A Vingança do Canibal Ceará - Parte II - Festas, Subprefeitos e Traições

O campo do Bancário. Pensar que este lugar abrigou grandes clássicos do futebol pelotense e pelo que me contaram, lotava que era uma beleza. Não cabia nem uma mosquinha.

É uma ironia tudo isso. Agora o campo se encontra as moscas, mas meu pai está negociando com a prefeita a construção de uma quadra de esportes pra criançada brincar e o pessoal poder se divertir.

Fico um pouco triste com isso, mas sempre tem lugares ermos pra treinar meus golpes especiais. Um dia ainda quero dar aquele golpe mortal de meu ídolo Terry Bogard. Se não fosse os arcades do Fatal Fury nos fliperamas da cidade, seria um vagabundo como outro qualquer.

E se não fosse meu pai ajudar-me no treinamento, talvez hoje não seria nada.

A propósito, meu nome é Luisão e o meu pai é Juan José Javier Hector Banner, mais conhecido como o “Argentino” devido a sua cabeleira e a barba tipo Messi. Ele conseguiu em dez anos remodelar o Simões Lopes fazendo voltar a ser um bairro importante e estratégico valorizando as ferrovias. Nada contra as rodovias, mas acho que os trens deveriam circular pra lá e pra cá com passageiros e carregamentos de quaisquer mercadorias. Afinal, tudo será levado até o porto de Rio Grande onde será embarcado rumo ao exterior.

Ele também foi um bandido e fez algumas maldades por aí junto com o tio Mosk, mas agora regenerou-se e é muito querido pela comunidade do Simões Lopes. O problema são os bandoleiros vindos de Rio Grande e cidades vizinhas que atacam os trens sem falar em alguns vagabundos que ainda insistem em fazer arruaças, mas meu mestre sempre dá um jeito.

Estava treinando no Bancário quando o tio Mosk apareceu com aquele pano-de-chão chamado por ele de camisa do Grêmio. Ele e meu pai são grandes amigos e não foi nenhuma surpresa quando a prefeita os nomeou como subprefeitos do Fragata e do Simões Lopes depois que as comunidades dos respectivos bairros os elegeram.

- Tira essa camisa aí, tio Mosk. O Grêmio não vai ganhar nada esse ano.

- Será fácil com Luisito Suarez marcando gols todos os fins de semana. Nunca subestime um esquadrão centenário. E o Hector, onde ele se encontra?

- Tá lá no castelo te esperando. Como vai aquele urso fresco que não vejo a semanas. Tá me devendo um duelo e uma cerveja.

- Ele está numa importante missão, Luisão. Mas não esqueceu da promessa que fez a ti. E te mandou um abraço.

- Me conta uma coisa, tio Mosk. É verdade que vocês tomaram um coro desses tais Defensores de Pelotas? Dizem por aí que são fortes e que fazem coisas do arco da velha. E o Misha não para de falar de um tal crioulinho. Ele é bom mesmo?

- Sim, e ele é muito forte assim como todos os outros. Mais cedo ou mais tarde, eles vão enfrentar a ti e ao Hector. Não se descuidem.

- Mal posso esperar pra lutar contra eles. Principalmente aquele crioulinho que o Misha tanto fala.

- Ele vai me causar problemas com essa falta de filtragem em suas palavras. Mas de qualquer forma seu sonho se realizará, meu rapaz.

- Aquele cara voltou, não foi? Fiquei sabendo por um dos emissários do Roger e mandei a mensagem a meu senhor. Logo agora que tudo está prósperando.

- Ninguém atrapalhará nossos planos. Vou te dar um conselho. Façam o que tem que fazer com aqueles vigilantes. Eles podem ser nossa única esperança contra essa ameaça vinda daquele animal que tive o desprazer de encontrar.

- Está certo, tio Mosk.

Ele apertou minha mão e saiu. Lembro do dia da cerimônia de posse do meu pai e do tio Mosk, assim como todos os demais subprefeitos. Foi muito bonita e o povo nos aplaudiu. Fizemos um minuto de silêncio pelas vítimas tanto daquele crápula quanto os da COVID-19. Chorei como uma criança naquele dia ao ver meu pai se tornar respeitado por seus pares.

Mas agora tudo é passado. Aquele homem chamado Luiz Otávio está de volta a Pelotas pra causar mais destruição e caos.

Não foi o bastante o estrago que causou a dez anos atrás matando quase todos os vereadores e metade da população de Pelotas? Que meu pai e eu tivemos um trabalho hercúleo junto com a comunidade pra reconstruir e revitalizar esse lugar?

Não vamos deixar isso acontecer. Se tiver que deixar que esses vigilantes patrulhem nosso bairro, que seja. Mas quero ver por mim mesmo se são capazes desta empreitada. E sem dúvida meu pai também deseja isso.

No entanto, estou preocupado com o bem-estar da comunidade. Se o tio Mosk veio aqui, é porque há perigo na esquina.

Mesmo assim, estou preparado pra dar minha vida por meu pai e pelos habitantes do Simões Lopes que deram confiança a nós.

Pode vir com tudo, canibal.

Eu o derrotarei com minhas próprias mãos.

* * *

Como é bom voltar pra terra natal depois de uma viagem bem tranquila graças a boa parte da rodovia ser duplicada. Dá até gosto de ver a cidade revitalizada depois de tudo que aquele filho da puta causou a dez anos. Parece um sonho.

Eu e o Barba nos despedimos na rodoviária e resolvi dar um pulo na antiga casa no Fragata pra matar a saudade dos tempos onde nós éramos felizes. Nem o Fragata era mais o mesmo. Dizem que esse Mosk fez melhorias nela, mas ainda estou muito desconfiado dessa história de subprefeito. Pelo que sei, só em São Paulo é que existe isso, mas ali é como se fosse um estado dentro do estado.

Fui ao Centro e fiquei sabendo que o Márcio estava morando no primeiro andar de um prédio até bem chique com a Cris. Parece que os dois prosperaram muito nas suas carreiras de professor da UFPEL e estão pensando em ter filhos. Seria ótimo se não fosse uma sombra ameaçadora daquele crápula nos incomodando. Mas preciso parar de pensar só em coisa ruim, queria ver logo aqueles dois.

Quando entrei, lá estava a Cris preparando o almoço enquanto preparava o material para as aulas de Letras. Ela me viu e deu um forte abraço que quase quebrou minha espinha.

- Como vão as coisas aí na cidade, Cris?

- Um pouco mais calmas. Só o burburinho lá na UFPEL da volta daquele monstro que fez tanto mal a gente. Só de me lembrar o que aconteceu comigo e com a dona Glória. Aquele bastardo nos amarrando no prédio da Biblioteca...

Não queria que chorasse e dei um lenço que tinha pra ela enxugar as lágrimas. Perguntei pelo Márcio e ela me disse que estava no subsolo onde montou uma biblioteca enorme e um gabinete pra fazer suas pesquisas históricas.

Enorme era pouco. Ele aproveitou um antigo espaço de garagem pra montar uma espécie de fortaleza. A estante estava cheia de livros de cima a baixo e havia alguns compartimentos secretos entre uma estante e outra. Eram livros variados de história, geografia, ciências, direito e até esportes. Sem falar nas coleções de revistas tanto científicas quanto de história entre outras coisas.

Assim que me viu, deu um abraço apertado e convidou-me para sentar em uma das cadeiras adjacentes. Tenho que tirar o quepe pro Márcio, ele fez um lugar bastante agradável e ao mesmo tempo, seguro pra ele. Imagina se tudo isso cai em mãos erradas? Nessa época onde se queimam livros e destroem obras de arte, tudo precisa ser bem protegido.

- Oi, Mário. Desculpa a bagunça aí. Estou preparando a aula pra hoje e ao mesmo tempo, estou botando os dossiês em ordem nas estantes. A propósito, tenho uma surpresa pra ti. Abra a caixa a sua esquerda.

Eu a abri e nele tinha um terno preto e uma camisa social branca. Fiquei embasbacado com a surpresa. Sabe aquela história de não ter o que falar? Foi uma dessas situações.

- Por que o terno, Márcio? Eu sei que é bonito, mas não creio que vou usá-lo.

- Aí é que tu te enganas, mano. Tu e o Davi serão homenageados em uma festa no Dunas Clube, depois de amanhã. Todos estarão lá inclusive a prefeita e todos os subprefeitos. Será praticamente a primeira festa depois da vacinação em massa e certamente querem que faças um discurso animador pro povo de Pelotas.

- Li nos jornais sobre isso. Dizem que quem vai promover a festa é a Nara Lopes, uma das promoters mais conceituadas da cidade. Além disso ela é uma mecenas em diversos projetos sociais e modéstia a parte, uma das melhores alunas de pós-graduação em História. Está terminando seu curso de doutorado e estou orientando-a no seu trabalho a respeito dos loucos anos 90 em Pelotas.

- É filha de um dos empresários mais ricos da cidade e de uma das socialites mais famosas da sua época. Li o relatório da polícia, foram vítimas daquele crápula a dez anos atrás. Foram assassinados e o pai canibalizado por ele. Já a mãe tornou-se o “brinquedo sexual” dele e tive o desprazer de ver aquele maldito penetrá-la mesmo depois de morta. Que coisa mais doentia!!

- Ela estuda durante o dia e dizem por aí que passa as noites treinando com o objetivo de acabar com aquele cara. Visitando lugares impróprios, batendo em vagabundos, aprendendo tudo que não presta, acho que quer proteger os outros para que não tenha mais ninguém sofrendo como ela. É muito inteligente, é bem-treinada em artes marciais e gosta de histórias de detetives. De vez em quando ajuda aqueles vigilantes, os Defensores de Pelotas.

- Tens ideia de como eles são, Márcio?

- Pouca coisa. Tudo o que sei é que são muito ágeis. Mas dois deles me chamaram a atenção. Uma das garotas lança armas brancas sem o uso das mãos e um dos rapazes é capaz de aumentar sua própria força de ataque tipo o Kaiohken do Goku. A outra garota parece ser a líder do grupo e o outro rapaz é um bom atirador, além de ser piadista estilo Homem-Aranha.

- Perfeito. Mal posso esperar pra ver esses vigilantes em ação.

- E o Davi? Sinto saudades dele.

- Ele foi ver o Malcolm Falcão que fará umas lutas de exibição numa arena no Mercado Central pra angariar fundos em prol das crianças carentes. Logo estará com a gente.

- Ótimo. Ele precisa estar aqui para que veja os dossiês que consegui dos subprefeitos. Um amigo meu da Biblioteca os entregou a mim.

- Então tudo isso é verdade? Como a prefeita permitiu isso? E os vereadores concordam com essa história?

- Sim, é verdade, Mário. E é uma longa história. Direi tudo assim que voltar das aulas. Te cuida.

- Tu também.

Despedi-me do Márcio e fui em casa experimentar o terno pra festa em minha homenagem.

Estou de volta, desgraçado.

Não vou permitir que destrua minha cidade de novo.

Nem matar mais ninguém.

* * *

Depois de anos de espera e abandono, o Castelo Simões Lopes, anteriormente pertencente a uma ilustre família pelotense, foi finalmente revitalizado graças aos esforços infatigáveis da comunidade local e principalmente de seu subprefeito J.J.J.H.Banner. Havia na entrada do castelo um jardim bem-cuidado e na primeira porta a esquerda, uma sala de reuniões e a direita, uma sala de aula para alunos carentes que estavam tendo aulas de português.

No corredor, havia outra porta que levava a biblioteca comunitária e no fim deste, o gabinete onde Banner fazia seus despachos diários.

Assim que Mosk entrou, recebeu um forte abraço de seu velho amigo de banditismo e os dois tiveram uma conversa amigável.

- Há quanto tempo não te vejo, Hector.

- Andas ocupado, meu amigo? Levar uma surra daqueles vigilantes foi demais pro seu ego, mas pense no lado bom. Conseguisse um carro novo pra ti, não foi? A gente deixa de ser vagabundo, mas a vagabundagem não sai da gente.

Mosk riu e concordou com o argumento do amigo.

- Pois é, Hector. Mas cumpri minha promessa e libertei a esposa e o filho daquele ladrão de carros. A gente aprende a usar as canalhices a favor do bem.

- Velhos e bons tempos aqueles. Mas agora a gente amadureceu e usamos nossos conhecimentos do submundo pra proteger nossos bairros de outros vagabundos. Afinal a comunidade conta com a gente. Vou te mostrar meu novo empreendimento.

Eles cruzaram o corredor e subiram as escadas rumo a uma das torres do castelo. O descendente de ucranianos ficou maravilhado com a vista do bairro e principalmente com a estação ferroviária revitalizada. Os trens fazendo suas viagens rotineiras levando passageiros e carga usando a nova ferrovia que liga ao porto de Rio Grande.

- Lindo, não? Isso é só o começo, Mosk. Mas não vieste aqui só pra conhecer meu projeto, certo? Ouvi dizer que fez um acordo com aquele homem asqueroso por diamantes em troca do apoio a candidatura dele a subprefeitura do Laranjal. Por que essa atitude?

- Para garantir a segurança dos nossos colegas, Hector. Sei que esse animal vai quebrar o pacto e me atacar. Se não aceitasse o acordo, certamente atacaria os mais íntegros de nós. Aposto que tu recebeste diamantes também, correto?

- Com certeza. E sem dúvida os demais também receberam esse presente espúrio. Mas ouvi dizer que boa parte deles preferiu algo mais concreto do que apenas diamantes de sangue, o que deixou nosso amigo um pouco chateado.

- O ego dele é mais inflado do que um zeppelin, Hector. E nós dois sabemos os estragos que o ego faz numa pessoa. Fiquei sabendo que as matanças começaram de novo. Meu pessoal encontrou três corpos envoltos em ácido na Barragem e pelo que a Vilma me reportou, há outros três no Navegantes na mesma situação.

- Aqui também. O Luisão encontrou quatro corpos perto do Arroio Pelotas enquanto treinava. Chamamos a polícia e não encontraram suas identidades. Como se já não bastasse os leões.

- Ainda tem aquelas três jovens que estão ajudando-o nisso. E boa parte do povo ainda o idolatra, mesmo com nossos esforços.

- Seja como for, temos uma festa pra ir dentro de dois dias no Dunas Clube pra homenagear o “Elliott Ness” que está voltando a cidade depois de quatro anos. Vais ir, Mosk?

- Eu não perderia isso por nada desse mundo, Hector.

Mosk despediu-se de seu amigo e voltou ao Fragata com um plano em mente.

O de conseguir o apoio de seu tocaio Mário Vianna na sua luta para manter a comunidade do Fragata a salvo dos ataques de Luiz Otávio, o Canibal Ceará.

Mas tinha um problema com nome e sobrenome.

Marcelo Islabão.

* * *

Uma jovem loura vistosa estava tomando cerveja num bar próximo do campus quando viu um rapaz alto e magro que declamava poesias para uma multidão de estudantes que o escutava.

Assim que ele terminou de declamar sua arte poética, a jovem disse estes versos:

“Sua voz é sem igual

Veio a paixão afinal

Vamos a um lugar legal

Fazer a conjunção carnal

Será que teremos no final

O êxtase fatal?”

Os estudantes aplaudiram a criatividade poética da garota e os dois saíram rumo a uma mansão opulenta localizada no Laranjal. Ao chegar, os dois se entregaram visceralmente com o êxtase chegando ao ponto máximo.

Assim que o ato foi consumado, foram surpreendidos com a chegada do dono da casa que se sentiu ofendido com o ocorrido.

O dono da casa era nada mais nada menos que o empresário Luiz Otávio.

- Ora, ora!! Filha, quantas vezes te disse pra não trazer seus namorados aqui pra casa. Tem motel pra isso, esqueceu?

- Senhor Luiz Otávio!!! Me desculpe, não sabia que era sua filha. Por favor, não me machuque. Prometo que casarei com ela.

- É sua obrigação fazer isso, meu rapaz. Sou descendente de cangaceiros e eles tinham uma lei. Desvirginou a moça, terá que ser sua. Ou casa ou o castigo será bem doloroso.

- Pai, eu...

- Não tem escolha. Diana, vista-se e saia enquanto preparo os trâmites para o casamento com este rapaz. Quero ficar a sós.

- Sim, papai.

E com um sorriso sarcástico, Diana saiu do quarto. Luiz Otávio ficou a sós com o garoto nu e assustado com a proposta repentina de casamento. Ainda tentou argumentar a respeito disto e até jurou trabalhar pra ele com o objetivo de angariar dinheiro para os custos do matrimônio, mas sem sucesso.

- Sabe, meu amigo. Pela última vez te pergunto. Vais casar com minha filha ou não?

- Não posso. Não me mate, por favor. Foi só uma ficada.

- Lamento, mas são as regras.

- As regras de quê?

O jovem não falou mais nada.

Luiz Otávio foi a última pessoa que viu antes de levar uma pancada na cabeça.

* * *

O jantar estava divino. Tenho que admitir que a Cris aprendeu as técnicas de culinária com a mãe e o Jean Pierre. Mesmo assim, comida de mãe é única.

Arroz com feijão, uma galinha assada no forno e como sobremesa um bolo de chocolate com uma calda que derretia ao servir. Eu quase virei uma jiboia de tanto comer.

Assim que a mesa foi limpa, o Marcio trouxe uns cadernos pra mostrar a mim e ao Davi. E fiquei pasmo com o que vi. Havia registros de todos os subprefeitos de Pelotas que foi dividido em nove bairros: Centro, Fragata, Areal, Porto, Três Vendas, Simões Lopes, Navegantes, Laranjal e a Colônia que engloba o Retiro e todas as adjacências como o Monte Bonito e a própria Colônia Maciel.

- Bem, senhores. Antes de começar as apresentações destas oito pessoas que ocupam os respectivos cargos nos bairros, gostaria de falar um pouco sobre as mudanças políticas que teve em Pelotas desde o desastre chamado Ceará I. Sua coroação e seu curto “reinado” acabaram com as finanças da cidade. Então nove voluntários se apresentaram para inicialmente ajudar os bairros a se reconstruir. Com o tempo acabaram sendo eleitos pela comunidade e nomeados pela prefeita em 2017. Os jornais falavam que era uma aposta arriscada devido a quase ausência de poder Legislativo, mas que se a experiência desse certo, seria um exemplo para o mundo todo.

- Pelo pouco que sei, Márcio, São Paulo é que tem esse negócio de subprefeituras. Não sou tão profundo como tu nessas coisas, mas cada bairro era autônomo e o subprefeito tinha que apresentar contas ao prefeito em reuniões todo mês. Isso acontece aqui?

- Exatamente, Mário. E o resultado está aí. A cidade aos poucos está voltando a normalidade depois da terrível catástrofe que causou tantas mortes ao redor do mundo. Antes da pandemia ocorrer, os bairros estavam praticamente revitalizados embora tenha tido resistência das pessoas ainda fieis a aquele maldito.

- Por que não me espanto com essas coisas? Afinal, já faz quase quatro anos que sinto estar em um manicômio onde a Terra não é redonda, vacina faz transformar-se em jacaré e outros tantos disparates que culminaram em mortes evitáveis.

- É, mas a prefeita resistiu bravamente a esses malucos que queriam abrir o comércio a qualquer custo e os subprefeitos tiveram um papel importante nisso conscientizando os moradores a se vacinarem contra o vírus da COVID-19.

- O que aconteceu com os vereadores depois que aquele filho da puta matou quase todos eles, Márcio? – perguntou Davi.

- Bem, Davi. Depois de tudo isso, ainda tivemos as eleições de 2016, mas o quociente de inscrição dos candidatos foi tão baixo que pra preencher as vagas, foi necessário a ajuda dos subprefeitos para isso. Atualmente são 27 vagas para nove bairros e cada bairro tem três vereadores na Câmara. No entanto, a condição para assumir a cadeira é morar no bairro correspondente a que foi eleito pelo povo e indicado pelo subprefeito local.

- Bem inusitado, mas eficiente. Porque o vereador será obrigado a defender os interesses genuínos do bairro conhecendo de perto a situação dos moradores.

- Mas vamos lá, Márcio. Estou ansioso pra saber quem são estes oito voluntários que ocupam os afazeres de cada bairro. – disse eu.

Assim que Márcio abriu os cadernos, fiquei perplexo quando vi o nome de Mosk entre eles. Então não era nenhuma piada. Mosk realmente tornou-se um subprefeito legal e a foto que vi mostrou um olhar intimidador e ao mesmo tempo astucioso. E um perfil de protetor da sociedade, apesar de ser um antigo bandido.

Havia um segundo bandido que o Marcelo me falou há muitos anos e que se tornou subprefeito do Simões Lopes depois de defender o bairro de um ataque de bandoleiros. Seu nome é Juan José Javier Hector Baner, ou J.J.J.H.Baner. Também é conhecido como “Argentino” devido a sua enorme cabeleira e a barba estilo Messi e Luisão é seu filho adotivo. É um grande amigo de Mosk e antigo parceiro de banditismo.

“E pelo visto, parceiros também na arte de empreender.” – pensei eu.

- Quem são os outros sete, Márcio?

- E outras, Davi. E uma delas tu conheces muito bem. Se chama Vilma Lemos Barreto e tem um trabalho comunitário no Navegantes. Devido a isso, foi nomeada subprefeita do bairro.

- É minha prima, Marcio. Me ajudou muito depois que perdi o pai. Tenho muito orgulho dela e depois disso, mais ainda. Onde acha que aprendi todo meu gingado?

Nós caímos na risada e logo a Cris se juntou a nós para também ler os dossiês.

- Este é o subprefeito da Colônia, Helmut Schumann. O único que não nasceu em Pelotas. É descendente de pomeranos e foi criado no Monte Bonito. Devido ao seu trabalho com plantações e o conhecimento profundo de agricultura, não foi surpresa nenhuma ter sido indicado pela prefeita a assumir a Colônia e todos os locais adjacentes como Retiro, Colônia Maciel e o Monte Bonito.

- Haja fôlego pra administrar toda aquela terra, né, Márcio?

- Quieto, Barba, quero saber do restante deles – disse eu.

- Quem é essa moça tão extravagante, Márcio? Parece que ela parou no tempo com essas roupas do século 19.

- Não, Cris, ela não parou no tempo, não. Esta é a subprefeita do Areal, Lisa Maria Oliveira, conhecida como Lisa dos Três Serros. Acredita que seja uma das descendentes da Baronesa e devido a sua estirpe nobre, fez revitalizar o bairro embora de forma meio exagerada pra mim. Usou o antigo solar da Baronesa como local para ser o prédio da subprefeitura. No entanto, manteve o parque intacto assim como o museu. Mas não se enganem com essas extravagâncias. Por trás disso, se esconde uma mulher que não tolera injustiças.

- Dizem que ela manda chicotear qualquer vagabundo que se atreva a roubar os moradores do bairro. – disse Davi.

- Belo modo de fazer justiça – disse eu.

Estava começando a ficar bem interessante. Cada um deles tinha uma peculiaridade incomum, mas com objetivos semelhantes. Talvez as chances de estarem ao meu lado na luta contra aquele crápula do Luiz Otávio aumentem bastante.

- Este é o subprefeito do Porto, Roger Monteiro. Ele é filho e neto de portuários. Sonha em tornar o Porto como nos tempos antigos onde a movimentação de cargas e pessoas era muito maior do que vários estados brasileiros. Apesar dos problemas que enfrenta, ele não mede esforços pra isso.

- Deve ser uma carga de responsabilidade muito grande, Márcio. Mas prossiga com os restantes.

- Esta é a subprefeita das Três Vendas, Soila Correia. É uma comerciante de mão cheia e dizem que dificilmente é passada pra trás. Ainda é uma excelente amazona e de vez em quando corre no Hipódromo da Tablada. Geralmente lida com os bandidos do Pestano que aterrorizam os habitantes todas as noites a sua maneira.

“E os vigilantes podem muito bem ajuda-la nisso” – pensei eu.

- E esta é a mais jovem de todos os subprefeitos, Ana Sílvia Guterres. Apesar de ter apenas 25 anos, ela tem uma maturidade fora do comum. Se casou com um jovem pianista chamado Menandro e os dois trabalham juntos na Biblioteca Pública. Ela como bibliotecária e ele como responsável pelos eventos culturais.

- Ela é a subprefeita do Centro?

- Exatamente, Mário. E não a subestime pela pouca idade, ela tem uma mente afiada e também é a mais próxima da prefeita.

- Precisa mesmo ser forte. Aliás ela é o elo de ligação entre todos os outros subprefeitos. Se fosse aquele filho da puta, a atacaria primeiro.

- Gostei do primeiro-cavalheiro dela. Essa Ana Sílvia deve ser uma daquelas jovens audaciosas, sem dúvida. Mas não falasse nada do subprefeito do Laranjal, Márcio. Quem é ele? – perguntou Davi

- O nome dele era Manoel Guevara. Dizem que renunciou ao cargo devido a não concordar com a volta daquele patife ao bairro e partiu para espalhar a revolução. Os outros subprefeitos lamentaram essa decisão.

- Deve ter sido duro pra ele ver esse filho da puta do Luiz Otávio voltar àquela mansão e provocar dissensões entre os moradores locais. Todo um trabalho jogado fora.

- Sabe qual é o pior disso tudo, Mário. É que o Luiz Otávio tem totais condições de ser o novo subprefeito do Laranjal porque preenche os dois quesitos: foi aclamado pelo povo e mora naquela mansão perto do Pontal da Barra.

Aquilo era demais. Depois de tudo que fizemos, ele ainda pode usar uma brecha legal para tentar ser imperador novamente. Não posso acreditar nisso. Tinha que ter uma maneira de impedir essa catástrofe.

- Ele não pode tomar posse desse cargo. Vou fazer tudo que puder pra impedir essa loucura.

- Mário, por favor, não tenta ataca-lo de frente de novo. Lembra do que aconteceu contigo a dez anos atrás? Tu quase morreste nas mãos dele. Quer um conselho meu? Use essa festa no Dunas Clube pra fortalecer os contatos com estas pessoas. E encontrar esses Defensores de Pelotas o mais rápido possível pra aliar-se com eles. E não se esqueça daquelas três moças que são bem mais perigosas do que ele.

- Eu sei, mas é brabo ver esse cara dar a volta por cima fingindo-se de benevolente pra voltar a matar inocentes.

- Vamos com calma, mano. Tu não estarás sozinho, está bem? A Cris, o Davi e eu estamos do teu lado. Temos certeza de que o derrotaremos de novo e o Luiz Otávio será vigiado por oito subprefeitos, ou seja, não vai poder fazer tudo o que quer.

- Espero que esteja certo, Marcio. Pelo bem dessa cidade que foi tão maltratada por esse desgraçado e que agora voltou a ser respeitada graças a esse esforço titânico destes homens e mulheres que ajudaram a prefeita num momento tão complicado.

Agora teria que ir a essa festa no Dunas Clube de qualquer modo.

Já que sou o astro do filme, vou aproveitar a deixa para um velho clichê.

Entrei na dança, tenho que dançar.

* * *

Cara, não é fácil ser promoter, estudante de pós-graduação e vigilante ao mesmo tempo. Eu não posso reclamar de nada porque estou conciliando bem com tudo isso. Questão de organização.

Bem que gostaria de me desestressar batendo em vagabundo com a pirralhada, mas tenho que fazer os últimos retoques pra festa de recepção ao “Elliott Ness” e ao seu amigo Davi, o “Barba”.

Ainda bem que a velha guarda do clube é solícita, embora sempre aparece um ou outro velhinho mimimi pra encher o saco. Dá pra aguentar o falatório dos mais antigos dizendo que as festas no seu tempo eram de arromba e blábláblá. Veio o repórter social do Diário Popular me entrevistar e ficou embasbacado com o que viu. Mesas arrumadas, cadeiras numeradas e principalmente o palanque. Ali instalei um microfone especial onde Mário Vianna fará seu discurso ao lado da prefeita e dos subprefeitos.

Fiquei lisonjeada com os elogios do repórter. Mas não fiz tudo sozinha. Tive não só o aval da minha querida amiga Lisa, como ela também ajudou com recursos e um pouco de sua sofisticação.

O problema é que a maioria das pessoas julga um livro pela capa, mas esquecem da contracapa. Ela é um pouquinho arrogante as vezes, mas tem um estilo “faca na bota” de governar. Faz de tudo pra proteger sua comunidade de qualquer coisa, até mesmo ter de encarar alguns vagabundos que aterrorizam o Obelisco noite sim noite também.

Ela tinha chegado da reunião de entrega dos relatórios dos subprefeitos pra ver de perto os preparativos. Estava usando um elegante tailleur branco com uma elegância de dar inveja a Glória Kalil.

No entanto, vi que estava bastante cansada. Ter que ir a reuniões com a prefeita e seus colegas não é fácil exigindo muita energia e jogo de cintura pra passar por isso.

- Nara cherie, como está indo os preparativos para a festa?

- De vento em popa, querida. Amanhã Pelotas terá a maior festa de sua história. Ainda mais que o nosso “Elliott Ness” está de volta depois de quase quatro anos.

- Já falamos das flores, mon cher, agora é a vez dos espinhos. Sabia que o Laranjal terá um novo subprefeito daqui a três dias?

- E quem é o felizardo?

- O Luiz Otávio.

Gelei-me ao ouvir aquele nome. Justamente o desgraçado que matou meus pais agora é subprefeito do Laranjal. A vida dá uma guinada de 360 graus na gente, em forma de rasteira seguida de uppercut.

Mas o pavor logo deu lugar ao sorriso. Isso significa que o sacripanta também estará aqui na festa. Olhar a cara daquele filho da puta me traz memórias horríveis.

Ainda assim será bem divertido. E com aqueles pirralhos do meu lado, não vou precisar bancar o lagarto fugindo de medo do seu predador.

Pode vir com seu sorrisinho idiota.

Estarei te aguardando com muito prazer.

* * *

- O nosso momento de glória chegou, Leopoldo. O povo aclamou-me como novo subprefeito do Laranjal e serei nomeado em alguns dias pela prefeita.

- Meus parabéns, patrão Luiz Otávio. Só gostaria de saber como convenceu a prefeita a nomeá-lo. É bom lembrar que tu a sequestraste junto com o governador dez anos atrás.

- Sim, nós também queremos saber – disseram as três jovens em uníssono.

- Graças aos diamantes que adquiri e a minha sabedoria em usá-los em benefício do bairro que administrarei. No entanto, usarei esse tempo para preparar minha vingança contra o Nêmesis e aquela maldita família, bem como todos aqueles que cruzarem meu caminho, até mesmo esses tais vigilantes que se autoproclamam Defensores de Pelotas. A propósito, Kabangu, a comida está deliciosa.

- Fiz com a dedicação de sempre, senhor.

Depois de um jantar suculento com arroz de carreteiro cuja carne era humana, feijão e carne assada além de tortas de diversos tamanhos. Luiz Otávio chamou as jovens bruxas e Sandro para uma reunião na Sala dos Espelhos projetando os próximos passos de seu plano nefasto.

- Senhor Ceará, tem certeza de que quer acabar com aquele Mosk? Ele parece ser o mais perigoso de todos os subprefeitos.

- Tenho, Savanna. Mas tudo a seu tempo. Agora preciso fortalecer o Laranjal com a velha tática do pão e circo e conhecer meus futuros colegas essa noite na festa do Dunas, incluindo nosso “amigo” ucraniano de araque. Toda a elite de Pelotas estará lá.

- Será bem divertido ver a cara daquele Mario Vianna ao saber que será subprefeito, senhor Ceará.

- Sim, Cristina. Embora o Nêmesis seja o dono da festa, eu também brilharei e o jogo terminará com a minha vitória. O que houve, Diana?

- Só lamento ter que devorar aquele garoto. Era um fofo.

- Pense no lado bom, Diana. Agora tu terás uma parte dele para sempre. Agora preparem-se, meninas. Temos muito trabalho a fazer e uma festa para ir.

Despediu-se das três bruxas e seguiu para seu quarto. Elas, por sua vez, foram a uma sala onde três banheiras as aguardavam.

Mas não estavam cheias de água e sim de sangue. Diz a lenda que a pessoa que se banha em sangue teria a pele rejuvenescida e a vida eterna.

Isso não importava muito. Elas tiraram mesmo a sorte grande ao aliar-se com Luiz Otávio, o único que estendeu a mão quando mais precisavam de ajuda. E em contrapartida, abriram caminho para que ele pudesse ter mais uma chance de conquistar o poder total sobre a cidade.

- Para o infinito e além, meninas. O céu é o limite para nós.

- O céu, as riquezas e os gatinhos fofos também.

- Pela nossa vitória e pela ascensão do senhor Luiz Otávio.

E deram uma risada macabra ao som de um punk rock da pesada.

* * *

Chegou a hora. Estou bem mais nervosa do que na época do vestibular. Nada poderia sair errado nessa festa em homenagem a um dos maiores heróis que essa cidade já teve e um exemplo de coragem e integridade para todos nós.

Estou falando de Mário Vianna, mais conhecido como “Elliott Ness”.

O troço ficou mesmo importante. Jornalistas de todos os cantos do país e até mesmo do mundo vieram pra cobrir a festa. Ao menos, Pelotas está no mapa do mundo de novo, mas de um jeito peculiar.

Não é qualquer cidade do mundo que tem um herói policial, alguns vigilantes misteriosos (modéstia à parte, tenho orgulho de participar deste mistério), subprefeitos incomuns mas competentes e principalmente porque tem um filho da puta que fez estragos não só aqui como em todo o planeta.

Eu que o diga. Até hoje sinto um vazio em minha alma desde que meus pais morreram. Ainda bem que tenho aqueles quatro pirralhos ao meu lado.

O problema maior é que esse desgraçado também estará na festa com seu séquito e o pior, ele será subprefeito do Laranjal dentro de dois dias. Que mundo injusto esse.

Mas agora é hora de engolir o sapo com tripa e tudo e seguir em frente com a festa que será um sucesso.

E se ligar no solo do mestiço da guitarra e da batida de sua banda dos diabos.

Porque o show está prestes a começar.

* * *

Os quatro jovens adentram no pátio do Dunas Clube e ficam impressionados com a imponência do local onde aconteceram algumas das maiores festas da história da cidade. Mas algumas pessoas viam com desconfiança e até com asco a entrada de Vítor. É ainda o velho preconceito arraigado contra negros que persiste nesta cidade tão marcada pela escravidão.

- Quanta gente, Trida. Estou um pouco amedrontado.

- Fica tranquilo, Vitor. Vais conhecer pessoas muito legais hoje.

- Espero que sim. As pessoas estão me olhando meio de soslaio. É como se estivesse no orfanato de novo.

- Eles que olhem – E ao dizer isso, Aurora sacou a faca que estava na bolsa.

- Pô, Aurora. Guarda esse troço aí. Pode nos expulsar da festa com isso – falou Adalberto.

- Mato aquele que tocar um dedo hostil no meu amigo.

- Tá bom, Lorena Bobbitt, agora vamos entrar porque as tchutchucas estão esperando o tigrão aqui.

- Tigre sem garras e banguela.

- Haja paciência, senhor!! Parem de bancar as comadres e vamos entrar porque a Nara está nos esperando – disse Trida.

E assim que os quatro entram no salão de festas, ficam impressionados com a organização do local bem com sua grandiosidade.

Havia mesas por todos os cantos e os garçons estavam servindo quitutes pra lá e pra cá. Tinha pastéis salgados e de Santa Clara, doces a granel, saladas, carnes, arroz á grega e tradicional, feijão, peixes, strogonoff, enfim todo tipo de comida que possa imaginar. Havia bebidas pra todos os gostos desde vinho até conhaque passando por refrigerante, água mineral e claro, muita cerveja.

No lado esquerdo do salão, havia um DJ que animava a festa com músicas variadas.

Mas para os Defensores de Pelotas, assim como todos os outros convidados, a noite está só começando.

E com muitas surpresas no caminho.

* * *

Nunca me diverti tanto como nessa festa. Fora o incidente com os vovôs ciumentos da entrada, tudo tava indo ás mil maravilhas. Não tenho culpa se a mulherada gosta de mim, vai ver que é meu charme de pelúcia que me torna tão atraente.

O único ruim é a roupa. Tô parecendo o Mickey Mouse depois de tomar umas biritas.

Mas havia um páreo duro na arena. O amigo do crioulinho, o tal de Adalberto, dançou com meio mundo no baile. Nem coroa ele perdoou.

O cara é um verdadeiro para-raios de mulher. Vi a moça de cabelos pretos quase jogá-lo na parede. Só faltou chamá-lo de lagartixa e outras coisas mais.

Só que nem todo mundo gostou disso. O Beethoven ali quase bateu no Adalberto porque se atreveu a dar uma cantada na subprefeita durante a dança. Nesses casos, uma retranca é boa. Atacar faceiro leva porrada na cara. Literalmente.

O chato da festa é a tal da valsa. Danúbio Azul. Que nome mais mequetrefe pra uma música.

Todo mundo dança com seu par e eu numa seca do cacete. Ao menos não estou sozinho nessa. O Luisão e o crioulinho ficaram a ver navios na valsa e eu tive uma ideia pra animar nossa festinha.

Pedi pra promoter providenciar um pouco de comida, cerveja e refrigerante pra viagem. E convidei o crioulinho e o Luisão pra fazer umas lutas lá no Laranjal depois que o Stallone fazer seu discurso derrama-lagrimas.

Porque depois disso era a hora do pula-pula com as músicas loucas do DJ.

E a minha dança é outra. A dança da porrada.

Mas mal sabia eu que a noite estava cheia de kinderovos pra abrir.

Com uma delas tendo uma surpresa não muito agradável e bem malcheirosa.

Na forma de um homem-bosta.

* * *

Nunca estive tão ansioso como naquele palanque. Falar pra um grande público e dar esperanças a uma cidade tão devastada pela pandemia e pelo banditismo mesmo com o comovente esforço desses homens e mulheres que assumiram os bairros é uma responsabilidade muito grande pra mim.

Gostaria que minha mãe e o Jean-Pierre estivessem aqui. Mas o Márcio e a Cris estão comigo assim como meu velho amigo Barba.

Quando fiquei sabendo que aquele crápula iria assumir em dois dias o cargo de subprefeito do Laranjal, tive que contar até mil pra não explodir. E ali discursei com mais garra do que nunca.

- Prezados cidadãos pelotenses, prezadas Vossas Excelências e amigos. Tive a honra de ver essa cidade revitalizada depois de dez anos de muito trabalho e esforço desses homens e mulheres que sacrificaram suas vidas pessoais para esta árdua missão. Mas o caminho ainda é longo depois dessa pandemia que devastou a cidade com muitos mortos e grande parte dos sobreviventes ficaram com sequelas da COVID-19 devido a irresponsabilidade de alguns. Hoje estou de volta pra ajuda-los no combate ao crime que ainda impera na cidade. Quanto aos vigilantes, darei a eles o benefício da dúvida. Pelo que sei, eles não atacam inocentes, só aqueles que ameaçam as pessoas e agridem patrimônio público, além de policiais corruptos, estupradores e todo tipo de vagabundo. Vou investiga-los com rigor, mas não os atrapalharei em sua luta contra o mal. Ainda quero ver um dia nossos filhos, netos e bisnetos andarem numa cidade pacífica sem se preocupar com o que encontrarão na esquina. Eu farei tudo que puder para esse sonho se tornar realidade. Muito obrigado.

O aplauso foi geral e as danças recomeçaram agora em um ritmo frenético do DJ.

Fui abordado pela Nara depois do discurso. Ela fez um trabalho impecável e fiquei muito lisonjeado pela homenagem que fizeram a mim.

Como ela cresceu. A beleza dela é muito maior que a da mãe. Foi muito difícil ver o corpo do pai praticamente envolto em ácido. O legista só o reconheceu pela arcada dentária.

O corpo da mãe teve o pior destino. O filho da puta ainda a usa para seus “treinos sexuais”.

Mas havia algo misterioso nela. O olhar determinado e a dureza de suas ações não condizem com uma socialite. Geralmente são fúteis e meio cabeças-de-vento. Todavia, vejo algo mais nesta garota.

Meus velhos instintos me dizem que em breve nos encontraremos de novo.

Só não esperava que isto ocorreria em circunstâncias diferentes.

E que conhecesse os famosos Defensores de Pelotas.

* * *

- Onde estão aqueles dois, Aurora? Deveriam estar vigiando Luiz Otávio.

- Homens. Simplesmente inúteis.

- Vou ver se a Nara sabe onde eles estão.

- Tão por aí, Trida. Fazem as cagadas e nos pedem ajuda. Sempre assim.

- Fica de olho nele, Aurora.

- Ok.

* * *

Parece que a noite tinha uma surpresa pra mim. Vi que Trida estava preocupada com o sumiço de Adalberto e Vitor e fui ajudá-la a procurar. E fiquei pasma com o que vimos.

Simplesmente Adalberto estava no maior love com aquela devoradora de homens. Love maiúsculo e dourado. Parece que a pouca vergonha e eu são como duas forças irresistíveis destinadas a ficarem se encontrando sempre. Mas não ia permitir que aquela perdedora estragasse minha festa.

- Até as perdedoras tem seu dia de sorte. Só que está no lugar errado, queridinha.

- Hoje acabo com tua raça, vagabunda.

Aquilo foi demais. Ela passou de todos os limites e não pensei duas vezes em esbofeteá-la. Aí o caldo entornou de vez e saímos trocando tapas e chutes até a entrada do salão.

Só fomos apartadas a muito custo pelo Mario Vianna e por aquele desgraçado do Luiz Otávio. Nunca passei uma vergonha tão grande na minha vida, mas pelo menos botei aquelazinha no seu devido lugar.

E Adalberto nem desconfiou que tinha salvado a pele dele.

Porque viraria comida nas mãos daquele crápula.

* * *

- Hector, tu visses o Misha por aí?

- Não. E nem o Luisão está aqui.

- Tomara que não tenham se envolvido naquela confusão lá fora.

- Ele deveria estar vigiando aquele cara ao invés de procurar oponentes pra brigar.

- Acalme-se, Hector. Devem ter feito sua própria festinha.

- Espero que sim, Mosk. Não quero mais problemas hoje.

- Nem eu.

E os dois foram a cantina pegar um pouco de cerveja para acalmar seus nervos.

* * *

Praia deserta. Noite enluarada. Perfeito pra descer o cacete. Finalmente a revanche tão esperada. Hoje haveria humilhação suprema e Luisão seria a testemunha da minha vitória.

Só que pra meu azar do caralho, não pude lutar contra o crioulinho. Luisão viu duas pessoas chegando e tivemos que nos esconder debaixo da arquibancada metálica de beach soccer.

Achei que era um casalzinho querendo privacidade pro fatality, mas estava enganado.

Um deles estava armado e o outro parecia que tinha uma espécie de chapéu na mão ou algo assim.

Isso significa uma coisa.

Que o pau vai cantar em breve.

* * *

- Sandro, eu te matei!! Como ressuscitou?

- Não interessa como voltei e não vim lutar contigo, Marcelo. Vou fazer uma proposta a ti que é de interesse mútuo.

- Vá se foder, seu merda. Tu matasses minha esposa e meu filho que não nasceu. Ajudasse na humilhação que passei com aqueles brutamontes. Me forçasse a trair Mario e agora quer que acredite nesse seu pseudo-arrependimento? Sabe o que me dá vontade, Sandro? É de arrancar tua cabeça com coluna e tudo.

- Desde que voltei a vida, sou um novo homem agora. Estou pagando pelos meus crimes e arrependi-me de ter se aliado com aquele assassino nojento. E pra provar o que digo, te mostrarei como trazer a Mariana de volta a seus braços.

- Me mostra, filho da puta. Se mentir pra mim, furo tuas tripas e arranco sua cabeça pra servir de bola de futebol.

Sandro mostrou a Marcelo uma espécie de chapéu cônico. O tipo que os magos usam.

Logo usou os poderes mágicos do chapéu invocando um raio que abriu uma cratera na areia. Sandro estava confiante e Marcelo vacilou na sua convicção impressionado com o poder daquele chapéu.

Foi a deixa para Sandro dar seu golpe psicológico.

- Então esse chapéu é mesmo poderoso. Traga minha esposa de volta ou acabo contigo.

- Calma, rapaz. Antes disso, temos uma missão a cumprir. Vamos juntos matar nossos dois odiados inimigos, Mário Mosk e Hector Banner, e libertar o Fragata e o Simões Lopes da tirania desses ditadores travestidos de subprefeitos. Depois trarei a Mariana e seu filho de volta. Eu prometo.

- E quanto ao novo subprefeito do Laranjal, o Luiz Otávio? Vamos acabar com ele também?

- Sim, Marcelo. Ele será o próximo. Não posso aceitar que perdi meu espaço em prol daquelas três vadias. O Laranjal será libertado também de sua tirania. Topas?

- Topo. E assim meu amigo Mário Vianna pode ter a paz que tanto merece.

- Sem ter que lutar contra seu Nêmesis e sem mais vigilantes metidos a galos de briga nas ruas.

Os dois apertaram as mãos e Marcelo partiu. Assim que viu o carro dele desaparecer no horizonte, Sandro riu desbragadamente já antevendo o sucesso de seu grande triunfo.

Mataria seus dois odiados inimigos e Marcelo numa só tacada, assim como os Defensores e Mario Vianna juntos no processo. Também aproveitaria a oportunidade criada para matar o restante dos governantes e a prefeita abrindo caminho para que Luiz Otávio volte a ser Ceará I, o Imperador de Pelotas.

No papel, não haveria problemas. Mas a realidade foi totalmente diferente.

Sandro havia cometido um erro fatal.

Havia subestimado a astúcia de um urso de pelúcia, de um garoto do cosplay e de um jovem negro.

Porque este mesmo jovem era um dos Defensores de Pelotas.

* * *

Eu sabia. Bem que tinha avisado ao meu senhor que não deveria ter feito acordo com aquele cangaceiro de merda. Vi com meus próprios olhos sedutores a aliança espúria entre a concubina e o homem-bosta. Querem fazer uma festa de arromba as nossas custas.

Parece que nossa luta vai ter que esperar e o crioulinho concordou com o adiamento. Em contrapartida, só ele pode me chamar de Ursinho Pimpão sem apanhar. Ganhou esse direito depois daquela sumanta que me deu lá no octógono.

Só tenho pena do Elliott Ness. Vai descobrir que seu amigo Malone na verdade é uma vadia do imperador.

A mente dele virará uma panqueca bem passada. Mas é a lei da martelada.

É preciso ser um tigrão pra sobreviver nessa porra de universo. Caso contrário, virará tchutchuca de todo mundo.

Então, eu, o crioulinho e o Luisão voltamos de mansinho pra festa a fim de levar a batata quente que colhemos na praia. Claro que nossos senhores ficaram uma arara com a gente ter saído sem avisar, mas valeu a pena.

Eles ficaram quietos, mas sei que estão alarmados com essa bomba que pode causar estragos em uma cidade já fodida pela pandemia.

E o tamanho da explosão será igual àquela que vitimou os amarelinhos naquelas duas cidades que nem me lembro mais o nome.

Ali cheguei uma conclusão.

A vida é mesmo um Kinder Ovo.

* * *

Adalberto, Trida e Aurora aguardavam a chegada de Vítor para voltar as suas casas e prepararem-se para as aulas do dia seguinte em seus respectivos cursos. Mas todos pensavam em duas coisas: o simpósio que será realizado na UFPEL na próxima semana onde o tema será sobre o futuro da cidade pós-pandemia e as misteriosas cartas de uma palavra só.

- Por onde andou, Vítor? Estávamos preocupados com teu sumiço. Ainda bem que não corresse perigo com aquele urso louco querendo brigar contigo.

- O que aconteceu com o Adalberto, Trida? Parece que a noitada dele foi boa.

- Teve uma briga feia entre a Nara e aquela Savanna por causa dele. A festa vai ser falada no mundo inteiro por isso, né, garanhão? – disse Trida depois de dar um tapa na cabeça de Adalberto.

- A culpa não foi minha. Aquela lá praticamente me assediou a noite inteira. Me senti mais um Michael Douglas do que um José Mayer.

- Sei – disse Aurora.

Mas Vítor tinha um segredo terrível pra contar e assim que o relato acabou, todos ficaram perplexos com a descoberta da provável traição de Marcelo.

- Temos que avisar o Mario Vianna sobre isso. Ele não aguentará essa porrada.

- Tens razão, Vítor. Isso que tu descobriste é muito grave. Temos que proteger o Fragata desse ataque junto com Mosk. Afinal o derrotamos num combate digno e pelo que sei, ele é um cumpridor de promessas.

- Não confio nesse Mosk. É um lobo em pele de cordeiro. Nos fez roubar aquele carro e quase nos matou lá no octógono com aquele psicopata do urso dele, o Bicha – disse Adalberto.

- Bem, pelo que vi desse urso que se chama MISHA, parece ter ganhado meu respeito. Embora seja desbocado e muito racista pro meu gosto, é um oponente formidável. Ainda reencontrei meu companheiro de orfanato, o Luisão. Fico feliz por ele estar bem.

- Não acho que o Mosk seja ruim, apenas está defendendo sua comunidade. Se fosse mesmo um filho da puta como dizem, nós não estaríamos aqui.

- A Aurora tem razão. Vamos dar um passo de cada vez. Afinal um novo dia está começando e temos muito o que fazer antes deste simpósio. E existe um enigma a ser decifrado.

Trida estava certa.

Havia novos desafios pela frente aos jovens vigilantes que se uniram para um propósito.

Proteger a cidade de Pelotas de todo mal que possa ameaçá-la.

MarioGayer
Enviado por MarioGayer em 22/02/2023
Código do texto: T7725223
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