Neo-noir Kafkiano

“Você é um bosta!”

Foi a última mensagem dela antes de Lucas Daltro levar block em todas as redes sociais. Desde então, a autoestima descia pelo ralo a cada dia, até que não sobrou mais nada. Era um homem magro, com o rosto macilento. A aparência era mediana. Nenhuma mulher lhe dava atenção na rua, ele pensava. Pensou que talvez devesse entrar na academia. Porém, não havia motivação suficiente e não demorou para que ficasse quase recluso. Só fazia o trajeto casa-trabalho.

Trabalhava como atendente numa loja de vestimentos. Um dos seus colegas, Marcelo Noriega, era muito atraente. As mulheres que iam à loja preferiam ser atendidas por ele. Só iam ao guichê de Lucas quando não tinha jeito. Na hora do almoço, os dois conversam.

- Cara, desde que Liliana acabou com o relacionamento, você não sai de casa. - disse Noriega. - Desse jeito, você não vai esquecê-la nunca.

- Nenhuma outra mulher se atrai por mim, cara. - respondeu Lucas. - Não me acho atraente.

- Você não é de se jogar fora.

- Perto de você, eu não existo para nenhuma garota. Sou uma nuvem ou folha seca ao vento, como diz Dalton Trevisan.

- Olha aí, você ainda é culto.

- Quem liga pra isso?

- Eu ligo. É por isso que vou te ajudar duas vezes. Primeiro, eu consegui um encontro com duas garotas que são amigas. Eu confesso que não conseguirei dar conta do recado sozinho. Quero que você venha comigo. Segundo, já que gosta de livros, gostaria de te emprestar esse bom livro de ficção policial.

- “A Grande Intriga”?

- O protagonista é muito foda. É durão, charmoso e brilhante. Consegue a mulher que quiser. Combate o bandido que quiser.

- Tu quer me deixar mais para baixo ainda?

- Cara, é um personagem de ficção. Você não pode se comparar com um protagonista de romance. O nosso encontro será sábado à noite.

No sábado, Lucas se sentia bem pela primeira vez em semanas. Ele e Noriega foram ao bar e encontraram Alice, uma moça de pele clara e cabelo ruivo, e Alecsandra, que era morena com cabelos longos e castanhos. Eram duas mulheres muito bonitas. Com o passar da noite, no entanto, Lucas fracassou na conversa. Não conseguia cativar Alice. Por outro lado, Noriega dava um show e teve êxito em fazer Alecsandra querer ir passar a noite na casa dele. Na saída, Noriega e sua nova ficante estavam bêbados e rindo. Lucas e Alice ainda conversavam, mas ela não dava sinais de que queria algo a mais com ele. Foi quando apareceram dois vagabundos na rua.

- Olha essas duas putinhas com esses dois merdas! - disse um dos vagabundos, provavelmente sob efeito de drogas.

Um deles tentou agarrar Alice. Lucas foi tentar defendê-la e, para a surpresa de um total de zero pessoas, fracassou desgraçadamente. Deu um soco, o bandido dopado com drogas não sentiu nada e devolveu a porrada que fez Lucas beijar o asfalto. A sorte é que Noriega estava no meio. Ele conseguiu colocar os vagabundos para correr fácil fácil, fazendo tanto Alice quanto Alecsandra ficarem impressionadas.

Lucas ainda quis ser gentil.

- Deixa eu te acompanhar até em casa, Alice.

- Olha, eu sozinha me garanto muito mais do que você me acompanhando. - ela respondeu, arrancando gargalhadas de Noriega e Alecsandra e um sorriso amarelo de Lucas. Alice disse em tom de brincadeira, mas havia alguma seriedade na fala dela.

Noriega e Alecsandra passaram a noite juntos. Alice foi para a sua própria casa. Lucas voltou ao bar e encheu o cu de bebidas alcoólicas. Passou o domingo triste e com uma ressaca do caralho. Tentou ler a obra “A Grande Intriga”. Todavia, não tinha concentração. Viu o comecinho da obra: Rick Mayrink era um detetive particular. Bonito, charmoso, com o corpo atlético. Conquistava mulheres com uma facilidade absurda. Era pura literatura escapista. Servia para fracassados deixarem suas vidas medíocres por alguns instantes. Foi por isso que Noriega emprestou. Lucas começou a sentir raiva. Entendi que, ao emprestar esse livro, o amigo estaria zombando dele. Na segunda-feira, pediu demissão da loja, o que significava que agora ele estava recluso pra valer.

Só saía para ir à livraria. Estava atrás de mais literatura escapista. Para chegar às obras de literatura policial, passou pela estante de esoterismo, foi quando, acidentalmente, viu uma obra que lhe chamou atenção.

“O Controle da Metamorfose”, de Joseph Malcolm. A premissa do livro diz que a metamorfose descrita na obra “A Metamorfose”, do escritor Franz Kafka, era possível. Mais do que isso, nós poderíamos controlar essa metamorfose para nos tornamos o que quisermos ser. “Besteira pura”, pensou Lucas. Mas levou o livro mesmo assim.

Não demorou para que a obra capturasse sua total atenção. Lucas estava com a autoconfiança e a autoestima no lixo. O cara estava desesperado e pronto para topar qualquer merda. “Controlar a metamorfose”, diz a obra, “significa apagar a linha tênue que separa o suposto real do onírico”. Mais do que isso, segundo a mesma obra, o indíviduo que pretender ter esse controle precisa ser capaz de ter sonho lúcido. Desse modo, ele poderia ser quem quiser e fazer o que quiser.

“Enxergar o inseto monstruoso, de ventre abaulado e marrom” é o primeiro passo para isso. O inseto teria que ser visto à noite quando a pessoa estava prestes a dormir. A obra subverte uma sentença de Kafka que diz “O instante do despertar é o instante mais perigoso do dia”. Para o autor de “O Controle da Metamorfose”, “o instante do despertar é o instante mais seguro do dia”, pois seria o momento em que a linha tênue entre realidade e sonho se romperia e a pessoa teria total controle da metamorfose.

Lucas achava isso uma total bobagem. Mas o que ele teria a perder se tentasse? Seguiu as técnicas do livro que levariam ao fim das fronteiras entre o real e onírico. Tentava todos os dias esse feito extraordinário e nada. Uma noite, quando ele estava cético em relação ao livro, acabou vendo o inseto descrito pela obra.

- Não pode ser… - ele disse, atônito.

A obra “A Grande Intriga” abriu como se um vento estivesse indo contra os papéis. O inseto voou até Lucas e o mordeu na mão, que começou a tremer. Lucas sentiu uma forte dor de cabeça. Uma luz começou a sair das páginas de “A Grande Intriga”. Uma luz tão forte que incomodou os olhos de Lucas e ampliou sua dor. Sangue começou a descer de suas narinas. Ele caiu no chão do seu quarto e começou a tremer. Barulhos tonitruantes poderiam ser ouvidos por ele.

No outro dia, pela manhã, no mesmo quarto, já não havia Lucas Daltro. Alex Tyler se levantou do chão. Havia dormido no chão. “Caramba, será que eu estava tão cansado assim?”, se perguntou. Olhou-se no espelho. Tyler era um homem bonito, corpo atlético e com um charme absurdo. Era também um detetive particular bem-sucedido. Falando nisso, se apressou no banho, pois tinha que ir ao escritório.

- E aí, meu bem? - perguntou Tyler para sua secretária Epifânia Marine.

- Uma mulher entrou em contato. Eu disse para ela o horário que você chega. Ela pode vir aqui a qualquer momento.

Dito e certo. A potencial cliente chegou cinco minutos depois de Tyler.

- Ela chegou, Alex. Chama-se Alice.

Tyler sentiu uma forte e passageira dor de cabeça. Durou uns dois segundos. O suficiente para mudar sua feição e chamar a atenção de Marine.

- Alex, está tudo bem?

- Tudo, mande ela entrar.

A moça entra. Dor de cabeça de novo. Mais forte e de cinco segundos.

- Algo errado? - pergunta Alice, uma moça de pele clara e cabelo ruivo. Muito atraente.

- Não, nada. Não nos conhecemos?

- Acredito que não.

- Como posso te ajudar?

- Bem… é… minha amiga está desaparecida. Preciso que me ajude a encontrá-la. O nome dela é Alecsandra. Ela passou a noite na casa de rapaz que ela tinha conhecido na noite. O nome dele é Noriega. Desde então, ela não foi mais vista. Faz umas três semanas. O Noriega trabalha…

De novo, a forte dor. Tentou não fazer nenhuma expressão facial que indicasse o incômodo.

- Numa loja de roupas?

- Isso! Como sabe?

Ele não sabia como sabia desse detalhe.

- Intuição.

- Só que ele não apareceu mais no trabalho. Os dois sumiram. Ninguém sabe o que houve. Mas há suspeitas de que esse tal Noriega tenha alguma relação com o crime organizado daqui de Salvador.

- Qual a sua hipótese?

- Acho que Noriega matou ela. E depois fugiu.

- Por que ele a mataria?

- Talvez ela tenha visto algo que não poderia ver. Sei lá. Preciso que descubra isso. Você é impressionante, pelo que disseram. Resolveu todos os seus casos.

- Vou investigar.

- Obrigada. - ela disse enquanto tirava o dinhero do bolso e um pedaço de papel. - Aqui está metade do pagamento e o meu telefone.

- Seu telefone celular pessoal?

- Sim, por favor, me mantenha informada sempre que descobrir algo novo.

Depois que Alice saiu, Marine entregou na sala.

- Você não acredita que esse telefone é só para você falar de trabalho, né? - disse Marine.

- O que você quer dizer?

- Alex, você não viu como essa mulher te olhava? Claro que viu.

- Eu sou profissional, Marine. Você, melhor do que ninguém, sabe disso.

Alex Tyler resolveu ir atrás dos rastros de Noriega. De todas as lojas de roupa da cidade, ele foi no lugar exato. Uma intuição do caralho ou algo mais? Quando entrou na loja, as dores de cabeça. Precisa ir ao médico ver que porra é essa. A dor estava forte, nariz começa a sangrar. O segurança da loja percebe e se aproxima.

- O senhor quer que eu peça ajuda?

- Não precisa. - respondeu Tyler. - Não nos conhecemos antes?

- Nunca te vi aqui.

- Noriega, sabe como encontrá-lo?

- Quase ninguém sabe. Ele não vem trabalhar há semanas.

- “Quase”? Me dê alguma informação. Sou detetive particular. Preciso achá-lo.

- Deixa eu te falar: umas mulheres costumavam vir aqui atrás dele. O pessoal aqui falava que era porque ele era bonito e tal, mas a real é que há mais coisas aí. Drogas, meu caro.

- Você sabe quem são essas mulheres?

- Não faço ideia.

- Nessa loja há câmeras. Não tem nenhuma gravação dessas mulheres?

- Boa pergunta.

O segurança levou Tyler até a sala “Big Brother”. Ambos acessaram o arquivo das gravações. Tyler pegou parte da gravação em que apareciam os rostos de duas dessas mulheres e deu a Marine, que tinha contatos na polícia. Não demorou para ela usar de suas habilidades e descobrir quem são as mulheres identificadas.

- Uma se chama Luana Brito. A outra, Paula Munhoz. A primeira está desaparecida também. A mãe fez um boletim de ocorrência. Paula teve que dar seu endereço fixo, pois responde em liberdade um crime de agressão. Eu consegui descobrir onde ela mora.

- Você é mesmo incrível, Marine.

Paula morava em Brotas, próximo a uma região tomada pelo tráfico. Todo cuidado era pouco. Tyler pensou em abordá-la e ir direto ao ponto. Mas reconsiderou e pensou se seduzi-la não seria melhor. O homem tem uma autoconfiança e autoestima absurdas. Seguiu Paula até uma bar. Aproximou-se, como quem não quisesse nada. Nem precisou dizer um pio. Ficou fazendo contato visual. Uma amiga de Paula notou e falou com ela, que lançou um sorriso para Tyler. Cinco minutos depois, Paula foi quem chegou nele.

- Boa noite.

- Boa.

Dez minutos de conversa e já estavam trocando beijos. Seis minutos de conversa e algumas cervejas bastaram para os dois irem para o motel mais próximo. Fodiam e quando Tyler percebeu que o Grande Momento se aproximava, começou a perguntar sobre Noriega. Era uma forma de adiar o encerramento da cópula.

- Sabe onde encontro Noriega?

- Por que quer saber disso AGORA?

- Quero umas drogas.

- Porra, vamos falar disso depois… - disse Paula, excitada que só a porra.

Mais alguns minutos de penetração, mudança de posição, cachorrinho mais uma vez, pernas abertas, de quatro… Tyler voltou às perguntas. Dessa vez, Paula interrompeu de forma abrupta.

- Conheço seu tipo. Tá trepando comigo em troca de alguma coisa. Vai se foder! - ela levantou da cama e começou a vestir as roupas.

- Não. Eu gostei mesmo de você.

- Não, você é a porra de um viado que só pensa em outro homem enquanto está comendo uma mulher.

- Desculpa.

Ele levantou e tentou beijá-la. Ela virou o rosto só um pouco, mas acabou cedendo.

- Vamos continuar. - ele disse.

- Você ainda tem tesão?

- Claro.

Voltaram à foda. Quando terminaram, Paula falou sobre Noriega, sem precisar ser questionada ou pressionada.

- Noriega se apaixonou por uma moça. Ele está procurado por traficantes da área de Brotas. Ele e a mina roubaram as drogas e o dinheiro e sumiram. A conversa que ouvi é que o patrão das bocas já sabe onde ele está. Um bairro onde está uma facção rival. Vão invadir amanhã de manhã para caçá-lo.

Provável que a mina fosse Alecsandra. Se os bandidos vão amanhã de manhã, melhor que Tyler encontre o sujeito na madrugada. Saiu do motel com a informação sobre o bairro, pegou o carro se mandou para a área onde estaria Noriega e Alecsandra. O detetive contactou Alice, que informou que sua amiga não tinha nenhum parente na área. Não se sabe se Noriega tinha e se ele estivesse na casa de um parente, tornaria a tarefa de Tyler quase impossível. Havia também um único hotel nesse bairro. Um lugar esquálido. Se Tyler tiver um pouco de sorte, o casal bandido está nesse local.

A recepção era uma merda.

- Procuro Noriega e Alecsandra.

- Não tem ninguém aqui com esses nomes.

Será que deram nomes falsos?

- É um casal de pessoas bonitas. Você certamente se lembrará.

- Não há ninguém aqui. Isso aqui não é posto de informação. Vai alugar um quarto? Se não vai, vaza daqui, bonitão.

- Sua besta. Bandidos vão invadir essa área e vão vasculhar cada centímetro dessa área em busca desses dois. Se encontrarem eles aqui, tu vai rodar.

- Mesmo? Que medo.

O argumento não foi convincente. Tyler partiu para um método heterodoxo. Deu uma porrada no Atendente que caiu sobre as chaves dentro um armário preso na parede. O Atendente tinha um revolver embaixo do balcão, mas Tyler havia percebido e deu outra bifa no sujeito. Pegou o revólver e usou contra o sujeito que estava com o nariz sangrando no chão.

- Diz qual o quarto ou meto bala na tua cara. E não mente e nem tente chamar a polícia.

- Quarto 22.

Tyler foi até lá. Sabe que se bater, o casal paranoico vai achar que é alguma cilada, pois ninguém deveria saber onde ele está. O detetive deu um único chute e arrebentou a porta. Noriega e Alecsandra estavam nus e deitados na cama. Levantaram no susto. Ao ver os dois, Tyler começou a sentir fortíssimas dores de cabeça e sangue começou a descer de suas narinas. Ele cai de dor. Noriega aproveita e começa a dar coronhada nele.

- QUEM É VOCÊ, FILHA DA PUTA!? EU VOU TE MATAR!

Ele dá mais uma coronhada em Tyler e arma acaba disparando acidentalmente em direção ao teto. O detetive aproveita o susto e desarma Noriega. Acerta seu nariz com uma cabeçada. Noriega cai e aparenta estar desacordado. Ele se vira para Alice.

- Você veio me salvar?

- Nos conhecemos?

- Acredito que não!

- Te salvar do quê? A história que ouvi é outra. Você está mancomunada com Noriega.

- Isso não é verdade! Ele me sequestrou! Me coagiu!

- Eu atrapalhei o coito de vocês.

- Ele estava me estuprando!

Neste momento, Noriega foi com tudo para cima de Tyler, que caiu no chão e usou as pernas para jogá-lo do outro lado do quarto. Noriega bateu a cabeça numa mesa de vidro. O seu crânio foi arrebentado e ele morreu no hotel.

- Puta merda!

- Você veio a mando de Alice? Me ajude a recolher o dinheiro.

Alice não deu a mínima para o defunto. Tyler viu que ele não significava nada para ela.

- Os traficantes virão atrás de você. Temos que vazar. - disse Tyler.

- Seu nariz está sangrando.

- Me diz onde é o banheiro.

- No fim do corredor. Vá em direção à janela. E vire à direita.

Entrou, lavou o rosto e saiu. Quando deu de cara com Alice e Alecsandra.

- Entrou em contato com sua amiga.

- Você foi muito útil, Tyler. - disse Alice. - Não precisamos mais de você.

Alecsandra usou a arma de Noriega e disparou várias vezes contra Tyler, que foi andando para trás até cair da janela do segundo andar. Ele levou um tiro e caiu em cima de um carro.

Na obra “O Controle da Metamorfose”, o autor afirma que a linha que separa o onírico e o real pode ser apagada. Mas também afirma que essa linha pode ser redesenhada. Como é possível acordar de um sonho? Morrendo nele.

Era de manhã cedo. Lucas Daltro levanta do chão. Do seu lado, um carro com o teto amassado. A impressão que ele tem é que foi ele que caiu ali em cima. Só não se lembra quando. Ao olhar para o outro lado da rua, viu o exército do tráfico.

- Olha aí um alemão! - disse um dos traficantes.

Lucas começa a correr igual a um louco. Um carro passa e ele usa do revólver para coagir o motorista e fugir dali com o veículo. Os bandidos disparam contra o carro. Nenhum atinge Lucas. Ele enfim escapa quando consegue sair do bairro e despistar seus perseguidores.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 01/10/2023
Reeditado em 02/10/2023
Código do texto: T7898826
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