Ladrão sem rastros
Quando alguém quer enfatizar o talento de outrem, é comum recorrer à extensão do tempo. Assim, não raro costuma-se ouvir o seguinte sobre uma pessoa extraordinária: “esse rapaz ou essa mulher é do tipo que aparece a cada cem anos”. Depois de investigar um caso a que fui designado, essa máxima nunca esteve tão precisa.
Há semanas, uma mulher me contatou dizendo que as economias do pai dela, um pequeno comerciante que tem lojinhas na Avenida Sete (em Salvador), haviam sido roubadas. O detalhe interessante: a polícia não encontrou nenhum indício de roubo. O cofre foi aberto, o dinheiro levado, porém nada que indicasse arrobamento. A não ser um recado deixado pelo próprio ladrão em um pedaço de papel: “essa foi fácil”. Ainda assim, a polícia se recusava a crer que ali havia acontecido um furto. Logo após o roubo, o pai da Contratante chegou a ver o “vulto” do bandido. Correu atrás, clamou aos vizinhos, que saíram para ajudá-lo, gerando uma sucessão de ocorridos no bairro. O problema é que ninguém mais viu o suposto ladrão.
- Você quer que eu encontre uma pessoa que você nem sabe se existe?
- Ele existe, sr. Deivid.
- Não há provas.
- Pagamos o que você quiser. Pelo menos, tente.
- Se eu não conseguir cumprir, não vou devolver o dinheiro. Mas me diga por que essa determinação em pegar uma pessoa que você não faz a menor ideia de quem seja ou se realmente há essa pessoa?
- Foram as economias do meu pai. Ele lutou para tê-las.
- Se vocês podem me pagar por esse serviço, dinheiro nunca foi problema…
- Não é profissional você ficar procurando nossa motivação.
- Você tem razão.
- Mais um pedido. Sabemos o que você faz. Passe o fogo no ladrão e na casa dele inteira.
- O serviço vai ficar mais caro.
- Apenas faça.
- Apagar o cara e meter fogo na casa dele?
- Sim…
- Se eu não o encontrar na casa…?
- Dê um jeito de fazê-lo entregar tudo que ele roubou de meu pai. TUDO. Recupere e destrua o resto.
Achei esquisito. Mas a Contratante tem razão. Não é profissional tentar entender, ainda que haja o risco de eu ser um peão num esquema maior. Lembro que uma vez me contrataram para recuperar uns parafusos roubados. Uma missão insólita. Eu sentia que havia algo por trás. Porém, foi melhor nunca procurar saber.
Por onde se começa a procurar uma pessoa que você nem mesmo tem certeza se existe? Por dias olhei arquivos de jornais locais e nacionais em busca de padrões. Há toda a violência característica de Salvador e de outras cidades do Brasil, mas não havia nada semelhante ao roubo das economias do cara. Então, me toquei que nos jornais só aparecem aquilo que Muniz Sodré, em “A Narração do Fato”, chama de “acontecimentos jornalísticos” - ou seja, o fato primeiro ocorre e depois o jornalista faz o “trabalho logotécnico”, apura e transforma esse fato em notícia. O trabalho desse suposto ladrão nunca vai aparecer no jornal porque trata-se de um possível fato e não de um fato concreto passível de ser transformado em acontecimento jornalístico. Ninguém vai noticiar um roubo que ninguém sabe se aconteceu. Dois semestres na faculdade de jornalismo valeram a pena.
Portanto, estou procurando no lugar errado. Fui aos arquivos da polícia, que tive acesso graças a alguns contatos, e notei que houve dezenas de denúncias de (supostos) roubos semelhantes em Salvador nos últimos anos. O padrão: dinheiro ou objeto de valor desaparece durante a noite, o bandido se gaba, a vítima percebe o ladrão pouco antes de ele fugir, pede ajuda aos vizinhos, o que desencadeia uma sucessão de eventos que só é útil ao bandido que utiliza da muvuca para passar despercebido. É um absurdo que todos esses roubos sigam rigorosamente esse script. Só pode ser o mesmo cara.
De volta aos arquivos dos jornais, percebi que houve roubos semelhantes na década de 1930 e 1940 na capital de São Paulo. Dessa vez transformados em acontecimentos jornalísticos - eram outros tempos no jornalismo brasileiro, em que a especulação virava notícia. Script rigoroso: ladrão sem rastros, vítima percebe o crime quando o bandido está fugindo, chama os vizinhos, sucessão de eventos, ladrão nunca mais visto…
Um desses roubos ocorridos nesse período, anos 1930 e 1940, em São Paulo chamou a atenção de um grande escritor brasileiro, Mário de Andrade. Na sua obra Contos Novos, publicado postumamente em 1947, há um conto chamado “O Ladrão”. Fiquei de certa forma embasbacado quando li que a descrição dos eventos em torno do suposto ladrão da história é precisamente igual à descrição dos eventos dos roubos que encontrei nos registros da polícia baiana, incluindo o que estou investigando nesse momento. Ao buscar estudos sobre Mário no Google Scholar, notei que havia pelo menos duas pesquisas alegando que essa história era baseada em fatos reais, embora houvesse discordância quanto à precisão, isto é, se a história descreve o que realmente teria acontecido. Fui a São Paulo, vasculhei as anotações de Mário que estavam guardadas na biblioteca que leva seu nome. Busquei aquelas que haviam sido citadas nos estudos.
Descobri que a história “O Ladrão” era para ser, a princípio, uma reportagem para uma revista local. A publicação - ao contrário de outros jornais e revistas da mesma época - acreditava que a notícia estava na barafunda provocada pelo suposto boato do ladrão e não o ladrão em si, que ninguém sabia que existia. Mas Mário era brilhante e persistente e por isso conseguiu localzar aquele bandido que havia agitado a noite paulistana de um bairro operário. Encontrei anotações de uma entrevista. Por alguma razão, a revista não publicou o artigo de Mário e ele preferiu transformar em ficção.
O nome desse ladrão dos anos 1930-1940 foi preservado nas anotações - havia as iniciais T.B, mas o entrevistado acabou soltando detalhes que serviram como peças de um quebra-cabeça. Outras peças estavam na própria ficção de Mário. Fui ao local onde o ladrão teria agido no conto de Mário. Busquei fotos do local nos anos 1940. Notei que o ladrão antigo não poderia ter ido muito longe. Supus que ele estivesse no meio do “grupinho de três” citado no último parágrafo da história. Chequei obras de histórias de bondes paulistanos. Tracei o trajeto do bondinho do conto, o único meio de transporte que existia naquele local no ano do suposto roubo. Imaginei um perímetro. Vasculhei a história de famílias operárias que viveram nessa área delimitada. Um trabalho longo e maçante.
Mas encontrei. Depois visitar umas cinco famílias distintas que tiveram membros com as iniciais T.B. no nome e sobrenome.
Um homem chamado Thomaz Barassi vivia nesse perímetro no exato ano do suposto roubo relatado na obra de Mário. Ele talvez ainda vivesse em São Paulo. Classe média alta. Eu me passei por um jornalista dizendo que queria escrever a história de operários italianos imigrantes. Teria que ter um pouco de sorte. Primeiro, ele teria que estar vivo. Segundo, se estivesse vivo, já seria nonagenário. Não sei se estaria lúcido.
Uma neta dele me recebeu. Então, a má notícia, o homem havia morrido há seis anos. Todavia, não ia desistir. Ela poderia saber de alguma coisa. Cumprimentei ela. Conversamos. Foi então que toquei no assunto.
Ela ficou nervosa, dava para notar.
- Seu avô certamente se gabou de uma grande façanha.
- O que você quer com isso? Não sei do que fala…
- Mário de Andrade era o único que sabia de identidade de seu avô. Eu também sei. Entretanto, quero é outra coisa. Seu avô teve um discípulo. Quem é? Me diga onde ele está.
- Olha, é melhor você ir embora…
Puxei a arma. Ela ficou atônita.
- Não quero te machucar. Só que estou no meio de um trabalho e costumo usar de meios heterodoxos para cumprir.
Ela caiu em prantos e contou que era o sobrinho dela que mora em Salvador há anos. O Velho o treinou para ser um ladrão eficiente. Antes de morrer, queria deixar um legado e deixou.
- Você tem que prometer que não vai machucar ele.
- Não vou prometer.
- Não posso contar.
- Prefere morrer?
- Não posso permitir que o machuque.
Saí do apartamento dela. Ela não identificou o meu Alvo tampouco revelou o endereço dele. Só que acabou entregando-o quando revelou que ele era um sobrinho. Bastaria uma olhada nas redes sociais. E precisei matá-la para que não conte ao parente que alguém está para encontrá-lo.
De volta a Salvador, achei rapidamente a casa do Alvo. Morava no Corredor da Vitória. Ou seja, tem muita grana. Consegui invadir o condomínio. Pela varanda de um apartamento ao lado, consegui entrar na casa do Alvo. Procurei o dinheiro roubado. Estava guardado em uma sacola. Peguei a quantia exata que havia sido roubada do pai da Contratante. O trabalho estava quase feito. Faltava matar o ladrão e tocar fogo no apê. Esperei algumas horas até ele chegar.
Ele chega. E se assusta quando me vê no sofá.
- Mas que…
- Tenho que admiti que foi é talentoso. Tantos anos metendo a mão e nunca sendo pego. Aprendeu com seu bisavô.
- Você foi alguém que roubei? Eu posso devolver!
- Você roubou dinheiro do meu contratante. Já peguei aqui. Falta só te matar.
- Espera… não faz isso… quem é o seu contratante?!
- Por que quer saber?
- Diga! Vamo lá, diz, quem é?
- O seu César, o comerciante da Avenida Sete.
- Esse cara, você não sabe o que encontrei com ele…
- Não em interessa.
- Deixa eu te mostrar!
- Se fizer movimento brusco, te meto bala.
- Então, veja você! Tem um fundo falso embaixo da mesa. Abre e pega uns envelopes.
- Não.
- Vai, cara. Vai saber para quem está trabalhando.
Acabei fazendo. Não tinha nada a perder. E se ele tentasse alguma coisa, eu iria brocar ele de bala. Abri os envelopes e fiquei horrorizado. Era pornografia infantil.
- Está demonizando o cara para quê? Para que eu entenda que trabalho para um monstro e desista de te matar?
- Não, cara, eu encontrei no cofre dele!
Foi então que me lembrei. A Contratante queria que eu incendiasse a casa e destruísse tudo. Pegasse só o dinheiro roubado. Esse incêndio criminoso era para cobrir o crime horrendo do pai dela. O que fazer agora? Ser profissional ou me deixar levar pelo horror do que tenho em mãos? As duas coisas. Atirei na cabeça do ladrão e incendiei o apartamento dele.
Encontrei a Contratante e devolvi o dinheiro. Missão cumprida. O que não quer dizer que os problemas acabaram. Ela sabe que eu iria ver as fotos e mesmo se não tivesse certeza disso, teria que matar para não correr riscos. Quando fui devolver o dinheiro, caí numa emboscada. O problema (para eles) é que já tinha previsto tudo. Os dois atiradores que ela contratou e que estavam em janelas próximas já foram mortos por mim. A Contratante, coitada, ficou esperando, mas não ouviu nada. Nem esperei ela dizer alguma coisa. Atirei e matei ela. Não vou atrás do pai, não sou justiceiro. Sou um profissional e se a matei foi porque ela tentou ferrar comigo.
FIM