Espaço vazio e infinito

ESTOU em uma situação complicada. De vida ou morte. Mas antes de informar ao leitor os detalhes dessa situação, melhor contextualizar. Só assim será entendido como uma circunstância sem aparente saída pode ter virado um suposto dilema.

Enquanto eu e o pastor bebíamos e comemorávamos o incêndio de uma igreja rival, aproveitei para tirar uma dúvida que ocupava minha mente o dia inteiro: Saul, o personagem bíblico, se matou. Ele tirou a própria vida para não morrer nas mãos dos filisteus. Meu questionamento: aprendi na igrejas que o suicídio leva a pessoa ao inferno; então Saul, o suicida, estaria condenado?

“Não sei, irmão Saulo”, respondeu o pastor. “Há desígnios de Deus que não tem nem como conjecturar”.

Contei a ele que minha mãe, uma teóloga amadora, tinha uma tese um tanto “heterodoxa”, digamos assim. Anos atrás, no meu bairro, um fanático torcedor de futebol se matou após a queda do seu time para a terceira divisão do Campeonato Brasileiro. Claro que não foi apenas isso. O cara estava cheio de problemas. O rebaixamento do clube do coração foi o "empurrãozinho" que o jogou no abismo, mas outras merdas o fizeram caminhar até a beira. Talvez ele estivesse com depressão, quem sabe. Enfim, sobre isso, alguns crentes foram peremptórios: o suicida estava no inferno! Minha mãe, por outro lado, hipotetizou o seguinte: o torcedor que se matou não estava no inferno, pelo menos ainda, e sim num espaço vazio e infinito, um lugar cósmico além-vida onde Deus coloca as almas até ele decidir o que fazer com elas. Quando eu disse isso, o pastor me interrompeu.

“Calma aí, irmão. Isso está errado. Deus não sente dúvidas. Ele sabe de tudo. Ele sabia o que fazer com a alma daquele homem antes mesmo de acontecer a morte dele”, disse o pastor. “Deus decidiu, apenas não sabemos qual a decisão dele”.

Depois disso, parei de falar. Não quis tocar mais no assunto. O que percebo é que crentes detestam quando alguém fala de coisas diferentes dos seus dogmas. Era a hora de falar de negócios.

“O serviço foi perfeito”, disse o pastor. “Porém, vai precisar fazer mais”.

“O quê?”

“Sabe o Largo do Machado?”

“Sim.”

“O irmão de outra igreja tomou o ‘controle’ desse largo. Assim como eu, ele tem recursos, pessoas como você. Não foi fácil tomar. Mas agora você irá tomar dele para mim”.

“Vai querer que eu passe o fogo nele?”

“Não precisa tanto. Um sustinho está bom”.

O Largo do Machado era conhecido jocosamente por vizinhos não evangélicos como o “Largo da Trambicagem”. Ali os pastores de diferentes igrejas reuniam multidões que “sacrificavam” seus objetos de valor em nome da fé. Era uma grande barganha, um investimento espiritual com resultados materiais. Dê sua carteira que Jesus lhe dará duas carteiras com o dobro de tudo que tinha dentro. Outro dia um garoto queria dar sua revistinha do Homem-Aranha, pois ele queria duas revistinhas do Homem-Aranha. O pastor não quis. Disse que Homem-Aranha era do diabo e que Jesus só devolvia em dobro objetos de valor. Aquela revista não era isso - o que Jesus poderia fazer com uma HQ? E uma HQ do capiroto? Ler? O pastor não sabe, mas se o garoto tivesse em mãos uma edição rara de Amazing Fantasy #15 - a primeira aparição do Amigão da Vizinhança em todas as mídias -, Jesus com certeza ia querer e o garotinho viraria milionário… Tal edição estava custando 580 mil reais no eBay.

O Largo do Machado era um espaço onde grandes negócios espirituais aconteciam. Naturalmente, havia gente querendo tomar posse do local. Pastores disputavam para tomar posse do lugar público. Começou com pequenas discussões. Não demorou para haver ameaças. Logo a coisa descambou para a agressão física. Pastores utilizavam de todos os recursos disponíveis para assumir o largo. Aliaram-se com facções criminosas do bairro. De agressão para torturas e, finalmente, para assassinatos e ocultação de cadáveres. O atual “dono”, que o pastor queria que eu “assustasse”, era um homem extremamente perigoso. Se ele prevaleceu como Dono, significa que ele esmagou seus adversários. Mas farei o trabalho mesmo assim. Vou dar um susto. Não preciso chegar diretamente nele. Posso fazer com alguém da família.

Segui os filhos até a escola. Escola bilíngue. O Largo do Machado era mesmo um lugar lucrativo. Uma mulher acompanhava os filhos. A ideia era esperar eles saírem e emboscar o carro. Foi o que fiz. Coloquei uma máscara. Atirei e matei o motorista. A governanta estava com as crianças no banco de trás. Os três choravam em pânico.

“Avisa para aquele merda que é para ele nunca mais pisar no Largo de Machado de novo. Ou na próxima vez não vai ser só o motorista que vai rodar”.

Depois de dizer isso, vazei.

Nas semanas seguintes, o Dono continuava dono. Ele ficou muito puto. Igrejas concorrentes estavam sendo queimadas. Pastores adversários mortos. A onda singular de crimes chamou atenção da imprensa. Notei que os filhos dele agora estavam com seguranças armados, que obviamente eram braços do tráfico.

“Era para você ter pipocado ele. Vacilei”, disse o pastor que tinha me dado o serviço.

“O cara é o dono. Ele esmagou muita gente para chegar aonde chegou. Uma ameaça contra os filhos não ia intimidá-lo, e sim enfurecê-lo”.

“Preciso que você o mate.”

“Seria uma missão suicida. Estou fora.”

“Pago o que você quiser”.

“Meta-se com esse cara e você morrerá. E morto você não me pagará nada.”

“Deixa que eu faço, então”.

“Por que quer se meter com isso? Não tem outros largos em Salvador? Escolhe outro e fica longe desse.”

“Você ainda não entendeu, né?

“Entender o quê?”

“Ele está matando pastores. E ainda não está convencido de que encontrou o mandante das ameaças contra os filhos. Não vai demorar para me encontrar. E quando me encontrar, me darão uma morte horrível. Me torturarão e eu acabarei dizendo que mandei você. Eles vão te encontrar cedo ou tarde.”

“Nada disso vai acontecer se eu te matar aqui e agora”.

Apontei a arma. Estava disposto a atirar.

“Pelo amor de Deus! Mesmo que me mate, eles irão encontrá-lo. Não escutou o áudio disseminado em grupos no Whatsapp? ‘Vou encontrar esse alemão e seu jagunço nem que seja no inferno’”.

Pior que o desgraçado tem razão. Eles chegarão a mim cedo ou tarde. Vão encontrar alguma testemunha. Eles têm contato na polícia e tudo mais. Melhor apagar o Dono antes que ele me apague. Todavia, isso é quase suicídio. Será melhor ir acompanhado.

“Eu topo. Você é quem vai atirar, né?”, eu disse.

“Mas você precisa me dar cobertura.”

Planejamos apagar o Dono do Largo durante seus cultos ao ar livre. Levei um amigo comigo e ele tinha seu próprio ferro. Nós três iríamos nos infiltrar no meio da multidão. E do meio da galera, o pastor iria atirar. Daríamos alguma cobertura se fosse possível. Fácil, né? Só que não. Havia traficantes fortemente armados por todo o canto. Era quase suicídio.

Depois do lenga-lenga pastoral, começou a hora da barganha. Gente jogava dinheiro, pertences e bens pessoais na direção do homem de Deus. Nesse momento, alguém “jogou” uma bala nele. Tiro pegou no peito. O Dono caiu. Começou a muvuca. Fiéis em pânico, gritaria. Bandidos armados tentavam encontrar o atirador. Sem sucesso. Eu e o Amigo cnseguimos sair da multidão e fomos até a igreja para aguardar o pastor. Mais de uma hora e nada dele chegar.

Então, leitor, chegamos ao dilema citado no início. O pastor não chegou no local porque ele havia sido pego pelos bandidos, que torturaram (e provavelmente mataram) ele para entregar eu e o Amigo. Saímos da igreja. No entanto, os caras cercaram a rua. Trocamos tiros. Derrubamos alguns, mas era inútil. Havia muitos. Acabamos encurralados numa casa. Fizemos reféns. Os caras mataram os reféns. Ficamos sabendo também que o Dono não morreu, pois usava colete à prova de balas. Se fôssemos pegos por essa turma, teríamos uma morte horrível. Cogitei se matar. Eis o dilema perverso. O Amigo, um homem evangélico, disse que eu iria para o inferno.

“Você sugere o quê? Nem tem mais como lutar até cair. Munição terminando.”

“Vamos aguentar tudo. E nos arrepender dos pecados.”

“Não vou morrer cruelmente nas mãos desses caras.”

“Jesus aguentou as provações. Também podemos”.

“Deixa que eu vou para o inferno. Você vai para o céu e sem precisar sofrer tanto.”

Atirei na cabeça do Amigo. Que o Senhor o receba. Os inimigos entram na casa. Vou tirar a minha própria vida. Como Saul, melhor morrer do que ser morto. Vou para o inferno? Pode ser, fiz muita coisa errada. Mas e se minha mãe estiver certa? Se os sucicidas estiverem num espaço vazio e infinito até Deus decidir o que fazer com eles? Seria um lugar temporário. Acredito, entretanto, que morrer nas mãos de adversários seja pior que a danação eterna. De qualquer maneira, me arrependo dos meus pecados. Tiros na porta. Espero que minha mãe esteja certa. Será menos pior.

Espaço vazio e infinito, espero que você seja o meu próximo destino.

FIM