A Fuga - parte 1
O refeitório amanheceu exibindo a balbúrdia de sempre. A única diferença é que, neste dia, além dos cinzeiros carregados de guimbas em meio a copos, pratos e talheres sobre as mesas de mármore branco, há Bruce, estendido em um dos bancos. A boca escancarada só não é mais horripilante do que o seu ronco. Como consegue dormir sobre aquele banco estreito de madeira, e ainda roncar, deve ser segredo seu, apenas. O ar que expele com violência eriça os pelos brancos do bigode e, fazendo dos braços travesseiros, é Bruce alheio a tudo que o cerca. As seis badaladas do relógio na parede, atrás do pequeno balcão, não fizeram efeito maior do que o zumbido das moscas que rodeiam os pratos de comida da última refeição da véspera. Foi seu aniversário e ele bebera além da conta. Trinta e cinco anos de idade e há cinco naquele presidio de segurança máxima, com dezenove ainda por cumprir. Prometera Bruce, porém, aos companheiros de cela, que ali dentro não comemoraria seu próximo aniversário. Tida como impossível, uma fuga, já pensada e arquitetada dentro da sua cabeça, não seria para ele obstáculo, da forma que a si mesmo prometera executar.
Estranho não estar na cela como todos os outros. Vendo sua alegria e descontração, e como um prêmio pela data, permitiu o diretor que o deixassem ali, curtindo a carraspana, já apagado e inofensivo. Mas, amanhecera o dia; mal deram as batidas e a porta se abre com violência e seu estrondo contra a parede põe fim ao sono e aos possíveis sonhos de Bruce. Coloca-se sentado com um movimento brusco, tomado pelo susto que o despertara. Esfregando os olhos, identifica o policial, também com cara de sono e de poucos amigos. O uniforme preto e amarrotado, tendo na mão uma caneca branca, expelindo fumaça, deve mesmo estar mal humorado, pelo jeito com que se dirigiu ao outro.
- Vamos! O que está esperando? Para a cela, como todos os outros! A noite de mordomias e parabéns para você já acabou há muito tempo. Bruce nada responde, porém. Pega da mesa, o boné e o maço de cigarros, ajeita o cinto de couro da calça jeans que está usando e levanta-se.
A ilha em que se situa o presidio não é habitada. Antes, uma enorme mata, não passa agora de vasto terreno inóspito, carregado de armadilhas e infestado de minas. Caminhar ou correr por ali é arriscar-se a ir pelos ares ou perder, de uma hora para outra, todos os movimentos. Se algum verde ainda existe são arbustos enfezados, entremeados por trilhas de gramíneas, de extensões enormes, levando à praia. Capinzais alquebrados perfazem outras áreas de grandes rochas alcantiladas. Em baixo, é bela a visão do mar, mas assustadora ao mesmo tempo. As ondas vêm em fúria, atingindo os píncaros, lançando, em golfadas impetuosas, enormes volumes de água para todos os lados. Não há outra área construída a não ser aquela que abriga os presos. É, no entanto, uma obra imponente e de estilo arrojado. Não houve economia para que seu objetivo principal, evitar fugas, fosse cumprido. E, de fato, em seus vinte e sete anos de existência, um prisioneiro, sequer, conseguiu escapar de seus domínios. Tentativas houve, mas não passaram disto, sendo rechaçadas a tempo de não causarem danos e dores de cabeça.
Wilson Trump é o diretor, o único que tivera Blue Mount desde sua inauguração. Sessenta e quatro anos de idade, aceitou, após a aposentadoria, continuar no cargo que adora e que tão bem ocupa. Os cabelos brancos impõem respeito e a forma de agir, admiração. Passa grande parte do dia debruçado sobre sua máquina de escrever, elaborando relatórios sobre tudo que ocorre em Blue Mount. Não é tarefa fácil porque não há um dia de calmaria naquela instituição. Somente a sua experiência, aliada a um salário magnifico, e único dentro de sua profissão, foram capazes de fazer com que ele retornasse àquele trabalho dificílimo e estressante; o governo de Kansas City orgulha-se de Wison e ele muito mais das medalhas que já conquistara ao longo dos anos de dedicação incessante.
Poder-se-ia afirmar que, se em Blue Mount nunca houve fugas isto se dá ao modo de trabalho de Wilson Grant. Sempre impôs respeito a todos os condenados, mas, na mesma medida, nunca se relacionou com um preso sem que deixasse nele o sentimento de medo. Todos conhecem o seu poder e, desafiá-lo é desafiar a própria morte. Faz questão de visitar pessoalmente todas as celas, somente após o que ingressa em seu escritório para iniciar os trabalhos do dia. Não vai ainda para a máquina, mas senta-se em sua poltrona em um dos cantos da sala e dali contempla o rosto de cada um dos homens que já o aguardam. Há, neste dia, cinco a sua frente. Dois continuam de pé, enquanto Wilson se mantém sentado embora haja cadeiras disponíveis para que, também, se sentem. É difícil, quando não impossível, saber o estado de humor de Wilson, pois está acostumado, ou treinado, a manter uma fisionomia fria e inexpressiva em todo e qualquer tipo de situação, mas, a julgar pelo comentário que fez ao se sentir, talvez, diminuído ou aviltado pelos dois que permanecem de pé a sua frente, deve estar mal humorado.
-O que estão esperando para se sentarem? Acaso desejam crescer mais um pouco ou será que estão apressados porque terão um dia cheio pela frente?
Um deles é Bruce e, com esta frase, é certo que sentiu aumentar a sua antipatia por Wilson. Sentaram-se, finalmente. Wilson começa a falar e todos já sabem que, em seu discurso não faltarão autoelogios, repassamento de todas as diretrizes do presidio e, sobretudo, ameaças. Não ameaças no sentido pessoal, mas de que fará valer, sempre que possível, a sua autoridade para coibir mau comportamento e desrespeito dentro de sua instituição. Todos que ali estão já cometeram delitos graves. De assaltos a roubos a bancos e assassinatos; são, portanto, variáveis as penas. Bruce é condenado por assaltos a postos de gasolina e sequestros. É, portanto, considerado de alta periculosidade e cumpre vinte e quatro anos de prisão. Há, entre eles, Jordan, cumprindo prisão perpétua por homicídio. Há doze anos preso, participou das duas últimas rebeliões; é, portanto, um dos mais visados por Wilson.