O cowboy que não estava no tiroteio

Tem sempre um lugar onde o Estado não está. Se isso ainda é verdade no século XXI, que dirá então em Tombstone, no ano de 1881. Azar dos trens, por exemplo.

O bando aguardava pela passagem do trem. Era um lugar remoto em Tombstone. Era possível explodir uma bomba ali. Alguém até poderia ouvir, mas ninguém ia fazer nada. Nunca se viu a lei por ali. As autoridades davam pouca atenção àquele local. Se alguém estivesse em perigo ali, já era. Ninguém iria ouvir o desespero. E se ouvisse, talvez nem ligasse. Um trem ia passar por ali. Já houve emboscadas a trens, mas em outros locais remotos. A coisa estava tão frequente que o Estado foi se estendendo e o número de locais remotos e isolados da lei estavam ficando escassos. O local onde o bando está era um dos que sobravam. Logo não ia sobrar nenhum. A bandidagem ia ter que ser mais criativa.

Frank e seu irmão Tom começam a retirar os trilhos no local exato onde haverá a emboscada. Antes colocavam tronco de árvores, porém uma vez um trem passou com tudo por cima. Dizem que o Maquinista estava puto com tantas emboscadas que resolveu arriscar. Resultado: descarrilhamento, mortos e feridos. Foi algo que horrorizou até o bando, fazendo-o fugir.

Mas agora eles tiraram os trilhos. Qual maquinista vai ser porra-louca agora?

O trem se aproxima, até o momento não houve redução de velocidade. Vai haver outro acidente? O maquinista não viu que falta trilhos?

Então, a velocidade começou a ser reduzida. O cara não era porra-louca, ufa. Pouco antes da “brecha” nos trilhos, o trem parou. Agora era o momento. O bando rendeu o maquinista e funcionários do trem. A ideia era o bando invadir e os membros se espalharem pelos vagões e fazerem a limpa nos passageiros. Tom, Ike, Frank, Billy e Uno ameaçam os passageiros e tomam seus pertences. Heróis que tentam a sorte morrem nas Colts e Winchesters dos bandidos. Foi o que sempre aconteceu.

Até este dia.

Uno estava no vagão ameaçando as vítimas e tomando seus pertences. Quase todos deram sem reclamar. Menos dois. Um homem estava armado e resolveu reagir. Mas Uno era mais rápido e mortal. O aspirante a herói virou defunto ali mesmo. Outro homem estava sentando num canto, com um capuz no rosto. Uno queria o relógio de ouro dele.

“Me dá logo isso aqui”, gritava Uno enquanto tentava tomar. O dono do relógio resistia. Uno disparou nele e tomou o relógio.

“Agora você vai ficar quieto e para sempre”, disse Uno. Mas bastou ele virar as costas que o dono do relógio o atacou por trás. Não com uma arma de fogo ou qualquer objeto que possa ferir. Ele usou as mãos. Ou melhor, os dedos. Ele juntou os dedos indicador e o do meio e com a ponta de ambos acertou a cabeça de Uno por trás. O bandido sentiu um choque dentro da cabeça e caiu. O dono do relógio começou a gritar:

“Eu sabia! Eu sabia que você ia me matar! Eu tinha visto! Mas não ia morrer sem lutar e sem deixar você sentir o prazer de ver…”.

Frank e Ike deram vários tiros no dono do relógio, que enfim estava morto.

“Você está bem, Uno?”, perguntou Frank.

“Estou, mas minha cabeça dói”, respondeu Uno.

Desde então, Uno nunca mais foi o mesmo.

Na noite do mesmo dia, enquanto acampavam e se escondiam das autoridades, Uno teve um pesadelo. O sonho era vívido, estranhamente vívido e lúcido. Ele e os outros cowboys estavam no centro de Tombstone. No sonho, Frank gritava e dizia que “jamais vou aceitar que me desarmem! Jamais!”. Havia cowboys e homens da lei, como se tudo estivesse preparado para um confronto. Acordou antes do desfecho. Por cinco dias consecutivos, Uno teve exatamente o mesmo pesadelo. Isso o horrorizou, mas ele não disse nada aos companheiros. Todavia, não daria para esconder por muito tempo quando os efeitos de uma experiência onírica passam a influenciar suas ações na vida real.

Durante uma emboscada a outro trem, Frank notou que Uno estava relapso. No momento em que os reféns estavam sendo roubados, Uno viu um relógio de ouro, parecido com aquele que tinha roubado da vítima que o atacou. Tal semelhança despertou nele um estranho sentimento lúgubre e o distraiu. Ele não viu um dos passageiros sacar uma pistola e disparar contra Billy. Errou o alvo, por pouco. O cara mirou na cabeça. Billy o matou com vários tiros. E Frank repreendeu Uno.

“Que diabos há com você?!”

“Desculpa, eu me distraí.”

“Desculpa? Deixa eu lhe dizer uma coisa, rapaz. Se alguém morre por sua culpa, o cowboy distraído, não tem desculpa. Distraiu? Não se distrai em uma situação dessas. É melhor ficar atento ou então cai fora. Não queremos distraídos no bando!”

Na noite do mesmo dia da emboscada, outro pesadelo. Dessa vez diferente dos anteriores. Uno, Frank e outros cowboys estavam em frente ao O.K Corral, em Tombstone. De novo, há forças da lei diante deles. Um confronto está armado. Uno olha bem para uma das autoridades. Era o Wyatt. Ele acorda assustado. Ike percebeu.

“O que há, Uno? Pesadelo?”

“Sim…”

“Eu notei que você parece que não está tendo boas noites de sono”.

“Pois é”.

“Sonha com o quê?”

“Se eu disser, acho que você não botar muita fé”.

“Diga e aí vamos ver”.

“Eu tenho sonhado a mesma coisa por vários dias. Mas dessa vez o sonho foi diferente. Todos os sonhos parecem realidades de tão vivos que são”.

“Qualquer sonho é assim. Como é o pesadelo?”

“Todos nós prestes a enfrentar Wyatt e sua trupe da lei”.

“Wyatt, aquele desgraçado! A gente vence pelo menos?”

“O sonho acaba antes do confronto iniciar. Mas e se não for apenas um sonho?”

“É só um sonho. Não existe!”

“O mesmo sonho vários dias seguidos?”

“Coincidência. Olha, melhor você perguntar ao meu irmão, ele é menos cético com essas coisas.”

Billy, de fato, era menos cético.

“Quando eu era criança, escutava umas histórias sobre um determinado povo que vivia por esses lados”, disse Billy.

Ele explicou que esse povo tinha uma suposta capacidade de prever o futuro e, mais do que isso, poderia até mesmo transferir esses poderes para qualquer outro ser humano. Dizem que certa vez eles foram atacados por “civilizados” americanos. Quase todos foram exterminados, mas um único sobrevivente conseguiu transferir seus poderes premonitórios para um dos soldados. Diz a lenda que eles previram que seriam exterminados e aprenderam a passar seus poderes para que seus algozes possam sofrer através de sonhos que mostram como eles vão morrer. O soldado logo enlouqueceu com pesadelos que mostravam a forma como ele ia morrer. Ele acabou se matando.

“E há alguém desse povo vivo?”, perguntou Uno.

“Possível. Mas tudo isso é história para assustar criança”.

Uno foi tomado por um sentimento de pânico. E se o cara que o atacou no trem for desse tal povo que prevê mortes? O cara o atingiu de forma estranha, como se quisesse fazer mais do que ferir. Ele lembrou o que esse homem disse: ““Eu sabia! Eu sabia que você ia me matar! Eu tinha visto!”

Durante a noite, ele tentou evitar dormir. Não conseguiu. Outro pesadelo. Desta vez, os cowboys e as forças da lei entravam em conflito. Mas eles foram mortos a tiro. No sonho, Wyatt acertou a cabeça de Uno com um tiro, mesmo depois de ter se rendido.

No outro dia, mais uma emboscada. Enquanto Frank rendia os passageiros de um vagão. Tom e Uno roubavam os pertences. Uno vê um homem sentado no canto. Um relógio de ouro, um capuz cobrindo o rosto. Uno perde o controle e numa ação impulsiva atira várias vezes no homem. Todo mundo ficou horrorizado, até seus comparsas. Não era um homem de capuz. Era uma criança. A mãe entra em desespero. Os bandidos - todos chocados, inclusive Uno, o mais chocado - fugiram às pressas. Até o mal pode ser chocado de vez em quando.

Frank ficou furioso.

“Não dá, Uno. Aquilo foi demais”.

Os outros concordaram que Uno tinha passado dos limites. Ele não era mais bem-vindo no bando. Os outros voltaram a Tombstone. Ele ficou para trás. Seus pesadelos mudaram. Ele começou a sonhar que morria envenenado, todos os dias. Logo começou a ingerir medicamentos para ter insônia. Virou alcoólatra. Gastou todo o dinheiro que havia roubado. Ficou miserável e solitário.

Em um dia de 1881 viu no jornal sobre a lei que desarmava pessoas. Alguns dias depois, soube que seus ex-comparsas se envolveram num tiroteio de trinta segundos em frente ao O.K Corral. Billy, Tom e Frank foram mortos. Poderia se sentir aliviado por ter escapado da morte se os seus pesadelos que supostamente mostravam sua morte cessassem. Mas não paravam. Até que um dia o pesadelo mudou. No sonho, ele não sentia mais o veneno destroçar seu corpo por dentro a ponto de fazê-lo gritar de dor. Desta vez, ele via uma corda. E ao acordar, ele percebeu que enfim os pesadelos acabarão para sempre.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 24/01/2024
Reeditado em 24/01/2024
Código do texto: T7983800
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