Parte um
(1)
Nicolas ouvia mais uma vez os gorjear das aves atrás do enorme muro que cir-cundava a cadeia aos arredores de Funza, cidade próxima de Bogotá, anunciando a chegada de mais uma terrível noite. Os gritos de dor incessante do prisioneiro ao lado da sua cela o incomodavam e lhes davam arrepios. A impressão sentida por Nicolas era de ser a última vez que aquele infeliz gritaria, dada a intensidade do sofrimento e da dor que os gemidos o faziam presumir. Na sua cela, já sem forças dado a maneira como seus algozes o estavam tratando, que em algum momento pensou no ato mais covarde que um homem poderia praticar, o suicídio. Mas veio lhe em pensamento se todos esses gritos do prisioneiro ao lado não seriam uma encenação para prejudicar sua coragem e para que, na hora que fosse levado ao encontro do seu inimigo, ele já não estivesse em condições de ser valente como se mostrou no dia em que foi jogado cadeia adentro e na qual quase enforcou um soldado numa luta tentando escapar.
Se a intenção dos canalhas era essa, por algum momento, Nico chegou a pen-sar que eles tinham conseguido. Afinal, cinco dias de total insanidade anunciadas pe-los cantos dos pássaros que, independente da beleza que podiam ter, para ele não passavam de pequenos abutres anunciando a chegada de mais uma noite de insônia. O frio noturno doía os ossos do corpo e somente um fino coberto para aquecer. Baru-lhos surgiam de todos os lados, verdadeiros sons que pareciam emergir das profunde-zas do inferno e que o faziam implorar para não mais estar ali. E durante as manhãs com o calor descomunal, homens vestidos de soldados apareciam apenas para deixar a pior das refeições que podia existir. Apesar de todos os seus protestos e apelos para falar com um superior ou com o representante da embaixada brasileira, eles somente pontificavam com tons de zombaria.
─ Tudo que você está passando agora é diversão perto do que está para lhe acontecer. ─ E riam. ─ Espere o aviador chegar! Espere o aviador chegar!
Ao final do sexto dia, Nico foi retirado da cela e arrastado por dois homens, os mesmos que às vezes levavam a gororoba pela manhã. Ao passar pelas luzes do corre-dor, pode ver de perto os rostos dos guardas. O da sua direita, cuja cabeça era des-proporcional para um corpão grande e forte, tinha cicatrizes na face, como se houves-se sido atacado por algum felino. Já o da sua esquerda igualava-se em tamanho, mas tinha um rosto grande e redondo como uma calota de fusca dos anos oitenta. Nico se debatia e gritava para saber para onde o carregavam, mas não ouvia respostas, ape-nas o sorriso indecente do cara redonda e o silêncio fúnebre do outro, até que parou de gritar e deixou ser levado. Foi arrastado por um corredor úmido e sujo por mais de trinta metros. Chegaram ao que parecia ser a única porta de madeira do lugar tirando a impressão de uma cadeia e passando a sensação de um lugar ainda mais sombrio.
Os dois soldados bateram na porta e entraram. Nico surpreendeu-se ao ver um grande escritório que mais parecia uma sala de espionagem pela quantidade de moni-tores espalhados. Tentou olhar para algumas telas, mas a única imagem que lhe cha-mou a atenção foi as dos portões de entrada, os quais ele passou há alguns dias. Con-tinuaram a arrastá-lo por mais duas portas até que entraram numa sala completa-mente branca. Depois de toda a escuridão da sua cela, Nico teve a sensação estranha de ter sido jogado dentro de um copo de leite. Foi lançado em uma cadeira no centro da sala e deixado sozinho. Logo em seguida, um homem de aproximadamente cin-quenta anos, vestido de paletó preto, camisa branca, calça jeans e uma bota de couro estilo cowboy, entrou na sala.
Nico ficou olhando para aquele “John Wayne colombiano”, até que o homem o rodeou e disse com um sorriso entre os dentes:
─ Ainda não tivemos o prazer de nos falarmos, “senhor homem da lei”, mas você me conhece, não é mesmo?
Nico permaneceu calado. A resposta era óbvia. O Aviador.
─ Você entra aqui no meu país, ofende e desafia a minha gente e bisbilhotei-a os meus negócios! Aonde pretender chegar com isso? ─ perguntou o Aviador com uma expressão de fora da lei.
─ O meu assunto não é com você, é com Rogerio ─ respondeu Nico. ─ Eu exijo que me solte. Eu não pratiquei nenhum crime contra o seu país ou contra você. Eu pretendo apenas levar Rogerio para ser julgado no meu país.
─ Isso não será possível. Nós temos algo que você precisa muito. Sem ela, nada disso tem sentido. ─ Ele se levantou e colocou o celular bem nos olhos de Nico. Aper-tou o botão. Luiza surgiu aprisionada em uma cela igual a qual ele estava.
Num momento de furor, Nico partiu para cima dele, mas o Aviador, com a ha-bilidade de um lutador oriental, deferiu um golpe que acertou diretamente o seu ros-to, lhe atirando de volta à cadeira, só que dessa vez com o nariz estourado. Mesmo com o sangue escorrendo no rosto e entrando pela sua boca, Nico teve uma ação en-corajadora e partiu outra vez para o ataque, mas novamente voltou a cair agora com a bota que lhe atingia o estômago impossibilitando novas tentativas de ataques
O Aviador deu um assobio alto e agudo. Os dois soldados retornaram à sala pa-ra conduzi-lo de volta à cela. Antes de sair, ainda teve força de olhar para o Aviador e dizer num som alto misturado com o gemido.
─ Isto não acabou!
─ Pode apostar que não. Está apenas começando ─ disse ele rindo.
Depois de ser arrastado novamente por todo o corredor, Nico encostou-se no canto da cela e ficou se remoendo de dor. Dessa vez, seu vizinho estava estranhamen-te calado, como se fosse a vez de Nico gemer. De onde padecia encostado num canto conseguiu ver por uma pequena janela no alto da cela o clarão da lua que entrava e pensou que agora, mais do que nunca, precisava fugir dali o mais rápido possível. Lui-za estava correndo sério risco de vida e na certa Rogério sabia que ela era a única tes-temunha que ainda vivia. A única testemunha do pior episódio que lhe aconteceu em toda a sua existência. Então ele começou a se lembrar dos seus pais, principalmente de seu Antenor Nobre. E percebeu que muito havia se passado até a chegada naquela situação.