Reportagem no Bar de Comédia

Não foi uma boa ideia ter montado o escritório antes de ter clientes. Os jornais não estavam aceitando minhas ideias de pauta. Houve uma situação em que fui pessoalmente à redação de um jornal para insistir que aceitasse minhas pautas. Logo fui convidado a me retirar e ainda propuseram uma “promoção”: posso ter a companhia de dois seguranças para me ajudar a desfrutar do convite.

Lembrei de uma frase do grande Claudio Abramo. Ele via o jornalismo como uma carreira. Hoje em dia, isso parece que nem cabe mais. Hoje o jornalista se depara com pouquíssimas ofertas de emprego. O jeito é ser “empreendedor”. Tentei, abri escritório e tudo, mas estou deficitário.

Depois de ter sido ameaçado pela dona do estabelecimento onde está meu escritório - estou devendo dois meses de aluguel -, recebi uma resposta improvável. O editor do jornal “Óculos & Bigode” me telefonou. Ele cogitou em aceitar a pauta que encomendei, todavia sugeria mudanças. Um dos meus problemas está em aceitar sugestões que modifiquem minhas ideias. E pra falar a verdade, se fosse para escolher, esse jornal estaria entre as minhas últimas opções. Vou aceitar porque ninguém mais me quer.

O “Óculos & Bigode” é voltado para a cobertura de comédia soteropolitana.

- Você sugeriu cobrir a primeira noite de um bar de comédia inaugurado em Stella Maris. Pertinho da praia, hein? - disse o editor, com um tom sarcástico. - A pauta é boa. Mas inaugurações de bares de comédia são feitas por jornalistas experientes no tema. Vimos o seu currículo e não vimos a experiência necessária. Porém, não se preocupe. Uma modificação sutil e está tudo certo, que tal?

Como iria recusar? Ninguém mais me quer. Não tenho poder nenhum de barganha. Deu até vontade de responder: “amigo, altere tudo, até a última vírgula da pauta! Só me dá esse trabalho, pelo amor de Deus!”.

- Tudo bem. Não sou muito chegado - aliás, quase ninguém é - a alterações de pauta. Mas vocês editores existem para deixar o repórter nervoso, então vai em frente.

- Exato, nós iremos modificar tudo que vocês escreverem. Não há nada que não possa ser reescrito, rapaz!

Fui ao escritório da públicação, onde o editor deu detalhes.

- Sua reportagem sairá no Talese Notes. Queremos que você faça o perfil de um comediante conhecido como Charles Allen (nome artístico). Cara velho, um coroa, suas piadas politicamente incorretas hoje geram revoltas. Ele representa o fim de uma era. Trabalha num bar decadente na Pituba. Está à beira de uma demissão. Escreva um bom texto e ele sairá na próxima semana.

Na noite do mesmo dia em que recebi orientações do editor de “Óculos & Bigode”, fui ao bar de comédia na Pituba atrás do seu Charles Allen. Questionei o segurança, que me indicou um tal de João, que tem ligações com o dono do estabelecimento. João me respondeu que Charles estava no camarim. Suas aparesentações costumam acontecer às 21 horas. Era um dia de sábado. Cheguei uma hora antes. João me conduziu até o camarim, onde Charles parecia estar ensaiando.

- Charles, esse rapaz quer te entrevistar.

- Opa, qual publicação?

- Óculos & Bigode.

- Mas nem ferrando!

- Ué, por quê?

- Vocês escrevem coisas absurdas sobre mim. Dizem que estou em decadência. Vão se foder vocês.

Ele estava visivelmente alcoolizado. Claro que anotei.

- O que você está anotando, moleque?!

Charles quebrou uma garrafa vazia de uísque e usou o caco para me ameaçar. Estava visivelmente furioso. Claro que anotei isso também.

- Eu juro que se você anotar mais alguma coisa, eu vou QUEBRAR A SUA CARA! - disse Charles, irritado.

Dessa vez não deu para anotar nada. Saí correndo do camarim.

João me acompanhou.

- Ele não está muito bem. - ele disse e depois foi conversar com Charles.

Estava numa situação ruim. Como fazer o perfil de um cara sem ter feito nenhuma entrevista com ele. As únicas citações que tenho são ameaças e negativa. Estava em apuros. Então, lembrei de “Frank Sinatra está resfriado”, um épico do jornalismo literário, um perfil feito mesmo sem a entrevista do personagem principal. Tentei seguir o modelo. Primeiro, entrevistei o próprio João. Queria saber o que eles tinham conversado.

- A mesma conversa de todas as noites. Ele está amargo. Ressente porque reconhece, embora jamais admita, que hoje é uma pessoa sem graça. Ninguém mais gargalha com as piadas dele. E toda noite é a mesma piada. Ou variações dela. - explicou Joe.

Naquela noite, até a hora do show de Charles, eu entrevistei as pessoas que haviam entrado em contato com ele. Além de João, uma prostituta, um garçom e um traficante de cocaína que foi cobrá-lo. Só faltava assisti-lo.

21 horas. Bar tem poucas pessoas. De 34 mesas, cinco ou seis estava ocupada. Umas quatro estava ocupada por casais. Antes de ele chegar, havia muito mais gente.

Não havia texto, ele estava improvisando.

Era uma piada sem graça atrás da outra. O público estava perdendo a paciência. Logo havia respostas diretas contra as piadas dele. Um bêbado no fundo do bar fazia comentários ácidos contra ele, arrancando risos e aplausos da plateia. Charles Allen também perdeu a paciência.

- Quem sabe a puta da sua mãe não faria melhor do que eu!

O Bêbado mordaz retrucou xingando a mãe dele de volta. Ficou uma clima tenso. João me garantiu que isso acontece toda noite quando há o “Show de Charles”. O Bêbado foi retirado pelo segurança. Ele quase briga na mão com o comediante. João mais uma vez disse que isso aconteceu muitas vezes. Parece até que os dois combinam. Entrevistei o Bêbado. Ele balbuciava palavras indecifráveis. Só entendia os palavrões.

Anotei e registrei tudo que aconteceu naquela noite. A “Talese Notes” era uma coluna reservada para comediantes perdedores. Charles já havia sido objeto da coluna várias vezes. De qualquer modo, o texto estava pronto. E iria ser publicado. Até que surgiu a notícia do suicídio de Charles, o que causou comoção, inclusive em mim. O jornal ”Óculos & Bigode” começou a sofrer fortes críticas, pois atacava Charles de forma pesada e frequente. O editor desistiu de publicar meu texto, apesar de ter me pagado. Se publicasse, eu poderia apanhar na rua. Logo havia pichações na parede do prédio onde ficava o escritório de “Óculos & Bigode”. “Assassinos!”. Na televisão e em outros meios de comunicação, emergiu um debate sobre a prática de bullying no jornalismo.

Paguei os meses atrasado de aluguel, mas fechei o escritório. Nenhum jornal me queria e depois de ter se espalhado por aí o fato de que eu fui o autor de um texto (não-publicado) que esculhamba Charles, entrei numa espécie de “lista negra”. Minha carreira jornalística estava arruinada.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 14/09/2023
Código do texto: T7885592
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