O Livro Romano das Leis

A Viúva me procurou no mesmo dia que aconteceu o crime. Na verdade, ela não levou nem uma hora para perceber que a polícia não daria conta do recado. O Marido estava sentado com a cabeça contra a mesa, que estava banhada em sangue. Foi um único tiro. A bala entrou pelo osso pariental, atravessou em diagonal a asa maior do osso esfenóide e atingiu também a parte escamosa do osso temporal e o osso zigomático. Saiu pela maxila. Morte instantânea.

A Viúva estava de preto. Clichê. Os olhos fundos de tanto chorar. Mas se manteve fria o bastante para fazer o pedido. Desconfio se ela não é uma Viúva Negra.

- Quem é o alvo? - pergunto.

- Eu não sei.

- Ué? Por que me procurou?

- Não é óbvio? Eu quero que você descubra quem matou Humberto…

- Ok, mas você tinha que procurar um detetive profissional, não eu.

- Pensei que fosse fáctotum nesse assunto.

- Não.

Puxo a arma e aponto para ela.

- Tire a roupa. - ordeno.

- Mas o quê? Está louco!?

- Precaução, dona. Tire ou pode esquecer o serviço.

Ela tira. Fica pelada. Nenhuma escuta.

- Meu trabalho é apagar pessoas, senhora. Não descobrir homicidas.

- Eu te pago em dobro. Descubra e mate o desgraçado.- ela diz enquanto veste as roupas.

- Você vai ter que cooperar. Não faz ideia de quem é o responsável? Se há mandante?

- Nada. Mas eu notei algo e não disse à polícia.

A Viúva conta que seu Marido havia descoberto um manuscrito datado do Império Romano. Estava escrito em latim. O título traduzido era “O Livro das Leis”. Segundo as anotações da vítima, o manuscrito era “um conjunto de regras com conteúdos vagos, mas ainda capaz de transmitir conteúdos de forma efetiva”. Ela, a Viúva, percebeu que o documento não estava em lugar algum. O Marido o deixava entre duas obras na estante. Não estava mais. A dedução dela: o assassino e o ladrão do documento eram a mesma pessoa. O Assassino teria apagado o Marido e pego o manuscrito.

- Um bandido culto, a senhora quer dizer.

- Sim…

- Bem, isso ajuda bastante, pois delimita de forma significativa. Essa cidade é uma cidade de incultos. Deixe o resto comigo. Porém, um aviso antes. Não tente bancar a femme fatale comigo.Se for armação sua, eu vou descobrir e te matar, entendeu? Não tente ferrar comigo.

Disse e fui embora. A Viúva nem conseguiu dizer nada em resposta à ameaça.

Suspeito que o Assassino seja um bibliófilo ou pelo menos agiu a mando de um. Encontrar redutos de bibliofilia em Salvador é muito fácil. Basta googlar. Havia uma mísera Confraria dos Bibliófilos na capital baiana. Um grupo de grã-finos se reúne umas duas ou três vezes por mês para conversar sobre livros raros e para colocar esses mesmos livros raros em exposição. O Assassino está nesse meio. A pista da Viúva foi essencial. Enquanto isso, vejo na TV a comoção pela morte de um “intelectual progressista baiano”, um homem de classe média alta. Todo dia o telejornal cobra das autoridades uma resposta. A polícia se sente pressionada, mas tão pressionada que está atrás de algum miserável para jogar a culpa.

O prospecto da Confraria fazia questão de enfatizar que o seu foco principal era exposições de livros raros. É como se eles fizessem questão de afirmar que são bibliófilos e não bibliomaníacos. Quem faz essa distinção é Umberto Eco, na obra “A Memória Vegetal”, que li e decorei trechos para poder me infiltrar no meio desses pedantes. Dias depois, eu fui até o local da exposição.

- Boa noite, meu nome é Paulo Caim. - disse a um dos seguranças, um homem negro, forte e articulado.

- Você é bibliofilo?

- Sou, por quê?

- Você não tem cara de bibliófilo.

- E como seria uma cara de bibliófilo?

- Tem todas as características que a sua não tem.

- É porque sou negro, seu racista?!

- Racista!? Eu também sou negro!

Próximo à entrada estava Eduardo Tanajura, uma das caras que aparecem no prospecto.

- Pois saiba que vim aqu porque há quem possa conseguir para mim uma edição de Isolario, de Bordone!

Falei alto. O suficiente para o senhor Tanajura escutar. Ele se aproximou.

- O senhor tem interesse nas Insulares. - perguntou o senhor Tanajura.

- Há alguns anos li um ensaio de Tarcisio Lancioni, em Almanacco del Bibliofilo, e fiquei obcecado pelo livro das ilhas de Bordone.

- Veio ao lugar certo. - disse Tanajura. - Me acompanhe.

O segurança ficou com a cara enfezada, porém não poderia mais impedir minha entrada.

Nas salas, bibliófilos expõem e se gabam de suas raridades. Até o prefeito de Salvador está aqui, foi ele quem conseguiu reservar esse espaço na Biblioteca Municipal para que os bibliófilos colocassem suas obras em amostra pública. Há, por exemplo, uma edição de Tenda dos Milagres (1969), de Jorge Amado. A peculiaridade que permite essa obra ser considerada “rara” é o autógrafo do autor. O que mais se via na exposição, no entanto, eram incunábulos (livros publicados antes de 1500), o que chamava atenção de bibliófilos por todo o planeta. Não posso me esquecer de citar os livros publicados pela Impressão Régia (de 1808 a 1822). Não vi o manuscrito de ”Livro das Leis”, mas não creio que o Assassino seria tão burro.

Tanajura me levou até um italiano, natural de Veneza, que era especialista em insulares.

- Sabe quem coleciona obras do Império Romano? - pergunto, na lata.

Tanajura ficou cinco segundos em silêncio.

- Claudio, que também é semiólogo, pode te ajudar. - ele disse, e apontou em que canto do salão estava o homem. Em seguida, perguntou: - é a sua primeira vez aqui?

- Sim.

Claudio Brandão estava apresentando ao público algumas obras brasileiras publicadas até 1930. Questionei e pedi explicações sobre obras raras relacionadas ao Império Romano. De novo, cinco segundos para responder.

- Meu caro, recentemente a obra Corpus Juris Civilis, edição de 1878, foi adquirida por mim, mas não está em exposição.

Falei sobre o manuscrito intitulado “Livro das Leis”.

Dessa vez, dez segundos. Rosto dele começa a suar. É o Assassino. Só preciso provar.

- Isso é uma fraude, não existe, rapaz! - ele disse, elevando o tom de voz.

Essa merda é o Assassino.

Antes de fazer mais perguntas, Tanajura e o Segurança vieram até mim.

- Rapaz, eu nunca te vi aqui, vejo que está perturbando nosso Confrades… Nosso Segurança vai te acompanhar até uma sala e depois até a saída. - disse Tanajura, em tom de deboche. - Não dificulte as coisas.

O Segurança me levou até uma sala onde não havia uma única mobília.

- O que é que tem para fazer aqui?- pergunto.

- A sala não tem mobília. É preciso espaço suficiente para lhe dar sova.

- Então, é isso? Não vai me fazer assinar papéis? Menos mau.

- O prefeito atendeu ao pedido do Patrão. Em todo evento da Confraria aparece algum babaca tumultuando. Aí sempre os trazemos para cá, a Sala da Sova. Eu sabia que você era arruaceiro. Tentei salvar sua pele. Você não ouviu. Agora vai apanhar.

Tiro minha pistola da cintura.

- O que acha de eu enfiar essa pistola no seu cu?

Dou um chute nas bolas dele. Ele ajoelha. Dou coronhada e ele cai desmaiado. Saio tranquilamente da sala e caio fora pela janela dos fundos da Biblioteca. Está na hora de fazer umas visitas.

Ligo para Viúva.

- Sabe se seu marido participava de alguma Confraria de Bibliófilos?

- Não sei. Ele não me falava nada sobre livros e afins.

- Por quê? E se ele estivesse te chifrando com alguma puta bibliófila?

- Ele não acreditava na existência de mulheres bibliófilas. Dizia que eu não entendia nada de livro, que era coisa de homem.

Na mesma noite, descubro qual o carro de Claudio Brandão. Consigo abrir a porta-malas. Vazia. Entro e me escondo na esperança de ele não inventar de abrir a mala hoje. Todavia, raras são as vezes em que as coisas saem exatamente como planejado. Brandão abriu o porta-malas para colocar uma caixa de cervejas. Ele estava com um amigo no estacionamento a alguns metros da Biblioteca. Só que eu tinha um plano B. Apontei a arma para os dois. Dei uma coronhada no amigo. Ele continuou acordado. Dei outra e mais outra e mais outra, até que o safado apagou.

- Brandão, você vai dirigir até sua casa e vai me levar até a sua Biblioteca pessoal. Tente alguma coisa e eu pipoco você e sua família, entendeu?

Cinco segundos de silêncio.

- ENTENDEU, PORRA!?

- Sim, entendi.

- Eu sei onde é sua casa. Não tente me enganar.

Brandão dirigiu até o Condomínio onde morava. Eu estava escondido no banco de trás.

- Boa noite, porteiro.

- Boa noite, seu Brandão.

- Sem gracinhas, Brandão. - eu disse baixinho. - Ou o porteiro vai sobrar também.

Saímos do estacionamento. Fomos ao elevador. Ele mora no 18º andar. Na porta do apê dele, eu disse:

- Sua mulher vai perguntar quem sou. Diga que sou um aficionado por bibliotecas. Não demore cinco segundos para responder ou ela vai notar que há algo errado. Você não quer que ela morra por sua causa, né?

- C-certo?!

Ele abre a porta. A mulher pergunta. E ele responde conforme orientei. Cumprimento ela, que mal responde e me olha com desdém. Passamos por cômodos até chegar à Biblioteca. Ele tranca a porta.

- Sua mulher me olhou com ar de suspeição. É bom que ela não chame a polícia. Ou vai todo mundo rodar.

- Que porra você quer?

- O manuscrito. Foi você quem matou Humberto e roubou.

- Aquela puta da mulher do Humberto contratou você e você deduziu isso? Péssimo trabalho, rapaz. Errou.

- Cara, eu sei que esse manuscrito está aqui. Vou precisar trazer sua mulher aqui e explodir a cabeça dela na sua frente para que você abra o bico?

Ele ficou pálido. A valentia no tom de voz esvaneceu. Brandão foi em uma das estantes e pegou o manuscrito.

- Então, eu não errei. Agora preciso cumprir o contrato com a Viúva e te matar aqui dentro. E depois vou matar sua esposa, pois não posso deixar testemunhas.

- Você errou. Eu não sou o Assassino.

- A Viúva disse que você roubou.

- Aquela mulher não sabe de nada. Esse manuscrito é FALSO! Nunca que isso teria sido criado no Império Romano. Me deixar explicar, não quero morrer e nem quero que minha mulher morra.

- Explique.

Brandão explicou que o suposto “Livro das Leis” possuía características incompatíveis com a cultura do Império Romano. Não havia regras precisas, eram vagas de conteúdo, embora permitissem a transmissão efetiva de conteúdo.

- Tá, isso estava nas anotações do defunto.

- Deixa eu terminar…

Ele explicou também que esse conteúdo efetivo só era possível graças à hipocodificação. Uma blá blá blá de semiótico.

- Vai direto ao ponto, porra. Por que isso provaria a falsificação e o que isso tem a ver com a morte do cara?

O direito romano era um exemplo de cultura gramaticalizada, havia regras precisas em detalhes, para cada caso. Essa falsificação demonstra sentenças vagas, que servem como porções macroscópicas - para usar da linguagem de Umberto Eco. Por isso não serviria como um texto geral, pois deveria ser, em tese, um texto entre outros, criado a partir de sentenças precedentes - a não ser que fosse algum livro sagrado. Os romanos hipercodificavam, não hipocodificavam.

- Entendi tudo… - eu disse.

- Humberto vendeu essa falsidade por 50 mil reais. O comprador me mandou analisar. Eu expliquei a ele tudo que acabei de te falar. Provável que o comprador seja o assassino, não eu.

- E quem é o comprador?

- Se eu falar, ele é um homem morto, né?

- E se você não falar, você é um homem morto.

Segundos em silêncio.

- E terei que matar sua mulher, pois é testemunha.

- Foi o Tanajura. Ele é o comprador. Mas não tenho provas de que foi ele quem puxou o gatilho.

- Vamos lá perguntar para ele.

- O quê?!

- Você vai me fazer entrar no condomínio onde Tanajura mora. Ou quer que eu mate você e entre lá de qualquer jeito? Essa baboseira de intelectual me deixou confuso. É por isso que eu quero que você o acuse na cara dele.

Quase meia-noite. Um carro se aproxima de Alphaville. Eu e Brandão estamos dentro. Pelo interfone:

- Tanajura, eu tenho que te falar mais coisas sobre a falsificação. Tem que ser pessoalmente, você sabe.

Passamos pelo porteiro, de novo eu fiquei escondido no banco de trás. Estacionamento. Elevador. Tanajura morava no 21º andar. Por que esses bibliófilos gostam de locais altos? Campainha tocada. Tanajura fica atônito quando me vê ao lado de Brandão. Aponto a arma.

- Que merda está acontecendo aqui?

- Ele me ameaçou com a arma. Não tive escolha.

- Admite, Tanajura. Brandão contou tudo. Você matou Humberto porque ele te ludibriou. Eu entendo. Em outras circunstâncias, não te faria nada. No entanto, eu fui pago. A Viúva quer os dois mortos!

- Os dois!? Mas eu ajudei você! - berra Brandão.

- A Viúva disse para eu matar o Assassino e o suposto Ladrão.

- Eu não roubei nada! - diz Brandão.

- Tem razão. - respondo.

Tanajura ajoelha e chora como uma criança. Dizendo que me pagaria o triplo que a Viúva pagou. Esses filhas da puta acham que tudo é dinheiro. Quase tudo é dinheiro. Não tudo.

- Fui eu! Eu o matei! - admite Tanajura. - Atirei na parte de trás da cabeça daquele bandido miserável!

Atiro na cabeça de Tanajura, que também era um bandido miserável, diante um Brandão embasbacado.

- Eu te ajudei! - Brandão implora.

- Sim, mas você me viu matar. Não posso deixar testemunhas.

Atiro na cabeça de Brandão. Dois defuntos. Ligo para a Viúva.

- Está feito. - afirmo.

FIM.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 27/09/2023
Reeditado em 08/01/2024
Código do texto: T7895606
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