A autodefesa de um povo
A autodefesa de um povo
Félix Maier
Era uma vez uma cidade pacata no interior do Brasil, onde havia somente duas ruas principais, divididas por um riozinho e ladeadas por montanhas. Nas encostas, escadarias de pedra, fazendo a vez de ruelas, levavam as pessoas às suas casas. Era um povo feliz que vivia principalmente do comércio e do emprego em uma fábrica de tecidos.
Havia uma igreja católica, duas escolas municipais e um pequeno hospital dirigidos por freiras alemãs, e uma delegacia de polícia onde o delegado não tinha muito a fazer, já que ações de bandidos só eram ouvidas no rádio e vistas nas fitas de faroeste americano projetadas no telão do pequeno cinema utilizando um gerador elétrico. Não havia energia elétrica, nem televisão, porém um gramofone movido a bateria era ouvido na casa do prefeito a tocar árias de óperas italianas na voz de Mario Lanza e cantorias de Vicente Celestino, como O Ébrio. Somente o prefeito, o advogado e o dentista possuíam carro na cidade, o Ford Bigode.
Com o tempo, a cidade foi crescendo, principalmente depois que chegou a luz elétrica e a televisão, e uma cervejaria se instalou no município, aproveitando a água limpíssima das montanhas. Muitas casas foram construídas, em pouco tempo, dobrando a população. Com a vinda de muitos estranhos, a até então pacata cidade começou a ter problemas de segurança, com furtos de roupas nos varais, assim como frutas e legumes dos pomares e das hortas, além de furto de ovos, galinhas, queijo e salame nas colônias, quando cães latiam de madrugada, espantando as raposas de duas pernas, que fugiam com o ganho fácil na mão grande. Vez por outra, um gatuno recebia uma carga de sal no bumbum, disparado por alguma espingarda carregada pela boca, do tipo “espera um pouco”.
A delegacia da polícia, com efetivo ridículo, não dava conta de proteger a população, sempre chegando à cena do crime depois da cerveja derramada. A cidade foi crescendo, ocupando outros vales e encostas, depois que mais duas fábricas de tecidos se instalaram no município, além de outra cervejaria. Escolas e hospitais foram construídos, alguns particulares, outros públicos, e igrejas evangélicas começaram a medrar na cidade como cogumelos no campo. Com o crescimento desordenado da cidade, a população mais pobre começou a ocupar cada vez mais o alto das encostas das montanhas, devastando a flora original da Mata Atlântica, o que ocasionava deslizamentos de terra durante as trombas d’água, enterrando na lama e matando cada vez mais gente.
Com o aumento de roubos e furtos, um coronel aposentado da PM, que havia feito um curso de Segurança em Israel, passou a reunir em sua casa conhecidos e amigos, propondo uma ação conjunta dos cidadãos, para aumentar a segurança, já que o governo nada fazia. Em Israel, segundo discursava o oficial, a população, voluntariamente, oferece um dia e uma noite de trabalho por semana, para ajudar a polícia nos trabalhos de patrulhamento da cidade, além de auxiliar no trânsito de carros. Esse sistema comunitário de Segurança aumentou naquele país depois da dissolução da União Soviética, quando muitos judeus emigraram para Israel junto com seus negócios de drogas. Em Israel, segundo afirmava o oficial, até general aposentado presta serviço ao público, como ajudar as pessoas a atravessar faixa de pedestre, com estridente apito na boca.
A ideia do oficial aposentado foi recebida com euforia por grande parte da população, obviamente, aquela que não quer sofrer roubo ou furto e é contra a venda de drogas, cada vez mais escancarada.
Assim, foram organizados grupos com três pessoas, homens e mulheres maiores de idade, um deles sempre armado de revólver, com registro da arma e licença para uso em geral, para realizar rondas na cidade, especialmente à noite, com a anuência da prefeitura, após a Câmara dos Vereadores aprovarem uma lei a respeito do assunto. A violência na cidade diminuiu consideravelmente. A população passou a sentir-se mais segura e feliz.
Porém, um deputado federal, eleito também com votos da população local, começou a fazer campanha contra essa iniciativa, dizendo que serviço de Segurança não compete ao povo, mas ao Estado, e que deveria ser aprovada uma lei federal para implantar tal procedimento. O deputado foi apoiado por muitos políticos, especialmente por aqueles que defendem o uso recreativo das drogas e o fim da PM. Assim, esse serviço voluntário em prol da defesa da vida e dos bens dos munícipes foi perdendo força, restando meia dúzia de grupos abnegados que continuaram a fazer patrulha à noite, à revelia de tudo. Não é preciso dizer que a violência aumentou, para gáudio também dos drogados, aumentando o número de zumbis na cracolândia local.
Com o crescimento da violência, aumentou também o número de estupros de mulheres. Algo tinha que ser feito, para enfrentar essa modalidade de covardia absoluta. Foi então que o velho oficial aposentado propôs que meninas, moças e senhoras passassem a realizar curso de defesa pessoal, como judô e jiu-jitsu. O coronel, ele próprio, se prontificou para ensinar às mulheres voluntárias o Krav Magá, que é utilizado em Israel por serviços de Segurança, Exército e Serviço Secreto, como defesa pessoal corpo a corpo.
Com o tempo, aumentou o número de marmanjos sendo atendidos nos hospitais, com um ombro deslocado, com um dedo quebrado ou com os testículos inchados, e hematomas no rosto e no corpo, não sabendo explicar direito aos médicos e enfermeiras o que havia ocorrido, inventando uma mentira estapafúrdia. O número de estupros caiu abruptamente.
O tal deputado federal também começou a se opor a essa modalidade em massa da autodefesa de mulheres e mocinhas, especialmente depois que apareceu com o nariz quebrado num pronto-atendimento hospitalar. Coincidência ou não, o prefeito socialista havia implantado um curso de defesa pessoal aos presidiários, para que ocupassem melhor seu tempo, sem ociosidade.
Moral da estória: quando um governo trata melhor os bandidos, oferecendo auxílio-reclusão, sem se importar com as famílias das vítimas que foram mortas, o povo fica marginalizado e entregue à própria sorte.