O Plano Divino contra Joana D'Arc

Era noite em Reims, no ano de 1435. Vizinhos escutaram gritos de uma mulher. Não era um grito contínuo. Ela dava gritos entre intervalos que levavam frações de segundos, como se estivesse levando sucessivos golpes. Vigários foram chamados. Encontraram o corpo de uma jovem. Ela havia levado sete punhaladas. O autor do assassinato caiu fora antes que os aplicadores da lei chegassem.

Horas antes, chegava à mesma cidade, de carruagem, o Clérigo. A mando da Inquisição, ele estava ali para uma missão: identificar quem é o autor de um texto herético que vem circulando há dias na cidade. O destino do infeliz seria a fogueira. Mas isso só seria possível se o Clérigo fosse capaz de encontrá-lo em uma das cidades mais populosas daquela coleção de feudos e territórios que eram contíguos entre si. Nem dá para dizer que o realizador da missão vai precisar de “sorte”. Ele tem talento.

O Clérigo era o mais destacado dos clérigos. Exímio conhecedor de Retórica, Lógica Aristotélica, Teologia, Filosofia, Latim, Escrituras, História e Literatura Religiosa. Seus superiores já lhe disseram: “você é do tipo que só aparece em mil em mil anos”. Essa consideração inicial precisa ser dita logo de cara, pois o Clérigo é o personagem principal do nosso filme. Não é a primeira vez que tem a missão de encontrar autores anônimos de textos ditos “heréticos”. Nas três vezes anteriores, ele descobriu quem eram os “hereges” sem precisar sair da sua biblioteca. Os acusados, que acabaram na fogueira, já haviam escrito outras obras sem usar do anonimato. O Clérigo identificou padrões na escrita mediante comparação. Ele chama de “Método Retórico-Silogístico” - segundo ele, os textos nada mais são do que um amplo conjunto de silogismos. Os argumentos textuais - cada com um três proposições - podem se unir e formar um único panfleto. O Clérigo determinou que há apenas dois tipos de pensadores: os indutivos e os dedutivos. Normalmente, os blasfemos e hereges seriam mais dedutivos. Eles partem de uma ideia universal, que afronta o dogma religioso, para o singular. Os três anônimos hereges desmascarados eram dedutivos e manifestavam específicas formas de manipulação de silogismos que foram identificadas pelo Clérigo. Eles confessaram depois de terem sido torturados.

Dessa vez, a missão era mais complicada. Antes de dar detalhes sobre o que torna o trabalho do Clérigo mais complicado, um resumo sobre o conteúdo condenado pela Igreja. Há dias, um panfleto com o título “Dieu a conçu la mort de Jeanne D’Arc?” começou a ser copiado e espalhado por Reims. Um contexto: quatro anos antes, em 1431, a heroína Joana D’Arc foi queimada na fogueira sob acusações de blasfêmia, heresia, de ter visões demoníacas, entre outras coisas. Antes, ela havia liderado o exército francês em vitórias importantes contra os ingleses. Se a cidade de Reims estava sob controle de Carlos, Rei da França, isso se deve a um desses triunfos. Pois bem, o texto “herético” afirmava que as visões de Joana não eram demoníacas, eram obras de Deus. O Criador teria provocado nela essas visões para levar o exército do Rei a vitórias. Porém, como Deus é onisciente, sabe do futuro, Ele previra que Joana seria condenada. Era tudo parte de um “Plano Divino” que levaria a mais um degrau para se chegar a um “objetivo maior”. Ninguém sabe qual seria esse tal objetivo. A Igreja só viria reconhecer que errou com Joana em 1456. Naquele momento, em 1435, ela ainda era oficialmente herege. O panfleto blasfemo a colocava como vítima de um deus perverso que a usou como peão de um propósito maior. Isso enfureceu a Igreja. O Clérigo estava lá para encontrar e levar o autor ou autores para a fogueira.

Agora o detalhe que complica a missão: o Clérigo notou que não havia uma unidade que harmoniza o conjunto dos silogismos no texto. Ou seja, é como se fosse escrito por mais de uma pessoa. Além disso, havia detalhes que não dá para captar com o simples uso da Lógica. Uma singularidade que o nosso protagonista não havia enfrentado até então. Não seria possível resolver o problema sem sair de sua confortável sala na biblioteca. Teria que ir até o local fazer algumas perguntas, interrogar. Teria que inovar no método diante de um desafio complexo e inédito.

Este é um texto base que servirá como esboço para o roteiro sobre as aventuras desse Clérigo em sua tentativa de encontrar o(s) herege(s). O filme pretende ser um “sucessor espiritual” de uma obra prima do cinema: La Passion de Jeanne D’Arc (1928), dirigido pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Arrisco-me a dizer que pode até ser considerado uma tentativa de continuação desse filme. O enredo é uma consequência indireta da morte de Joana. O filme de 1928 se baseou no registro real do julgamento e é conhecido pelo uso frequente de close-ups no rosto dos atores que estavam sem maquiagem - uma tentativa de dar tons realistas e dramáticos à encenação. Por outro lado, o filme que se baseia neste texto será uma tentativa de implementar o padrão de histórias de detetive na França de 1435. Apesar de não existir a noção de detetive nessa época, pode-se considerar que o trabalho do Clérigo é uma investigação estilo "detetivesco".

O Clérigo observou que o panfleto também havia alguns “desvios” do padrão lógico que descreve o silogismo. Especialista, como já citado antes, em Retórica, notou que existiam trechos que remetiam ao gênero musical conhecido como moteto. Pista importante. Era preciso ir em lugares onde haviam compositores e cantores de motetos. Não demorou para os rumores circularem: um clérigo à serviço da Inquisição estava na cidade. No mesmo dia em que chegou em Reims, o Clérigo foi numa região conhecida como “a central” dos espetáculos com uso de motetos. Conheceu uma mulher que costumava ser a “terceira voz” num determinado grupo de cantores.

- O panfleto possui linguagem que remete a composições textuais de moteto. Alguns desses trechos lhe são familiares? - questionou o Clérigo, que mostrou-lhe trechos do panfleto herege.

As pessoas costumam se intimidar diante de funcionários da Inquisição. Por razões óbvias.

- Minha voz nunca cantaria algo tão profano.

- “Tão”? Então, se fosse de um nível profano mais ameno…

- Não, senhor! - a moça estava horrorizada. Sabe que pode acabar nos piores lugares se falar demais com um clérigo.

O Clérigo sabe do seu poder. Ele poderia incriminar a moça quando quisesse. Ela seria condenada e queimaria. Mas o trabalho seria fácil e o verdadeiro herege estaria à solta. Ele queria pegá-lo.

- Diga-me quem pode me dar detalhes dessa composição de moteto.

Ela indicou outro cantor, que também jurou não ter nada a ver e nem saber de quem se trata. O Clérigo notou que seu trabalho ficava mais complexo. Os entrevistados morriam de medo. É de se perguntar se o medo os impele a dizer a mentira ou a verdade. O Clérigo notou que aquele método de investigação estava fadado ao fracasso. Ele percebeu que os rumores de que ele estava na cidade se espalhara numa velocidade assustadora. Isso atrapalharia sua busca. E era provável que autor ou autores da heresia já fugiram. A não ser que tenham um nível absurdo de ousadia. Foi para seu quarto reservado para pessoas que praticam o sacerdócio. Nesse momento, seria interessante dar close-ups no rosto do protagonista, pois o ator precisará expressar a angústia de quem está diante de um fracasso iminente. Passou a madrugada analisando o texto herético. Era polifônico como um moteto. A mistura de vozes criava um estilo complexo, múltiplo, impossível de ser detectado pelo “Método Retórico-Silogístico”.

Na manhã seguinte, um vigário foi até o quarto reservado onde estava o Clérigo. Uma autoridade local o solicitou que fosse até uma capela. Ao chegar no local, um responsável, que era funcionário do rei, mostrou dois corpos que geraram horror ao Clérigo. Eram os corpos do Cantor e da Cantora, os únicos interrogados por ele. A Cantora levou sete punhaladas. O Cantor levou uma punhalada fatal na garganta.

- Testemunhas viram o senhor conversando com eles. - disse o Funcionário, que sabia que ali era um funcionário da Inquisição. - Não quero pressioná-lo nem nada do tipo, mas podemos pegar o asssassino.

Era só ligar os pontos: o Clérigo chega na cidade, rumores do porquê ele estava lá se espalham, o Clérigo conversa com dois suspeitos, eles aparecem mortos no outro dia… Coincidências! Era evidente que o assassino e o herege (ou um dos hereges) são a mesma pessoa. Ele matou os dois com qual propósito? Vingança? Achou que eles falaram demais com o inquisidor? O Clérigo quase riu. Ele sabe que pegou o desgraçado. O Herege deveria ter ficado quieto. O Clérigo estava quase derrotado. Matar os dois foi o erro que o levará para a fogueira.

- Eu posso ajudá-los a pegá-lo. - disse o Clérigo.

Em uma biblioteca, o Clérigo questiona mais um suspeito.

- Você é teólogo, escreveu coisas a favor de Joana. Coincidentemente, é um profundo conhecedor de clausula e organum. Nunca compôs motetos?

- Não, senhor. - respondeu o Suspeito.

- O meu método detectou vozes semelhantes a vozes presentes em obras suas.

- Senhor, pode ser uma concha de retalhos de diferentes obras.

Essa frase não passou despercebida. Levantava mais limitações contra o Método Retórico-Silogístico. Conversaram por vinte minutos. Depois o Suspeito foi embora. No caminho para casa, o Suspeito foi atacado por um agressor com um punhal.

Tudo havia saído como planejado.

Vigários e outros oficiais de justiça esperavam por isso, assim como o Clérigo. O nosso protagonista percebeu que estava sendo seguido. O herege/assassino estava no seu encalço e matou as pessoas com quem ele conversou, pois achou que elas haviam entregado-o ou que eventualmente pudessem falar alguma coisa que pudesse de alguma forma entregá-lo. Foi um erro, como já dito, porque o Clérigo não conseguiu arrancar nenhuma informação útil deles. Não havia razão para apagá-los Os vigários e oficiais impediram que o herege/assassino fizesse mais uma vítima. Em interrogatório com o Clérigo, ele admitiu que era um dos autores do texto “Dieu a conçu la mort de Jeanne D’Arc?”. Sob tortura, entregou outros quatro - um deles, analfabeto. Todos foram para a fogueira. As autoridades nunca quiseram saber se os outros estavam de alguma maneira envolvidos nas mortes.

O Clérigo não esqueceu de como a tolice do herege o ajudou. Ele estava quase perdendo o seu primeiro desafio. Reflexões sobre planos divinos se tornaram inevitáveis. E se Deus realmente teve um plano divino contra Joana D’Arc? Ele nunca escreveu sobre isso. Porém, entendia que o seu sucesso poderia ser um plano divino a favor dele. O seu método não lhe ajudou muito. Precisou que o seu adversário lhe desse uma ajudinha. Questionou-se sobre a possibilidade de Deus criar esses jogos de gato e rato por puro divertimento.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 11/10/2023
Reeditado em 08/11/2023
Código do texto: T7906517
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