Jornalismo Internacional

“Mas meu testemunho é de que a bebida alcoólica é uma companheira muito assídua do correspondente internacional”

Carlos Eduardo Lins da Silva, na obra “Correspondente Internacional”

***

Chego em casa. Exausto. E tonto. Depois de mandar reportagens para a Associated Press, parei no bar e tomei cachaça. Comprei duas garrafas para secar em casa. Se tem algo que vale a pena nessa parte da América - para onde me mandaram - é a cachaça. Aliás, ainda não entendi por que diabos me enviaram para cá. Em questão de Política Externa, o Brasil era considerado um local monótono para produzir “fatos internacionais” - isto é, fatos que interessassem jornais de outras partes do mundo. E olhe que há ainda uma Guerra Mundial acontecendo, o que ofusca ainda mais qualquer situação que ocorra nessas terras tupiniquins. Mas, nas últimas semanas, ocorridos ou acontecimentos estavam chamando atenção, porque estavam relacionados à Guerra. Situações interessantes. A Associated Press montou um escritório às pressas, no momento certo. Era como se o editor soubesse o que iria acontecer. Boa intuição, a dele.

Dentro do apartamento que aluguei, mesmo embriagado, notei algo insólito, antes mesmo de ligar a luz. Barulho de respiração - não a minha. Uma silhueta toda escura de um homem, em pé, a pouquíssimos metros na minha frente. Efeito do alcool? Ou alguém invadiu minha casa? Aprendi de forma desagradável que a segunda hipótese estava acontecendo. De fato, havia alguém além de mim no apartamento e não era uma mulher nua me esperando. Eu precisava de um rabo urgente.

- Quem está aí?

Conversávamos em inglês.

- Olá, Correspondente. - disse a figura. - Não estou aqui para machucá-lo.

Puta que pariu. Será o editor da Associated Press? O cara me chamou de “Correspondente”. Pode ser que ele tenha vindo para me cobrar algo que esqueci. Sério. O sujeito era rigoroso com o trabalho. Era metódico e perfeccionista. Gostava do papo cara a cara. De dizer na cara do repórter que o trabalho estava uma bosta. Não seria inverossímil cogitar que era ele me esperando para me criticar.

- O que você quer?

- Quero um favor. Não ligue a luz.

- Pronto, não vou ligar a luz. Quer mais outro favor? - afirmei. Eu estava assustado.

- Não é isso, idiota! Vou te entregar um documento.

- Quem é você?

- Isso não importa. Eu não seria burro em falar demais com um jornalista.

Não era meu editor. Ufa! Era apenas um desconhecido querendo que eu faça algo para ele. Talvez algum crime. Fico mais aliviado.

- Mas talvez esteja sendo burro ao pedir um favor para um jornalista. Seu pedido pode parar em incontáveis jornais amanhã. Cuidado.

- Você não tem medo de ser sarcástico com alguém que você não conhece e que entrou fácil nesse apartamento esquálido? Deu para notar que você não ganha bem. O que eu quero não me compromete em nada. Ademais, isso aqui, na verdade, é uma troca de favores. Você me ajuda e eu te ajudo.

- Vai me dar mais alguma garrafa de cachaça? - agora percebi que ele carregava uma garrafa.

- Você é alcoolatra? Mas, sim, isso também.

- O que você quer?

O Homem Misterioso mexeu em um dos bolsos do terno. Em sua mão direita, havia algo semelhante a uma missiva. O clássico envelope branco.

- O que tem aí? - perguntei

- Quer saber demais.

- Claro, eu sou um jornalista.

- Pode acabar se tornando um jornalista encrencado. A curiosidade deve ter limites, repórter. Tudo que eu quero é que você entregue essa carta à embaixada americana. Amanhã de manhã, bem cedo. Faça isso antes de ir trabalhar. Ao chegar e entregar, diga que a descoberta foi obra do serviço de inteligência do Estados Unidos.

- E por que eu devia fazer isso?

- Em troca de cachaça e de um furo de reportagem.

- Está quase me convencendo. - eu disse, e depois vomitei no tapete.

- Nojento você.

- Agora eu entendi tudo. Meu editor não me mandou para cá por acaso. Foi tudo combinado, não é? - afirmei, com a boca suja de vômito.

- Não sei. Você está referindo ao quê?

- Sabe sim. E eu sabia: enviar-me para ser correspondente na América, num país em que a esmagadora maioria dos acontecimentos não merece repercussão internacional. Não pode ser coincidência. Jornalista não acredita em coincidências.

- Você está bêbado e delirando teorias conspiratórias tolas.

- Não pode ser coincidência. Você está a serviço dos Aliados? Quem diabos é você? Ou melhor, o que é você?

- Se eu fosse você, nem me meteria nisso. Nem ia querer saber demais. Tome a carta e entregue. Cumpra o que eu disse.

- E se você for um agente a serviço do Eixo e essa carta for algum tipo de arma que matará o pessoal da embaixada?

O Agente riu. Abriu a carta, cheirou, passou até a língua nela. Depois colocou o documento de volta no envelope.

- Convenci você? Já sabia que lidar com jornalista era difícil. Mas não imaginava que lidar com um jornalista bêbado seria ainda mais complicado. Pensava que era fácil. Essa carta foi encontrada na casa de um importante Comandante italiano. O conteúdo irá interessar às autoridades da embaixada e, creio eu, ao presidente.

- Na casa de um Comandante, mas o que…?

- Você será o primeiro repórter a saber que ocorreu um assalto essa noite na casa do Comandante. Olha aí, você está recebendo seu segundo prêmio. Vou deixar a carta e a sua cachaça do lado da sua máquina de escrever. Você quer ser autor? Li seus poemas, Charlie. São horríveis.

- Obrigado.

- Agora vire-se.

- O quê?

- Apenas vire-se.

- Por que eu?

- Por que você tem que se virar? Ora, porque…

- Não é isso. - o interrompi. - Tanto jornalista, por que eu fui escolhido?

O Homem riu.

- Como eu disse, quanto menos você souber, melhor. Agora vire-se para a parede atrás de você. E se você se recusar a entregar a carta, eu mesmo me encarregarei de te denunciar como um colaborador do Eixo. Sua omissão vai comprometer a série de missões nesse país. Correspondente, não complique sua vida. Você está a serviço do Impé…

Antes de ele terminar, vomitei de novo e desmaiei. Acho que fiz “melhor” do que ele exigia.

Acordei de manhã. A cabeça doía. Ressaca. Estava atrasado. Mas eu era o único no escritório da AP, então nem liguei. Ingeri analgésicos e saí para trabalhar. Estava com a sensação de que estava esquecendo alguma coisa. Cheguei e coloquei minhas coisas no escritório. O bar ainda não estava aberto. Abri os jornais brasileiros. Notei que os caras daqui não faziam a menor ideia do que era lide e pirâmide invertida. Os textos eram literatices, nariz-de-cera. E eram entediantes. Ler uma publicação inteira por aqui exigia esforço hercúleo. Também não havia quase fotografia alguma.

Continuava com a sensação de que estava esquecendo alguma coisa.

No Brasil quase não acontece nada que interesse ao resto do mundo. Contudo, nas últimas semanas, o presidente do Brasil sinalizava que se afastaria do Eixo. Tanto o Brasil oficial, como o Brasil verdadeiro, isto é, o Brasil da rua, do cotidiano dos brasileiros, estava se inclinando a apoiar os Aliados. Nos últimos dias, uma onda de hostilidade contra italianos “fascistas” se fortalecia. Para alguns brasileiros, ser italiano significava ser fascista. Entre jornais brasileiros clandestinos, que eram oposição tanto ao governo local, quanto aos fascistas, circulava um panfleto radical que incitava a violência contra italianos: “Como Marretar um Fascista”, de Marzio Bertolazzi. O cara tem nome italiano e está contra os italianos. Ou talvez seja apenas um pseudônimo, uma forma de deboche. Vai saber. Havia uma cobrança desses jornais: o Presidente não pode se inclinar para o Eixo. Não pode se aliar com os fascistas.

É isso. Vou escrever uma reportagem a respeito. E continuo com a sensação de que esqueci alguma coisa.

Vou ao bar, que enfim abriu. É um horário bom, pois está vazio. No fim da tarde e durante a noite, fica cheio de jornalistas. Um monte de caras que querem relaxar enchendo o cu de alcool, depois de uma rotina estressante na redação. Por aqui encontramos revisores, repórteres, correspondentes, editores… A gente fica discutindo qual é a pior função no jornalismo. Inventamos um meio de medir: quem bebe a maior quantidade de bebida alcoólica tem a função mais desgastante. Ganho todos os dias. E de lavada. Então, concluimos todos que correspondente internacional com certeza é a função jornalística mais degradante. Um brinde!

Chego em casa. Exausto. E tonto. Hoje me superei. Bebi pra caralho. Queria cair na cama e apagar, porém não foi possível. Alguém acertou minha cabeça com uma garrafa de cachaça. Em vez de cair na cama, caí no chão.

- Levante, seu desgraçado!

Era o cara da noite anterior. Ah, sim, agora é que me lembrei da carta. Puta merda! Não entreguei como ele exigiu. Estou com a cabeça sangrando. O cara me chuta enquanto me xinga de tudo que é nome.

- Eu confiei em você, imbecil.

- Não tinha gente melhor para confiar?

Ele ficou ainda mais puto. E começou a me chutar mais forte.

- Você está bêbado! Bêbado! Como a Associated Press pode empregar um bêbado desgraçado como você?

Boa pergunta.

- Pra quê isso, cara? Acalme-se. - eu disse.

E ele fica mais furioso. Vomitei no pé dele.

- Eita, merda…

Ficou tão puto que puxou a arma. Tinha silenciador. Ele poderia me matar e ninguém escutaria. Nem se importaria.

- Eu estava pensando em ferrar com você. Dar um jeito para encerrar sua carreira de jornalista. Mas mudei de ideia. Ninguém sentirá falta de um merda como você. - ele disse. Estava pronto para atirar.

Primeiro, ele tentou esfregar meu rosto no vômito. Reagi. Levantei-me do chão de forma súbita e acertei um soco na cara do desgraçado. Reagi, depois de apanhar por uns quarenta minutos. Ele caiu em cima da mesa onde estava a carta. Botei a base. Ele levantou e veio para cima. Tentei dar outro soco. Ele se esquivou e acertou minha barriga. Caí.

- Você me pegou desprevenido. Nunca imaginei que um verme como você reagiria assim.

Tentei acertá-lo. Ele mais uma vez se saiu do meu golpe e me acertou no rosto. Eu não tenho chance. Ele é treinado. Sabe lutar. Quem diabos é esse cara?

- Levante, seu imundo!

Ele me pegou e me arrastou pela gola da minha camisa. Colocou a carta em um dos bolsos do terno. Amarrou-me e colocou-me à força dentro de um carro. Eu estava embriagado e zonzo com as porradas. Facilitou o objetivo dele.

- Preciso de um rabo. - eu disse.

- Quê?!

- Eu disse que preciso de um rabo.

Mais três socos na boca.

O cara estava me levando de carro para algum lugar. Vai me matar? Não sei - parece que ele não queria me matar no apartamento. Nem consegui perguntar o que ele pretendia fazer comigo, pois estava com medo da resposta. Ademais, eu estava quase desmaiando.

De repente, o carro parou de forma abrupta. Um outro carro atravessado na rua, como se tivesse fechando o veículo onde eu estava. Uns barulhos estranhos. Vidros quebrando. Vejo o meu agressor com a cara no volante. Sangue saindo da boca dele. Um homem vasculhando o bolso dele e tirando uma carta. Vejo também uma bandeira nazista. Muita coisa aconteceu nessas últimas duas noites, mas ainda não entendi o que está havendo, estou com sono, quero descansar um pouco…

FIM