A Loira

PRÓLOGO

Sequestrei a Morte.

O leitor deve achar que estou maluco e/ou que sou, no mínimo, um narrador não-confiável.

Mas digo a verdade: sequestrei a Morte.

Eu estava em casa prestes a ter uma overdose. Ingeri incontáveis comprimidos de xxxxxxx (melhor omitir o nome da medicação). Tive ataque cardíaco. Enquanto me contorcia no banheiro, alguém bateu na porta. Nesse momento, eu já não era mais alguém moribundo. Sentia-me vivo e forte, de forma repentina. Abri a porta e lá estava ela. A Morte.

A Morte era andrógina, um metrossexual. Tinha uma aparência viçosa. Enfim, entendi Cazuza: “vi a cara da Morte e ela estava viva”.

- Sabe por que estou aqui.

- Sei. - eu respondi e logo depois apontei a arma.

A Morte levantou as mãos. Não entendi nada. Como a Morte pode se render assim tão fácil? Dei uma coronhada e ela caiu. Levantei-a e arrastei-a até uma cadeira nos fundos da casa. Enrolei-a com uma corrente. Fácil demais. Vi um rato nojento e tentei atirar nele. Errei.

- Não sabe com quem está lidando, rapaz. - disse a Morte.

- Todas as pessoas que foram minhas vítimas de sequestro relâmpago também me diziam a mesma coisa. Pensei que a Morte fosse mais original.

I

E eu me sentia cada vez mais vivo e forte. Era como se fosse o Superman ou coisa semelhante. Sério. Tanto é verdade que naquela manhã eu fui praticar um assalto em uma Casa Lotérica. Fui sozinho. Estava com uma escopeta escondida dentro da mochila. No momento que considerei certo, puxei e gritei que era assalto. O meu azar: um dos reféns era um policial à paisana. Ele puxou um oitão e me acertou no peito. Caí.

Pensei que estava morto. Então, notei que não tinha um único arranhão. O tiro de oitão não me feriu, muito menos me matou. Eu nem tinha sentido dor. O policial atirou mais vezes. Era como se eu fosse mesmo o Homem de Aço. Dei um tiro de escopeta em direção à barriga do policial. Ele caiu sangrando. Me aproximei e atirei de escopeta na cara dele. Caixão fechado. Eu estava furioso. Comecei a agredir os reféns e as mulheres atendentes. Peguei todo o dinheiro do caixa eletrônico. A chave que abria o cofre não estava com elas. Fiquei furioso. Puxei minha pistola e comecei a executar todos os reféns. Uma chacina. Saí pela porta da frente. Coberto de sangue. Uma aparência monstruosa.

Voltei para casa e confrontei a Morte.

- Eu sou o responsável pelo seu distrito. - ela disse. - Você me prendeu aqui. Não posso fazer meu trabalho.

Ela quis dizer que as pessoas do meu distrito não podem morrer, graças a mim. Foi por isso que levei vários tiros e fiquei intacto. Sou imortal agora. Quer dizer, o pessoal do meu bairro, toda a gente desse tal distrito, também está imortal.

- Sou apenas uma funcionária. Logo eles mandarão outros para pegarem você. Não vai escapar.

- Se eu peguei você, posso pegar outras.

-…

Silêncio lúgubre.

- Vou render todas as mortes! - eu disse.

- Vai faltar cativeiro para isso.

II

Estava no balcão de uma lanchonete próxima a um Centro Universitário. Eu planejava meter os canos naqueles alunos mauricinhos e patricinhas. Quem sabe não meter a mão dentro da calcinha delas, hein? Peguei o jornal da manhã. Manchetes: “Policiais dizem que não conseguem ferir traficantes de Cosme de Farias”. Minha rua é próxima desse bairro. É o tal distrito que a Morte falou. Outros bandidos também se tornaram imortais. Isso pode ser um problema.

- Pode me emprestar o jornal? Quando você terminar, é claro.

Era uma loira. Voluptuosa. Parecia que era aluna do Centro Universitário. Calça jeans, blusa com botões, sutiã por baixo, óbvio. Perfume forte, quase tossi. Caderno na mão. Por um instante, tive vontade de rendê-la, mas depois algo me conteve. Não sei o quê.

_ Claro, aqui está.

Enquanto ela lia, batia o olho em mim. Fiquei até desconcertado. Uma loira de olho em mim. Só posso estar sonhando. O olhar dela me empolgou a ponto de me fazer desistir de assaltar os alunos. Fui para casa. E não consegui mais parar de pensar nela. Com certeza eu voltaria a ficar próximo daquela universidade. Com a esperança de revê-la.

O dia poderia ser perfeito. Então, aconteceu a situação chata, só para nunca perder o gosto amargo. Lembre-se leitor: eu ingeri comprimidos do remédio xxxxxxx. E não morri. Mas o que interessa saber e eu ainda não contei: por que eu ingeri os remédios. Ao chegar em casa. Havia três caras me esperando. Deram-me chutes, pontapés e coronhadas.

- Você tem muita coragem, filha da puta! Demos o aviso. Ameaçamos. Queríamos gerar desespero em você. Mas você seguiu sua rotina. Até meteu o cano numa Casa Lotérica. Queríamos você morrendo de medo.

Eles não sabem, mas conseguiram me deixar com tanto medo. A ponto que eu optei por tentar me matar, em vez de ser retalhado em pedaços que se espalhariam pela cidade. E, mais importante, eles também não sabem que eu sequestrei a Morte.

Falando nisso: será que eles a viram?

Depois de uns trinta minutos levando socos, pontapés e coronhadas - eu nem sentia dor alguma, porém fingia que sim - eles engatilharam as armas e atiraram contra mim dezenas de vezes. Recarregaram três vezes. Depois, levaram um susto. Não havia uma única gota de sangue. Eu estava intacto, ileso, eu era o Superman!

- Que diabos é você?! - gritou um deles.

Seguiram atirando até as balas acabarem. Não conseguiram causar nada em mim. Restou apenas sair correndo assustados. Eu era imortal e nem tentei ir atrás dele. Não podem me fazer nada. Não voltarão.

Sento no sofá. Descanso um pouco. A Loira não sai da minha cabeça. Então, escuto um barulho nos fundos. Lembro da Morte. Corro até onde ela está. Chego e presenciou ela tentando fugir pela minúscula janela. Tentando fugir. Puxo ela e dou coronhadas. Amarro ela de novo.

- Não vai conseguir me manter aqui para sempre. Eu vou fugir. Ou serei resgatada.

- Vou manter preso quem tentar te salvar. Nem que eu precise arrumar um condomínio inteiro de cativeiros!

III

Todos os dias eu estava nas redondezas do Centro Universitário que mencionei. Sem armas, sem intenções cruéis. Só queria ver a loira gostosa que ficou me olhando. E sempre eu conseguia vê-la. Ela ficava me secando e eu secando ela. Não demorou e eu tomei uma atitude. Logo estávamos conversando. Graças ao jornal eu conseguia puxar assunto. Mais alguns dias e estávamos nos beijando. Mais outros dias e íamos a motéis. Difícil acreditar que aquela loira deliciosa estava na minha.

- Vamos para sua casa. - ela disse.

A Morte ainda estava no meu cativeiro particular. Eu tapei a janelinha, reforcei as correntes. Mas não sei o que poderia acontecer se a Loira escutasse algum barulho esquisito. O que eu iria explicar? Que eram ratos? Isso iria depor contra minha própria firma. Ela iria dizer: “ratos? Você não tem higiene?”. Tinha que dar um jeito nisso. Foder a loira em minha casa sem que a Morte faça barulhos irritantes e empate a nossa foda. Pior é ela tentar fugir na hora do Grande Momento. A Loira ia estranhar: por que diabos eu mantinha uma figura andrógena acorrentada no fundo da minha casa? Ia me acusar de ser criminoso, de ser um sequestrador - e com razão.

- Claro, amor. Mas eu preciso dar uma arrumadinha antes. Não quero que você veja a bagunça. Amanhã na minha casa, que tal?

- Está bem, meu bem. - ela respondeu.

Na mesma noite, cuidei de esconder bem a Morte. A Loira não pode vê-la, de modo algum.

- Não vou empatar sua foda, não se preocupe.

- Como sabe…?

- Eu sou a Morte, esqueceu?

Mesmo método de antes. Acorrentada na cadeira de ferro, que está presa no chão de concreto. Coloquei a clássica fita isolante em torno da boca. A Morte se parece com um ser humano, como eu disse. O cenho cândido dela assusta qualquer um.

Depois de ter tomado todos os cuidados possíveis para a Morte não fosse notada no fundo - fiz o possível para que a Morte presa ao fundo não tivesse capacidade para produzir um barulhinho sequer -, recebi a Loira em casa. Foi uma noite maravilhosa. Bebemos vinho, transamos. Assistimos filme na minha TV led roubada, transamos de novo. Pedimos pizza em um aplicativo de entrega rápida. Não recebemos a pizza, pois a empresa não estava atendendo naquela região. Entregadores entravam ali e saíam mortos ou feridos. Ou nem saíam - nunca mais eram vistos.

Cansamos. Deitamos na cama pelados.

- Você me mostrou a casa inteira. Menos o cômodo dos fundos. Por quê? - questionou a Loira.

- Não tem nada ali para ser visto, amor.

- Tem certeza?

- Absoluta. Por que o questionamento? Não acredita em mim?

- Claro que acredito, meu bem. Desculpa.

Dei um beijinho nela. E estava com sono. Acabamos dormindo.

IV

Acordei com fortes dores no peito. Nem consegui levantar da cama. Me arrastei até cair no chão. A Loira não estava deitada ao meu lado. Havia levantado antes de mim. Aquela sensação de ser o Superman havia sumido. Dessa vez eu me sentia fraco, horrível, como se estivesse morrendo. Então, o susto. A porta dos fundos do cômodo estava aberta. Consegui ficar de pé e cambaleei até o lugar onde a Morte deveria estar presa. Não estava mais. A cadeira estava vazia e as correntes no chão. A Loira estava encostada numa das paredes.

- V-você soltou ela? Não tem ideia do que acabou de fazer, dro..

- Eu sei muito bem o que fiz. Acabei de soltá-la. Você não tem condições de persegui-la.

A Loira estava com uma aparência cândida.

- Antes da fuga, a Morte fez o trabalho dela enquanto você ainda dormia. Aliás, eu também fiz. Sente-se, querido. E espere.

Agora eu entendi. “Logo eles mandarão outros para pegarem você”. Não precisou de “outros”. Bastou uma. Sinto meu peito rasgar violentamente e minhas vísceras estão se expondo. O tiro de oitão. Logo dores por todo corpo. Os tiros que aqueles caras me deram. Não tem co——

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 03/06/2023
Reeditado em 03/07/2023
Código do texto: T7804283
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