A maleta - 1° capítulo
Abro ou não abro? A minha frente estava a maleta que mudaria o rumo de toda a minha vida. Fui até a cozinha, descasquei uma banana, mastiguei, joguei a casca fora. Pensei mais um pouco. Voltei à sala e resolvi abrir a maleta. Não sei muito bem o que podia me reservar quanto ao seu conteúdo. Mas era época de natal, era dezembro de 98. Outros tempos, é verdade, mas foi a partir desse ano que pude me conhecer melhor. Não sei como explicar esses fatos tão densos em minha vida. Na realidade até sei, porém as palavras devem ser escolhidas com cuidado, para que não pensem que sou um assassino. Fiz isso porque era necessário. Era extremamente necessário matá-la para que eu alcançasse meus objetivos. Aliás, foi uma morte rápida a dela, com pouca dor.
Quando entrei no meu carro no dia 12 de agosto de 1998, conheci uma mulher chamada Ângela Figueiró. Ela era linda. Tinha as medidas perfeitas para uma modelo. Pena que naquela manhã do dia 12 de agosto ela resolvera me assaltar. Entrei no carro, dei a partida, e um segundo depois Ângela me apontava um revolver pelo lado de fora do veículo. Imediatamente a deixei entrar e me roubar. Ela tinha classe e sensualidade de sobra. Com cabelos loiros, pele clara, olhos azuis e lábios carnudos. Parecia feita de porcelana. No começo queria entender porque uma mulher como aquela estava assaltando. Bem vestida, com um decote de tirar o fôlego, sabia a gramática de cor, aparentava ser culta, viajada, e, sobretudo, era jovem, muito jovem. Quando ainda não a conhecia, eu dava 28 anos para ela. Depois fui descobrir que, na verdade, ele tinha 25. Recém aprovada no concurso. Era filha de pais ricos, morava na grande Porto Alegre, e havia se mudado para capital por causa do namorado. O nome dele? Chapola. Isso mesmo, Chapola. Ele comandava uma das bocas mais rentáveis de fumo da zona norte. O meu papel era apenas desvencilhar as versões que chegavam aos meus ouvidos. E foi assim que matei as minhas primeiras vítimas. Ângela bem que tentou me assaltar, mas ela não sabia o que estava fazendo. Queria atirar em mim sem engatilhar a arma. Roubou-me apenas algumas cédulas de cinqüenta e saltou, correndo. Naquele instante eu sabia que eu era capaz de matar. Soltei o freio de mão e acelerei, atropelei Ângela sem piedade, ela ainda tentou desviar e só por isso que se salvou.
No dia seguinte, eu desfrutava do sol de minha varanda quando o meu celular toca, era Ângela com o poder de sua voz sensual:
- Bela tentativa, Doutor.
- Quem é?
- É a Ângela, tivemos um encontro inusitado ontem.
- Desculpe. Não me encontrei com nenhuma Ângela ontem.
Desliguei o telefone. Em vão. O celular toca, é o mesmo número, me levando da minha cadeira de plástico, saio do sol e vou até a sala de estar:
- Alô?
- Como tu és grosso, Doutor.
- Quem é você?
- Não está lembrada de mim? Tu tentaste me atropelar ontem, depois que errei o gatilho.
Calmo, eu respondi:
- Tu não erraste o gatilho, tu nem engatilhou, és amadora.
- Eu não diria isso se fosse você.
- Como conseguiu esse número?
- Digamos que tenho alguns contatos...
- Pois então procure outro otário para ligar...
Quando eu estava prestes a desligar ela me interrompe:
- Eu sei do teu passado, Doutor...
- Do que tu estás falando?
- Tu sabes muito bem do que estou falando, da garota que tu esqueceste no HPS...
- Quem é você?
- Uma admiradora secreta.
- Não sabia que admiradoras secretas eram assaltantes.
- Não seja idiota, Doutor. Não sou uma assaltante, sou uma jogadora.
- O que você quer de mim?
- Me encontre no mercado público, às 11 horas, quero lhe fazer uma proposta.
- Onde no mercado público?
- No segundo piso, estarei com uma blusa vermelha e uma calça jeans.
- Um tanto informal...
- Tu vai ir?
- Eu vou receber meu dinheiro de volta?
- Se tu fores um bom garoto...
Desliguei o telefone. E fiz tudo no impulso, não sabia exatamente onde eu estava me metendo, só queria meu dinheiro e meu segredo de volta. Logo que me formei em Medicina, em 93, cometi um erro irrevogável. Minha mãe sempre dizia que médico não pode errar, e exercer essa profissão é condenar sua vida em prol das outras. Ela tinha razão. No dia 4 de maio desse ano esqueci de repassar uma garota de 17 anos para cirurgia de emergência, era Natal, estava chovendo, a emergência lotada, dezenas de casos, e quando lembrei daquela garota ela já estava morta. Por sorte ninguém mais lembrou, joguei fora sua ficha de atendimento e sumi com o corpo. Ela, em princípio, não tinha família, era uma garota abandonada, que morava em uma vila. Chegou ao hospital ensangüentada, havia sido atropelada na Borges de Medeiros. Esse caso me abalou porque eu podia tê-la salvado. Anos mais tarde eu pediria demissão por eu não conseguir manter minha postura de médico residente. Desde 96 trabalhava em consultório, até encontrar Ângela.
Fui ao mercado público no horário combinado, a encontrei sentada em uma mesa de bar, no segundo piso. Ela segurava uma maleta a qual me traria inúmeras dores de cabeça. Sentei ao seu lado, e mantive meu rosto erguido, sem olhá-la.
- Olá, Doutor. Demoraste.
- Muito prazer, Ângela...
Ela fala rente a minha orelha, quase beijando o meu pescoço:
- O prazer é conseqüência. Satisfação.
Meu corpo estremeceu todo, que mulher era essa? Não consegui mais ignorá-la. A encarei quase que cara a cara:
- E então, qual é a sua proposta? E como sabe desse caso da garota?
Ela olha para o lado, preocupada e, sem mais nem menos, me beija. Foi o beijo mais saboroso que já experimentei. Senti sua língua envolvente, ela sabia como conquistar um homem. Quase me rendi, até que recuei:
- O que você está fazendo?
- Precisamos sair daqui!
- Por quê?
- Tu estás de carro?
- Sim.
- Então vamos!
Ela se levanta com uma agilidade invejável, me puxa pelo braço e me leva até o primeiro piso. Caminhamos rapidamente até o meu carro. Ela pediu que eu a levasse ao meu apartamento, não gostei da idéia, mas o que eu tinha a perder? Ela estava tensa e acabou me assustando. Dirigi abismado, durante o percurso ela ficou quieta, e só pude sentir suas mãos sobre minha perna. Perguntei o que ela estava fazendo, ela disse não saber, mas colocou suas mãos sobre o meu órgão sexual, e isso me deixou com os desejos a flor da pele. Depois desse detalhe só lembro dela de quatro pra mim, na cama, gemendo, murmurando, me arranhado, enfim...acabei me envolvendo com uma legítima jogadora.
Descobri que ela fora sincera comigo desde o início. Ao mexer em suas roupas jogadas no chão de meu quarto, encontrei sua carteira: “Ângela Figueiró - Agente Federal”. Fiquei indignado, senti pela primeira vez, a vontade inalienável de matar uma mulher. Ao lado de suas roupas estava a maleta, a maldita maleta que fui abrir na hora errada. Ângela acordou bem na hora em que me deparei com mais de 25 mil Euros dentro daquela maleta. Ao me ver com o dinheiro ela se apossa de uma pistola já engatilhada e atira em minhas costas, eu desmaio e ela foge. No começo achei que fosse morrer, mas fui forte, me automediquei e chamei um amigo para que retirasse a bala enfiada dentre minhas costelas. Desde esse dia Ângela se tornou uma caça para mim. Passei semanas atrás dessa vadia. Para uma agente federal corrupta, ela sabia muito bem como se esquivar das confusões que arranjava.
No dia 13 de Dezembro fui até a favela de Chapola, na Zona norte, em uma mão segurava uma pistola e na outra uma faca afiada para situações de emergência. Passei despercebido, por ser médico, os favelados já me conheciam. Foi então que flagrei Ângela e Chapola fazendo sexo. Ela era mesmo uma cadela, primeiramente atirei a faca nas costas dela e em seguida, dois tiros no seu crânio. Chapola mal teve tempo de respirar, levou um no peito e outro no meio da testa. Naquele dia, no mercado público, Chapola estava nos vendo. Ângela me beijou para que ele não a reconhecesse, afinal, a namorada dele não beijaria outro homem, beijaria? Ângela fora esperta desde o começo. Uma filhinha de papai, que entrou para o polícia e namorava um traficante, coisa boa não podia ser. No mesmo dia em que matei Ângela e Chapola, encontrei a mesma maleta, não quis abrir de imediato, preferi ir para a casa. Passei pelos favelados tranquilamente, como quem só foi ver um pasciente, entrei no meu carro e parti. Chegando em casa, sentei no meu sofá, larguei a maleta na mesa da frente e pensei: Abro ou não abro? Fui até a cozinha, descasquei uma banana, mastiguei, joguei a casa fora. Pensei mais um pouco. Voltei à sala e resolvi abrir a maleta. Lá dentro não havia mais Euros, e sim uma foto de meus pais, falecidos em 1992, com uma garota ao lado, igual a aquela que deixei morrer no HPS. E atrás da foto havia uma legenda com o nome de fotógrafo: “Família Unida – Foto por Ângela Figueiró”. Até hoje fico pensado: qual seria a proposta que Ângela me faria? Talvez se eu não tivesse a matado, eu não descobriria o meu pior pesadelo.