O perdão revogado
Foi um plantão policial sem novidades, naquela noite. Até que um preso por embriaguez ao volante entrou naquela fase em que a bebedeira começa a ceder e "cai a ficha” do infeliz. As reações costumam ser as mais diversas. Uns choram, outros ficam revoltados, há os que simplesmente não entendem que estão presos, tem também os bem falantes que viram advogados e querem a todo custo convencer os policiais que são inocentes.
O preso dessa noite já tinha sido presidiário e quando os presidiários ficam “xaropes” começam a chamar os agentes penitenciários, ou os policiais, a qualquer pretexto, com educação e humildade fingidas:
“Senhor! Ô Senhor! Senhôôôr!!!”.
Por coincidência, nessa noite apareceu no plantão, para fazer um boletim de ocorrência, um homem com cara de Jesus Cristo. Cabelo loiro escuro comprido repartido ao meio e caído sobre os ombros, barba venerável, olhos azuis, nariz reto e comprido. Alguém teve a idéia de apresentá-lo ao bêbado que clamava pelo Senhor e ver no que dava.
Tudo combinado com o cidadão cara de Jesus, foram até o “corró” e pararam na frente da grade do preso "xarope” e alguém falou com voz solene.
— Ó Senhor! Este pecador clama por vós há mais de uma hora. Abençoa ele.
O Jesus Cristo improvisado falou com voz mais solene ainda:
— Meu filho, teus pecados estão perdoados. Vá em paz, e não peques mais.
Todos deram meia volta e deixaram o bêbado ali, embasbacado.
Um pouco depois, alguém foi conferir se o preso tinha entendido alguma coisa. Chegou na cela com uma garrafinha de água, ofereceu e comentou, como quem não quer nada:
— Você viu? Jesus perdoou todos os teus pecados. Agora você vai pro céu.
— É verdade? Não devo mais nada?
— Verdade, você é um cara de sorte. Você clamou pelo "Senhor" e ele perdoou os teus pecados, inclusive o de dirigir embriagado.
— Sério mesmo?
— Sério. Você foi libertado. Pode começar a ficar alegre.
O preso ficou pensativo, bebeu a água, sentou-se no chão da cela, relaxou e adormeceu alí mesmo.
Horas depois, quando o “bonde” chegou para fazer a transferência d presos do plantão para a cadeia pública, acordaram o infeliz e foram colocando as algemas nele, para o traslado. O porre ainda não tinha passado completamente, e depois da soneca ele tinha acordado sem saber onde estava. Mas lembrava de Jesus Cristo:
— Que que é isso? Me solta.
O carcereiro não estava com paciência para explicar.
— Cala boca! Preso fica de boca fechada.
— Preso? Mas como? Eu fui perdoado. Tem que me soltar.
— Soltar o caralho! Vira de costas e cala a boca.
— É sério. Eu fui perdoado, quero ir pra casa. Ô Senhor! Senhor! Ô Senhôôôr!
O ajudante do carcereiro estava mais bem humorado e resolveu a questão:
— Cala a boca. O delegado revogou o perdão. Agora quem resolve é só o juiz, na audiência de custódia.