Pôquer em Salvador

Saio do meu apartamento, localizado num condomínio da Barra. Desço de elevador até o estacionamento. Pego meu carro e vou até um hotel cinco estrelas que fica a pouco mais de 1 km da minha casa.

Cheguei no hotel. Entro e aproveito para revelar ao leitor: o que importa não é o hotel em si, mas o que existe embaixo dele. Vou até o gerente e mostro o cartão. Ele me leva até o elevador. Não um elevador qualquer. Um elevador especial. Que só desce. No subsolo, há diversas salas. Trata-se de uma enorme sala com jogos de pôquer. No entanto, a necessidade de esconder a jogatina não é por causa do pôquer em si, que não é ilegal no Brasil, por não ser jogo de azar. O motivo é a peculiaridade do pôquer jogado aqui. Para ser mais específico, trata-se de strip pôquer. Em cada sala há paredes que visam garantir privacidade. Na sala, há cartas e mulheres. Antes de chegar ao detalhe principal, explico outra característica singular: nós, jogadores, jogamos sozinhos. Pegamos cinco cartas. Elas aparecem viradas para cima. Em seguida, podemos escolher trocar de 1 a 5 cartas. As novas cartas que aparecem vêm aleatoriamente de baralhos distintos. É um sistema automatizado por um software conectado à internet. Também há a opção de não escolher trocar nenhuma. Assim, se sua mão vier com uma combinação que gera pontos, você pode manter as cartas e pontuar. Da mesma maneira, você trocar cartas na esperança de que venham as cartas necessárias para gerar pontos.

Pois bem, agora vem o melhor: você joga numa sala dividida em dois espaços que são separados por um vidro. Do outro lado do jogador, há uma dançarina gostosa. Por isso o nome do lugar é Strip Poker. Há três tipos de pontuação: se você pontuar x, ela tira uma peça da roupa. Se conseguir uma pontuação ainda maior, ela tira mais peças de roupa. A maior pontuação de todas leva a dançarina a ficar toda nua.

Estou jogando isso há algum tempo. Mas acabei me interessando por uma das dançarinas. Letícia é nome dela. Não sei se é o nome verdadeiro. Fiquei tão interessado que comecei a ficar obcecado em ver ela toda nua. Porém, nunca conseguia e ainda não consegui. Só consigo atingir a pontuação em que ela só fica de calcinha.

Gastei muito dinheiro tentando conseguir que ela tirasse toda a roupa. Só que parecia impossível. Então, pensei num plano não convencional.

Depois de ter gastado, mais uma vez, todas as fichas tentando vê-la nua. Peguei uma caneta piloto e escrevi no vidro que separa ela de mim: “Quer me acompanhar no exame de endoscopia no fim de semana?”.

Ela riu. Parece que não levou a sério.

Dois dias depois, chego no hotel e o gerente me dá um recado:

- Letícia quer falar com você.

Fui na sala onde ela dançava. Mais uma vez gastei uma grana e não consegui vê-la nua. Dessa vez, ela foi quem escreveu no vidro usando uma caneta piloto:

- Me encontre na saída às quatro da manhã.

Segui a orientação dela. Pouco antes dela chegar, homens que pareciam seguranças do Strip Poker deram porrada num homem e o colocaram num carro que saiu em disparada logo depois. Me assustei um pouco, mas logo fiquei calmo. No horário exato, ela saiu do hotel. Eu a esperava encostado em meu carro.

- Oi! - ela disse, rindo.

- Oi! O que é engraçado? - perguntei, rindo também.

- Aquilo que você disse. Achei criativo. Normalmente, os caras me chamam para beber ou para sexo. Você me chamou para um exame de endoscopia.

- Pois é. Eu quis tentar algo diferente.

- Mas você tem mesmo um exame de endoscopia?

- Não! Por isso vou te chamar para beber.

Letícia aceita. Dois dias depois, aceita de novo. Logo estávamos bastante próximos. Bebendo toda semana.

Ela me fala que se chama Mariana, na verdade.

- Não sou uma puta, se é o que pensa. - ela diz. - Trabalho no Strip poker para pagar meus estudos de direito. E…

- Como conseguiu esse trabalho? - acabei interrompendo ela.

- Meu irmã encontrou por acidente. Ela é hacker.

- Não entendi. Qual a relação entre…?

- O site do Strip Poker. - agora ela me interrompe. - Está na deep web. Precisa de conhecimentos avançados de informática para acessar. Havia um anúncio de emprego nesse site. Como você encontrou esse lugar?

- Quando há coisas secretas aqui em Salvador, costumam me convidar. Eu sou assíduo frequentador de festinhas secretas. O que a sua irmã estava procurando…?

- Podres desse hotel onde o Strip está. Não me pergunte detalhes.

- Legal… além de encontrar esse emprego peculiar, o que mais a sua irmã fez de útil para você?

- Ela hackeia quando eu preciso.

- Uau… - eu disse, fingindo estar impressionado. - Me diga, nunca teve problemas com homens bêbados e violentos?

- Tive. Mas o Strip Poker se livra desses caras.

- Se “livra” como…?

- Você entendeu… É um pessoal perigoso. Há um esquema.

Depois disso, prosseguimos com a conversa pessoal. Algumas semanas de drinks depois e estávamos íntimos. Nos beijávamos de forma ardente. Entretanto, ela estava relutante em querer transar comigo.

- Acho que não quero ainda. - ela diz.

- Por quê?

- Não me pressiona.

Virou namoro de crente careta. Só nos beijávamos. Ela não me deixava nem pegar nas partes dela. Nunca fomos na casa um do outro.

- Já chega. É melhor a gente parar! - eu disse a ela, num restaurante.

- Eu entendo. - ela disse, seu cenho parecia triste, porém ela não disse mais nada.

Fui embora. Eu não queria nem ir ao Strip Poker. Ela estaria lá. Fiquei quase um mês sem frequentar o estabelecimento. Quando voltei, ela não estava mais. Perguntei ao gerente, aos seguranças… todos diziam não conhecê-la, que não havia ninguém ali com esse nome. Estranho demais. Esses funcionários eram os mesmos de um mês atrás, como podem tê-la esquecido? Foi como se ela tivesse sido “vaporizada”, um termo orwelliano criado para designar o apagamento físico e existencial de pessoas que eram queridas antes de incomodarem o regime totalitário.

Fiquei pensativo. Estava cheio de dúvidas. Decidi parar de vez de frequentar o Strip Poker. Voltei à rotina normal, embora Mariana/Letícia emergisse com tudo na minha mente, de vez em quando.

Então, recebi uma ligação no meu smartphone. Era o gerente do hotel, que também era, na prática, o gerente do Strip Poker.

- O senhor nunca mais veio aqui, sr. Caio. Há algo errado? O Strip Poker o desagradou de alguma maneira?

- Como descobriu meu número?? - eu disse. Estava paranoico.

- Ora, o senhor nos deu o número quando se cadastrou!

- Ah… sim… claro…

- O sr. pode vir aqui esta noite?

- Não dá… Tenho compromisso…

- Temos uma promoção para o sr.

- Obrigado… Vou ver!

Desliguei abruptamente.

Eu estava paranoico, repito. Não queria nunca mais voltar ali. O sumiço de Mariana/Letícia e a atitude insólita dos funcionários ainda me deixavam assombrado. Nem ferrando que eu ia voltar a frequentar, nem que eles me oferecessem um serviço gratuito.

Depois fui me acalmando enquanto os dias iam passando. Recebia ligações do Strip Poker e ignorava. Até que bloqueei as chamadas desse estabelecimento. Mais dias se passaram e alguém bateu na minha porta. Eram batidas calmas. Vi pelo olho mágico que eram aqueles dois seguranças que certa vez vi agredindo um homem na entrada do hotel, justo no dia em que encontrei Mariana/Letícia pela primeira vez.

O pânico se apoderou de mim. Fiquei nervoso, sem ter a mínima ideia do que fazer. Eles estavam ali para me pegar! Fiquei em silêncio, achando que poderiam pensar que eu não estava em casa.

Ideia inútil. Eles arrombaram a porta.

Corri para a janela. Poderia pular, mas eu estava no oitavo andar do prédio. Os caras me pegam.

- Quando o Gerente chamar, você tem que ir! - disse um deles.

Colocaram-me dentro do carro e foram ao Strip Poker. No local, me levaram ao elevador especial. Desceram até abaixo das salas onde rolavam o pôquer e onde as strippers estavam. A sala do gerente estava nas profundezas do hotel. Era uma sala estreita, com uma única mesa e cadeiras posicionadas de um modo que colocavam os interlocutores frente à frente na mesa. O lugar se assemelhava a uma sala de interrogatório policial. Os seguranças me deixam dentro dela e saem. Fico 15 minutos sozinho. O Gerente entra.

Ele parecia mais assustador. Ele era alto, corpo aparentemente atlético por baixo do terno. A iluminação colocava sombras no rosto dele, o que lhe dava um aspector perturbador.

- Sabe por que veio parar aqui? - ele pergunta.

- Não. Mas sabia que ia acontecer…

- Precisamos de sua ajuda para pegar duas golpistas que nos deram um golpe de 700 mil reais. Você foi o cliente mais lesado de todos.

- Quê?! Mas que maneira de pedir ajuda…

- Telefonamos e você não respondia. Então recorremos à condução coercitiva.

- Mas de que golpistas você fala?

- Letícia e sua namorada e parceira de crime conseguiram burlar nosso sistema de software. A regra matemática da nossa casa implica que o percentual de dinheiro levado pelas strippers diminui à medida que o jogador consegue aumentar sua pontuação.

- Então, foi por isso que…

- Exato! Precisamos de toda informação que você obteve dela. Sabemos que você a conhece bem, pois se encontraram várias vezes. Quando ela sumiu, você perguntou sobre ela a nossos funcionários. Até consideramos o senhor como suspeito. Foi então que vimos que o senhor foi o cliente mais prejudicado.

Contei a eles tudo o que ouvi de Mariana ou Letícia. Eles me refutaram dizendo que todas essas informações que ela deu eram falsas. Até mesmo a orientação sexual dela. A tal “irmã hacker” não era irmã. Em suma, fui um inútil para eles.

Depois das perguntas, me liberaram. Nunca mais tive notícias de Letícia/Mariana. Sumiu. Embora eu ainda estivesse paranoico e no fundo acreditasse que tanto ela quanto a irmã foram mortas pelo Gerente e sua gangue. O interrogatório que fizeram comigo seria fachada para descobrir se eu sabia demais. Como não sabia nada, me pouparam. Ou pode ser que ela e a irmã ou namorada estejam vivas por aí dando golpes em clubes secretos de pôquer. Vai saber.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 27/04/2024
Reeditado em 27/04/2024
Código do texto: T8050943
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