim, era provável que ela fosse me tratar como outro cliente. Mas dessa vez eu estava determinado a quebrar o script e chamar ela para tomar alguma coisa.
O plano foi interrompido pelo que aconteceria em seguida.
Quando eu estava próximo de ser atendido, notei que Tom estava na entrada do mercado com um ar de preocupado. A princípio, não dei muita importância. Então, ele chamou Flávio.
- Fala, Tom! O que há? - perguntou Flávio.
- Olha aquele cara ali. - disse Tom, que apontou para a direção de uma igreja católica próxima ao mercado. No local indicado por Tom, havia um rapaz moreno, de boné, corrente de ouro e chinelos. Ele estava encostado na parede.
Os dois notaram que o homem apontado estava na mesma festa que eles, há duas semanas. E que nessa mesma festa houve arrastão pouco depois de ele aparecer.
O estarrecedor foi Tom informar que, logo depois desse “arrastão”, uma das pessoas que foram roubadas havia dito que aquele mesmo rapaz, usando as mesmas roupas, era estranho, pois ele também estava presente pouco antes de outros dois arrastões anteriores ocorrerem - em outros locais. Ele estava “marcado”. Algumas pessoas queriam pegá-lo, porque desconfiavam que ele seria um olheiro dos bandidos. Ou seja, ele observa bem o local onde ocorrerá o próximo “arrastão”. Os criminosos são cautelosos. O Olheiro nota se há policiais por perto, por exemplo. Ele precisa ter um capacidade insólita de observação para perceber se há policiais à paisana, entre outros perigos.
- Não pode ser coincidência! - disse Flávio.
- Calma, chefe.
- Desce a porta de ferro!
- Mas Flávio, não há como…
- Desce, desce, desce!
Tom obedece.
- Espera, deixa eu sair… - disse, um cliente.
- Você quer ser roubado?! - perguntou Flávio, com um tom que sugeria medo, perplexidade e raiva.
Eu também estava assustado. Nem consegui colocar em prática meu plano de falar com Marília. Aliás, olhei para ela e ela parecia calma.
Flávio começou a discutir com clientes que queriam sair.
- Não sejam burros! - berrou Flávio.
- Me deixa sair, imbecil! - disse um outro clientes, mais exaltado.
Então, todos ouvimos barulhos de tiros e gritaria do lado de fora. O cliente nervoso ficou quieto e seu cenho expressava medo. A outra atendente começou a chorar. Mas Marília demonstrava uma calma absurda. Ela até confortou a colega.
Depois de uns trinta minutos acuados dentro do mercado, Tom levantou a porta de ferro e pudemos todos sair. A rua se assemelhava a um cenário pós-guerra. Mesas, cadeiras, coisas no meio da pista de carros. Gente chorando, gente sangrando, gente passando mal. Eu estava com medo e fui direto para casa.
Fiquei dias sem sair.
Refletia se o tal olheiro era olheiro mesmo ou se foi uma coincidência infeliz. Vai ver o cara era tão azarado que estava sempre por perto antes da onda de roubos acontecer. É algo insólito, improvável, mas não impossível.
Refleti também a respeito das consequências do ocorrido sobre o mercado e sobre as pessoas envolvidas. Até que um dia decidi sair do campo da especulação. Fui até o mercado. Eu queria rever Marília. Todavia, encontrei o estabelecimento fechado. Questionei o dono de um bar próximo - uma das vítimas do arrastão - sobre o que teria acontecido para o mercadinho estar fechado. Ele respondeu que Flávio sofreu um colapso mental e demitiu todo mundo.
Por ser um homem que toma decisões a partir de um férreo código moral “preto e branco”, ele estava diante de uma situação que transcende tal código. Ele mudava o mercado de local sempre que sofria um assalto. Segundo Flávio, ou um lugar é totalmente pacífico (preto) ou totalmente perigoso (branco). O “arrastão” ocorrido seria uma área cinzenta, digamos assim. O mercado esteve perto de sofrer um assalto, mas isso não chegou a se concretizar, criando assim um intermediário entre o preto e o branco.
Ao não conseguir enquadrar o evento em seu rígido código moral, Flávio surtou. Coitado. Mas me dói mais saber que não verei Marília de novo.
FIM