Jerry Bocchio e o Rapto de Batz – Capítulo I: Como Era Antes

Meu nome é Jerry Bocchio. Sou detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia rejeita...

Bom, você já viu essa minha introdução três vezes, né? E agora que você me conhece um pouquinho melhor, tem um pouco mais de intimidade comigo, acho que eu te devo uma explicação. Afinal, como isso tudo começou?

Só que eu já vou te avisando: essa história é um pouco... Como eu posso dizer? Pesada. É, talvez "pesada" seja a palavra que mais se encaixa.

Bom, como eu estava dizendo, eu sou um detetive particular que pega casos que a Polícia rejeita, mas não foi sempre assim. Eu trabalhava na Polícia antes de ser detetive particular.

Eu estava há uns quatro anos trabalhando como investigador. Já tinha tido o meu choque de realidade, ou seja, eu sonhava que teria um trabalho na Polícia, mas a realidade me mostrou algo bem diferente.

Quando eu sonhava em ser investigador, eu imaginava que seria alguém que iria solucionar crimes, procurar pistas, interrogar suspeitos... Até tinha esse trabalho, mas não com a frequência que eu esperava.

Muito do que eu fazia lá era preencher formulários. Recebia um chamado? Formulário! Ouvia testemunha? Formulário! Encontrava pista? Formulário! Interrogava um suspeito? Mais formulário! Visitava a cena de um crime? Bom, você já entendeu.

Nós também tínhamos reuniões todo início do mês para combinar a escala. E naquele 4 de maio de 2015 não foi diferente. Quando não tinha uma situação emergencial acontecendo na nossa jurisdição, o Capitão Lester Gregade distribuía as tarefas semanais para as duplas de investigadores. Podia ser fazer ronda, verificar casos em andamento ou parados, ou atender pessoas na parte das ocorrências. Adivinha qual foi a tarefa para Tom e eu realizarmos aquela semana:

– Mangalvo e Bocchio, vocês vão atender ocorrências.

Rapaz, como eu detestava aquilo. As pessoas íam lá só pra fazer boletim de ocorrência e ir embora. Raramente saía um caso bom de lá. Já Tom, nem tanto. Mas eu acho que sei o porquê. Naquela época, ele ainda estava de paquera com a Maria Silveira, a secretária do Capitão Gregade. Naquela época, porque hoje os dois já são casados. Tom aproveitava quando o Capitão Gregade tinha que sair pra ir falar com ela, mais ou menos no estilo Jim e Pam, do The Office. A diferença é que Tom não tinha nem um pouco da desenvoltura do Jim pra falar com ela.

Tom e eu saímos da sala de reunião em direção às nossas mesas e Tom tentava me animar:

– Ah, Jerry! Toda vez você fica desse jeito. Não é tão ruim assim.

– Você só fala isso porque aqui você pode ficar perto da Maria.

– Fala baixo, poxa! Ela tá olhando!

– Ué, você não gosta dela? Por que tá incomodado dela olhar?

– Não, não é isso! É que eu não quero que ela pense que eu sou um cara pegajoso.

– Como assim, "pegajoso"? Você sua muito quando tá perto dela?

– Não, Jerry! Não é isso que quer dizer. É que eu... O que aquele menino está fazendo aqui?

Quando nós chegamos às nossas mesas, um menininho estava sentado, nos esperando. Ele estava muito agitado, tremendo. Estava usando uma roupa azul escuro e uma capa parecida com as dos super-heróis. Aquela roupa me lembrava um super-herói, mas eu não conseguia puxar na memória. Nós olhamos mais perto dele e vimos os olhos dele vermelhos, como se estivesse chorando. Os cotovelos dele também estavam machucados, como se ele tivesse caído e os ralado. Aquela cena nos preocupou.

Nós dois fomos correndo até ele. Tom se ajoelhou do lado da cadeira onde o menino estava sentado e eu continuei em pé, mas me curvei em direção a ele. Tom já foi logo perguntando:

– Menino! Você está bem?

O garoto, com a voz soluçando, respondeu:

– Não! Meu cachorro foi roubado!

O cachorro foi roubado? Naquela época, a moda de pais de pet começava a ganhar força, mas ainda assim, não era algo que aparecia comumente na delegacia. Só que não explicava os ferimentos no menino, então eu tive que perguntar sobre isso. A resposta do menino foi:

– Porque os bandidos me empurraram pra roubar o meu cachorro. Aí eu caí no chão.

Tom continuou perguntando:

– Com quem você veio?

– Eu vim sozinho.

– Menino, precisamos chamar alguém aqui para te acompanhar. Pode me falar o telefone da sua mãe ou do seu pai?

Então, o menino levantou a voz de um modo irritado:

– Não! A gente tem que pegar esses bandidos! Vamos antes que eles matem o Batz!

– Olha, é que você é menor de idade. A gente precisa...

– E daí, policial? Eu, sozinho, fui derrotado por eles, mas nós três juntos podemos salvar o Batz. Eu lembro da placa do carro deles. É TUE-0020.

Como você pode ver, o menino ainda não tinha saído da fantasia, afinal, ele disse "nós três juntos". Eu percebi essa nuance e entrei na fantasia dele:

– Como é seu nome, menino? Digo... Nome de pessoa mesmo, não alcunha de super-herói.

Tom olhou para mim de modo esquisito, mas o menino respondeu:

– Daniel.

– Olha, Daniel, talvez seja melhor você confiar na Polícia pra isso mesmo. Você deve se preocupar mais com os seus afazeres de super-herói.

– Mas o Batz também é parte dos meus afazeres. Nós temos que ir, vamos aproveitar que ele ainda não morreu.

– Como você sabe que ele ainda não morreu?

– O fantasma dele ainda não apareceu aqui.

Aí o papo começou a ficar mais estranho.

– Qual super-herói você é?

– Eu sou o Doutor Estranho!

Bem que eu tava achando que aquela capa não era do Superman.

Tom se levantou e cochichou na minha orelha. Ele falou que, já que eu já tinha criado uma conexão melhor com o Daniel, era pra eu fingir pegar o depoimento do menino só pra pegar informações enquanto Tom ia procurando um responsável. Depois o responsável faria e assinaria o boletim de ocorrência. Eu concordei e assim fizemos.

Daniel ainda insistia em nós irmos com ele e falava que não dava tempo. Mas, a cada diálogo, ele soltava uma informação nova. O nome dele é Daniel Caezário. Ele tinha 11 anos nessa época. Ele disse que estava brincando com seu cachorro, Batz (nome dado por causa do cachorro do Doutor Estranho), um mestiço de São Bernardo, no Parque Campos Rosados. De repente, dois homens saíram de um carro preto, o empurraram, fazendo com que ele caísse de costas, enfiaram seu cachorro numa gaiola e levaram embora.

Antes que você me pergunte, sim, eu sei que o nome do cachorro nos quadrinhos termina com "s", não com "z". O menino deu o nome correto para o cachorro, eu só troquei as letras aqui na história porque, vai que tem alguém que trabalha na Marvel lendo isso, né? Eu já estou com medo só de mencionar o fato de Daniel ser fã do Doutor Estranho.

E sobre o papo do fantasma: até onde eu sei da história do Doutor Estranho, que foi só o que Daniel me falou, o super-herói adotou um cachorro em uma de suas histórias, que é o Bats. O cachorro foi defender seu dono numa luta contra o vilão Loki e morreu, aí o Doutor Estranho começou a viver com o fantasma desse cachorro. Era daí que Daniel acreditava que, se seu cachorro, Batz, morresse, o fantasma dele apareceria.

Conforme eu ia conversando com Daniel, eu ia percebendo o quanto ele gostava dessas histórias. Acabou lembrando a minha infância, quando ganhei um livro do Sherlock Holmes do meu avô. Eu também queria ser que nem o detetive, eu até andava pra lá e pra cá com uma lupa na mão e um cachimbo de brinquedo que soltava bolhas de sabão. Isso me rendia muita esculhambação na escola. Enfim, eu me identificava enquanto ouvia o menino falar.

Logo, Tom voltou com Maria ao seu lado e disse para Daniel:

– Daniel, sua mãe está aqui te esperando.

Daniel ficou muito bravo com a informação:

– Nós temos que ir atrás do Batz!

– Calma, Daniel. Você já passou as informações pro detetive Jerry, certo? Ele é muito bom nisso, não se preocupa. Agora acompanha a gente até aquela sala ali pra gente colocar um curativo nos seus braços antes de ir embora.

Sim, a gente tem uma enfermaria com curativos básicos na Delegacia. A gente é policial, tem que correr atrás de bandido, carro em alta velocidade etc. Você acha que a gente não se machuca?

Tom e Maria levaram ele à enfermaria. Enquanto isso, eu, só pra desencargo de consciência, fui ao meu computador para pesquisar a placa de carro mencionada por Daniel. Eu entrei no sistema do Departamento de Trânsito e, adivinha só, a placa não existe.

Antes que eu pudesse levantar para ir falar com Tom, ele mesmo já tinha chegado e disse, de um jeito meio conformado:

– Ai, Jerry! É uma pena a gente não ajudar esse menino, viu?

Eu fiquei espantado com a fala:

– Como assim, Tom? O menino disse que foi agredido e roubaram o cachorro dele!

– Ah, Jerry! Eu também estou com esse sentimento, mas o Capitão nunca vai deixar a gente ir atrás de ladrões de cachorro.

– Ah, é? E se eu disser que a placa de carro não consta no sistema do Departamento de Trânsito? Sabe o que isso significa, né?

– Eles podem ter adulterado a placa. Mas porque roubariam um cachorro mestiço? E adulto? Se fosse com pedigree, até teria uma explicação.

– Isso é o que a gente tem que descobrir.

– Lá vem aquele brilho no olhar de novo. Acho melhor falar com o Capitão antes.

– Ai, tá bom! Tá bom! Chatice isso, viu?

E lá fomos nós falar com o Capitão Lester Gregade. Eu expliquei toda a situação e a resposta foi óbvia:

– Negativo, Bocchio!

– Mas, Capitão, essa história não está estranha?

– Bom, talvez o menino confundiu alguma letra ou número da placa. Lembre-se que ele estava sob estresse e caído no chão.

– Como que ele estava sob estresse se ele não trabalha? A não ser que tenha um esquema de trabalho infantil. Então...

– Ai, meu Deus!

– Eita, de novo o senhor com essa conversa religiosa.

– Bocchio, o caso não parece ter materialidade suficiente para uma investigação. Além disso, parece que você se envolveu emocionalmente com a vítima. Não está autorizado! Vou divulgar o desaparecimento do cachorro e, se alguém tiver informações, eu mando um policial.

– Tá, tá bom! O senhor poderia me explicar só mais uma coisa antes de voltar para o meu posto, Capitão?

– O que seria?

– O que é "materialidade"?

O Capitão Lester Gregade tinha, e ainda tem, uma mania muito chata de falar difícil. Aí, sempre que eu perguntava o significado da palavra, ele achava ruim. Vê se pode uma coisa dessas?

Enfim, a mãe de Daniel, uma professora chamada Elisângela Caezário, pegou ele na Delegacia. Daniel saiu chorando, talvez pela decepção sobre o fato da Polícia não ir com ele atrás dos raptores de Batz, como ele gostaria.

Naquela hora eu estava confuso. Eu não sabia se era porque eu fiquei com muita dó do menino ou se era porque eu achei toda aquela situação estranha demais. Mas algo me dizia para investigar aquele caso e, quem sabe, recuperar o cachorro do menino.

O problema é que o Capitão Gregade não queria isso. Ele só soltou a informação que Batz estava desaparecido e considerou o suficiente. Se eu quisesse investigar, teria que ser de um jeito que o Capitão, e até mesmo meu amigo, Tom, não ficassem sabendo.

Quando ninguém estava vendo, eu peguei o endereço que Daniel me deu quando eu fazia o boletim de ocorrência dele e copiei em um post-it. Guardei o post-it na minha carteira e segui normalmente minha rotina na delegacia. Minha intenção era visitar a casa de Daniel depois do expediente para coletar mais informações.

Tom, às vezes, me olhava meio torto. Parece que ele desconfiava do que eu queria. Mas ele não me perguntou nada pelo resto do expediente, então, fui agindo normalmente.

Após o expediente, fui para a minha casa. Fiz isso porque não queria levantar suspeita nenhuma de que iria à casa de Daniel. Quando cheguei, troquei a roupa de trabalho por uma mais casual, peguei meu caderno e fui. Saí de noite, por volta das 19:30.

Não liguei antes porque não queria que a família dele perguntasse algo para a Polícia. Então, fui indo torcendo para que eles estivessem em casa.

Quando cheguei no prédio onde Daniel morava, uma surpresa: Tom estava na esquina, saindo de seu carro. Eu fiquei um pouco irritado com a situação, não precisava ficar de tocaia, me esperando. Mas, quando Tom me viu, pareceu que ele ficou um pouco surpreso também. Eu fui até ele para falar, já querendo pôr um fim na conversa:

– Olha, Tom. Eu já sei que você vai falar pra eu não pegar esse caso. Mas não dá, tá bom? Isso aí tem algo por trás que me deixou encafifado.

– Jerry! É... Não é isso não!

– Como não? Por que você tá de tocaia aí então? Foi o Capitão que mandou?

– Na verdade... Eu estava indo na casa do menino...

– Ué? Pra quê?

– Eu também fiquei encafifado com essa história. Além do que, né? Coitado do menino.

– Aaaah! Por que você não me falou que viria então?

– Eu não queria chamar a atenção de ninguém. E você?

– Eu também não!

Bom, parece que nós dois tivemos a mesma ideia. Vai ver era por isso que Tom ficava me olhando torto daquele jeito. Ele devia estar com medo de eu suspeitar de algo e falar para o Capitão. Sinceramente, não sei o porquê. Eu não faria isso com ele. Se bem que, pensando bem, acho que ele também não faria isso comigo.

Nós dois fomos até a portaria do prédio e tocamos o interfone. Enquanto a mãe, Elisângela, descia para nós atender, eu olhei para Tom e perguntei:

– Pronto pra desobedecer uma ordem direta do Capitão?

Um pouco apreensivo, Tom olhou para mim de volta e respondeu:

– Seja o que Deus quiser.

Continua...