Jornalismo de Boxe
O inquilino vizinho havia visto duas silhuetas no corredor do hotel. Pensou que fossem “dois bêbados”, por isso voltou a deitar. Menos de três minutos depois, o barulho de porta sendo arrebentada na base dos chutes e pontapés. Logo depois a rajada. Barulho de quatro pés descendo correndo as escadas. Um grito no térreo do hotel. Um grito horrendo e curto, que durou uns três segundos. Por fim, o silêncio.
A FONTE EM OFF
Alguns dias antes do ocorrido mencionado.
O cara telefonou para a redação. A pessoa que ele queria que atendesse atendeu. Disse que tinha informações quentíssimas sobre a Máfia de Chicago.
- Seção errada, amigo. Eu sou jornalista esportivo. Contate o nosso repórter policial.
- O assunto é uma interseção entre máfia e boxe. Mas não espere detalhes pelo telefone. Me encontre pessoalmente.
O repórter ficou interessado. Marcaram um encontro no bar clandestino chamado Friar’s Inn. Quando o jornalista chegou no bar, estava tocando Tin Roof Blues, uma canção de jazz tocada ao vivo por Leon Roppolo. Essa música foi composta pelo próprio Roppolo, junto com Paul Mares, Ben Pollack, George Brunies, Walter Melrose e Mel Stitzel.
A fonte estava num canto do bar. O repórter se aproxima e se senta à mesa. Ele vê a cara do indivíduo. Figura conhecida dos jornais. Suspeito de ter feito algumas coisas “imorais”, para usar de eufemismo. Não era trote ou coisa do gênero. O homem era quem dizia ser.
- Vou ser sincero para você. - disse a Fonte. - Nunca imaginei que brancos seriam capazes de tocar jazz no nível dos negros. Mas escutando Tin Roof Blues, eu acho que há uma “esperança branca”.
- Me chamou aqui para fazer crítica musical?
- Atente ao termo “esperança branca”, garoto. Depois que ele nocateou Dempsey em Nova York, virou a “esperança branca”. Agora está condenado.
- Dempsey em Nova York? Fala de Andre Anderson?
- O próprio.
- O que quer dizer com “condenado”? A Máfia vai matá-lo?
- Vai.
O Repórter pensou em questionar como ele poderia garantir isso.
- Eu sou do esquema, garoto.
- E você confessa isso numa boa…
- Sabe que eu posso fazer isso.
- Se o próprio Anderson souber, vai fugir.
- Conta para ele.
- Não entendo. Você admite estar num “esquema” para matar um boxeador. E conta isso para um jornalista? O que quer com isso? Que todo mundo saiba?
- Apenas publique isso, garoto. Se conseguir. Apenas peço que omita meu nome.
- Se conseguir?
Parecia uma ameaça. O repórter começou a suar.
- Relaxa. Não vou te fazer nada. Estou lhe dando um furo de reportagem. Agora fique sentado e só saia daqui depois de dois minutos.
O Mafioso saiu quando Rappolo começou a tocar Farewell Blues. Mais uma canção de jazz composta pelo próprio Rappolo e sua trupe. O Repórter pensou que a música era de autoria do The Georgians, que havia gravado em 1923. Foi uma boa intepretação, pensava o Repórter, porém, nada superava aquele solo de clarinete de Rappolo. O bandido havia ordenado a sua saída somente dois minutos depois. Mas o Repórter estava disposto a ficar mais uns minutos para poder curtir o som.
O EDITOR CÉTICO
O repórter levou a informação supostamente verdadeira ao seu chefe, o editor do jornal.
- Está me dizendo que um mafioso veio até você e disse que o boxeador Andre Anderson vai ser morto pela máfia nos próximos dias?
- Sim. Eu pensei que era trote. Mas tomei um susto quando vi que era o *****. Ele estava lá me dando essa informação.
- Difícil crer nisso aí. Ele deu alguma prova?
- Só a palavra dele.
- Isso é insuficiente. Não posso publicar. De qualquer modo, você é repórter de boxe, não de polícia.
“Se conseguir” não era uma ameaça. O Mafioso sabia que o editor não seria convencido. Qual seria a intenção dele?
- Mas temos que encontrar e avisar o Andersen. A vida dele está em risco!
- Pode avisar. Não vai adiantar. Se ele estiver mesmo condenado, não há nada que se possa fazer.
AMOR FATI OU A LUTA QUE NÃO PODERIA SER VENCIDA
O jovem Andersen começou a carreira no boxe em 1915. Botava pra quebrar de forma elegante, o que chamou atenção de jornalistas esportivos, como o Repórter, entusiastas e a própria Máfia. Ganhou e perdeu batalhas, como qualquer lutador. Seus problemas tiveram início quando ele começou a dar prejuízo para as últimas pessoas do planeta a quem você quer dar prejuízo. Todavia, antes, ele dava lucros para essas mesmas pessoas e ganhava muita grana com isso.
Em dezembro de 1925, ele talvez tenha cometido o maior erro de sua vida ao nocautear Wayne Munn. Andersen por um momento teve a ambição de desafiar e contrariar as “forças da natureza”. Nesse dia em que acabou com Munn no ringue foi o dia em que ele realizou tal façanha. Mas o preço seria cobrado.
Ele sabia disso.
A Sociedade Clotoniana o ajudou a lidar com isso. Na época em que era militar, em missão na França, chegou em suas mãos uma edição de “Meditações”, do Imperador Marco Aurélio. No livro IV está a seguinte citação: “entrega-te espontaneamente a Cloto”, uma divindade ligada ao destino dos seres humanos. Notou que a edição da obra era da Sociedade Clotoniana. Ao voltar aos Estados Unidos, se juntou à organização. Ser derrotado por Munn seria algo predeterminado, mas Andersen mudou isso. Foi um desafio a Cloto, ou melhor, à mais fiel reprodução de Cloto entre os homens de Chicago, a Máfia. Era conspícuo que Andersen deu início a uma guerra perdida. No mesmo livro IV, Marco Aurélio diz: “Nada é para mim precoce nem tardio daquilo que para ti está situado no tempo oportuno”. Então, Andersen se tocou. Não é possível desafiar Cloto. Sua rebeldia na luta também estaria predeterminado. Essa era a tese da Sociedade. Sua vida estava entregue a Cloto de qualquer maneira. A saída era aproveitar até chegar o dia.
INCIDENTE NO RESTAURANTE
O Repórter recebeu uma informação de que dois homens armados, a serviço da Máfia ao que tudo indica, foram atrás de Andersen num restaurante em Chicago. Ameaçou de forma sutil os funcionários. Um escritor conhecido estava no local no momento e presenciou tudo. Assim como o jornalista, os bandidos queriam encontrar o boxeador. Sabe-se que Andersen almoçava quase todos os dias naquele lugar. No dia que foram matá-lo, ele não estava.
- Alguns conhecidos me disseram que Andre ficou recluso. - disse Nick, um dos funcionários do restaurante.
- Você contou isso aos capangas?
- Não!
- Ele não obrigaram?
- Eles foram “suaves”. Nem chegaram a tirar a arma.
Graças aos “conhecidos” mencionados por Nick, o Repórter conseguiu descobrir, antes da Máfia, onde estava Andre Andersen.
UMA FORÇA DA NATUREZA
O quarto era esquálido. O homem tinha deixado a família para trás. Quando abriu a porta para o Repórter, ele sequer perguntou quem poderia ser. E se fossem os assassinos? Logo o Repórter notou que o boxeador estava indiferente.
- Eles vão matá-lo!
- Sim.
- Precisa fugir!
O boxeador demonstrou um raro momento de fúria.
- Jornalista burro! Eles fazem o que querem. São como uma força da natureza.
O Repórter percebeu, enfim, por que o Mafioso estava despreocupado em avisar um crime futuro e por que seu editor também fez pouco caso. “Eles fazem o que querem”. O Mafioso sabia que mesmo que tentasse, o jornalista não poderia fazer nada. O bandido estava apenas testando seu poder, sua capacidade, sua força. O Jornalista e Andersen não podem mudar o destino. Buscar a polícia? Estão no bolso. Imprensa? No bolso. Nada impediria o que tem que acontecer. Andersen sabe e apenas aceita seu destino.
Dias depois, Andersen foi encontrado morto naquele mesmo quarto. O inquilino vizinho disse ter visto duas silhuetas no corredor do hotel…
FIM