Jornalismo de futebol

"Quero a vitória do time da várzea" - Paulo Leminski

***

Meu editor estava puto.

“Isso aqui está uma porcaria. Desde o título - Muralha rubro-negra se compara à de Constantinopla - até o fim da matéria. Porcaria!”

Não adiantou explicar que eu queria sair do estilo “quadrado” do jornal.

“Você é pago para seguir esse estilo “quadrado”, rapaz! Você acha que é Nelson Rodrigues, mas tudo que produz é literatice. Essa merda vai pro lixo.”

Literatice?, perguntei.

“Literatice é aquela porcaria escrita com a pretensão de ser literatura”, ele respondeu quase rindo. O editor gosta de destruir repórteres como eu. “Vai para casa, rapaz. Amanhã vamos ver o que farei com você”.

Achei estranho. Normalmente, eu saio duas ou três horas depois do encerramento do meu horário de trabalho. Na saída da sala do editor, encontrei Mario.

“Já vai?”, ele pergunta.

“Sim”.

“É, amigo, seu trabalho deve ter sido uma porcaria. Todo mundo aqui sabe: se o horário de trabalho é respeitado, é porque o jornalista não está indo bem. Até logo”.

Cheguei em “casa”, um apartamento esquálido em Brotas. No tapete próximo à porta, um livreto. “Teoria da proporcionalidade segundo Mardara Baidel”. Joguei-o em cima da mesa e deitei no meu colchão. Estava chateado. Sou um homem sensível. O editor disse que produzo literatice, ele sabe que doeu, aquele sádico filho da puta e desgraçado.

No outro dia, domingo pela manhã, um horário incomum para mim, estava pronto para sofrer mais humilhações do editor.

“Você vai para o Canelão”, ele disse sem nem me dar bom dia.

“Mas eu sou jornalista esportivo, isso não faz sentido”, eu disse.

“Amigo, quem decide o que tem sentido aqui sou eu. Você vai para o Canelão. Beto, o fotógrafo vai com você”, ele respondeu.

Não fazia sentido, eu pensava contrariando a determinação do editor. Normalmente, quem vai para o Canelão são repórteres policiais, não jornalistas esportivos.

“Você vai cobrir um jogo de várzea. Um campeonato no bairro. Adiante-se, pois começará às nove da manhã”, disse o editor.

“Campeonato de várzea? Mas hoje tem Campeonato Baiano”.

“Tem, mas você não vai cobrir”.

“Por quê?”

“Devo-lhe satisfação? Não devo, porém vou dizer. Achamos que cobrir jogo de várzea será uma experiência adequada para você. Sem jogos épicos para estimulá-lo a produzir literatices. O jogo da várzea é duro e direto como deve ser a sua escrita”.

Ele não sabe que Nelson Rodrigues seria capaz de transformar um jogo de várzea em um épico. Só que ele tinha razão: eu não sou o Nelson.

Na saída da sala do editor, topei com Mario, de novo.

“Vai para onde hoje, colega?”, ele pergunta.

“Para o Canelão”, eu respondi.

“Mas você é jornalista esportivo”.

“Pois é”.

“É, amigo, seu trabalho deve estar sendo uma porcaria. Todo mundo aqui sabe: se alguém é enviado para um lugar incomum de cobertura, é porque seu trabalho de jornalista não está indo bem. Até logo”.

Estávamos a caminho do Canelão, de carro, quando notei que Beto estava com o mesmo livreto que encontrei ontem em minha casa. Teoria da proporcionalidade segundo Mardara Baidel. Perguntei a ele o que achava desse livreto.

“Ele parte de um acontecimento público: um homem passa a mão na bunda de uma mulher e acaba sendo denunciado e detido na delegacia. A autora, Mardara Baidel, achou desproporcional. Segundo ela, a mulher deveria ter passado a mão na bunda dele. Retaliação proporcional. No geral, a tese dele é interessante. Mas isso nunca funcionaria no meio da bandidagem, em que as retaliações são absurdamente desproporcionais”, explicou Beto.

Chegamos ao Canelão, no campo da várzea. A “sala de imprensa” era em cima de uma “laje” de uma casa em construção próxima ao campo. Eu e Beto éramos os únicos jornalistas a ver o jogo.

“O que foi que você fez para vir parar aqui, rapaz?”, perguntou.

“Segundo o editor, fiz literatices”, respondi.

“Caralho, isso é desproporcional demais”, ele disse.

“O que você fez?”

“Briguei numa manifestação. O cara foi parar no hospital. O jornal pagou o serviço hospitalar”.

“Porra, você não foi demitido.”

“Pois é, foi uma desproporcionalidade a favor”.

O local era ótimo para Beto tirar fotos. “Provável que sua matéria será uma notinha pequena e terá apenas uma foto, mas vou tirar várias mesmo assim”. Todavia, para mim era péssimo. Tinha que descer até a arquibancada e conversar com torcedores. O jogo não tinha juiz, os próprios jogadores marcavam falta, o que resultava em brigas logo resolvidas.

“A rapidez com que se resolve conflitos aqui é impressionante”, questionei um torcedor-jogador.

“Claro, o Bill Gatos está de olho”, respondeu.

“Quem é Bill Gatos?”

“Você pergunta demais. Ninguém gosta disso aqui”.

No jogo, um jogador chamado “Dorme no Mato” dava show. Vários gols, dribles… Como um cara desse não é profissional? Um outro torcedor-jogador tinha uma teoria.

“É o cuspe dele”, disse. “É transparente, cristalino e límpido. Todo bom jogador tem um cuspe assim”. Claro que registrei tudo.

Outros jogavam muito bem. Um deles parecia imponente. Marcava falta mesmo quando não era e mesmo assim ninguém contestava. Logo fiquei sabendo que era o tal Bill Gatos, o traficante que manda no Canelão. Chamam ele assim em referência ao empresário Bill Gates. Bill Gatos era um empreendedor do crime e gostava de gatos. Em um determinado momento do jogo, o time adversário ia em direção ao gol quando Bill Gatos marcou uma falta inexistente. Foi algo tão absurdo que a torcida não gostou. Mas quem iria contestar? O público foi diminuindo. Quando Bill tocou de novo na bola, alguém na arquibancada vaiou. O jogo seguiu normalmente. Foi quando Bill Gatos pediu para sair, de forma abrupta. “Lá vem merda”, escutei alguém dizer.

Estava organizando minhas anotações e Beto me mostrava umas fotos, quando olhamos para o campo e tomamos um susto. Havia quatro homens fortemente armados. Todo mundo ficou quieto.

Bill Gatos saiu de trás dos homens e questionou: “quem vaiou?”. Silêncio.

“É melhor entregar o verme que me vaiou ou vamos escolher qualquer um para pagar o pato por ele. Bora, rebanho de desgraças!”, berrou Bill Gatos.

Então, houve uma muvuca no meio da torcida. Eram homens empurrando o suposto responsável pelas vaias. Um tal de Claudio que trabalhava de pedreiro. O pobre coitado foi colocado no centro do campo e começou a apanhar dos sicários de Bill Gatos. E não era porrada com o uso de mãos. Ele levava pauladas. Depois ele foi retirado sangrando e enviado a um hospital. Eu estava horrorizado, Beto nem tanto.

“Vamos cair fora daqui”, eu disse.

E estávamos indo. Quando os mesmos sicários nos barraram.

“São jornalistas?”, disse um deles. “Nos acompanhem”.

Fomos levados até Bill Gatos.

“Vocês vão colocar no jornal o que viram aqui hoje?”, ele perguntou.

“Claro que não. O que acontece no Canelão, fica no Canelão”, Beto disse.

Bill Gatos riu.

“É claro! Me entreguem a câmera e as anotações”, exigiu Bill Gatos. Ele rasgou minhas anotações em pedacinhos. Quando ia quebrar a câmera de Beto, o mesmo fez um pedido.

“Por favor não seja desproporcional”, disse Beto.

“O quê?”, perguntou Bill Gatos.

“Basta deletar fotos. Não precisar quebrar. Eu paguei uma grana por essa câmera. Seja proporcional, como recomenda Mardara Baidel”.

“Quem é essa?”

Beto tirou da mochila o livreto “Teoria da proporcionalidade segundo Mardara Baidel” e entregou a Bill Gatos, que leu algumas linhas. “Interessante”, disse o traficante, que devolveu a câmera depois de ter apagado as fotos.

“Obrigado pela recomendação. Esse livro parece bom. Eu nem gosto de ler, mas as ilustrações são boas”, disse Bill Gatos. “Eu ia mandar moer vocês de porrada, só que como vocês foram legais, vou deixar passar. Nunca mais voltem aqui”.

Fomos reconduzidos ao carro do jornal. No caminho de volta ao jornal, Beto ficou se gabando da sua capacidade de conversar. Ele deve sua habilidade a Mardara Baidel. A câmera dele estava inteira. Minhas anotações, não.

“Mas se Bill Gatos seguir a recomendação do livro, ele está fodido”, disse Beto aos risos. “Bandidos precisam ser desproporcionais ou terão seus negócios arruinados”.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 07/07/2023
Reeditado em 07/07/2023
Código do texto: T7831374
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