"Você sabe com quem está falando?"

Certa vez, na cidade de São Paulo, um taxista típico iniciou uma corrida com um rapaz de aparência elegante; bem vestido; de semblante sério. O passageiro fez uma corrida longa, com várias paradas. Em determinado momento, solicitou que o profissional parasse diante de uma residência, indicando o fim da extensa jornada. Disse ao motorista que precisava pegar o dinheiro e desapareceu portão adentro. O tempo foi passando enquanto o taxista aguardava, desconfiado, o retorno do homem. Chegou enfim a conclusão de que ele não tinha intenção de pagar pelo cansativo serviço prestado, então sua única alternativa foi recorrer à lei e assegurar seus direitos. Acionou a polícia.

Uma viatura chegou ao local e dois oficiais desceram dela com seus uniformes e identificações. Um mais jovem, com pouco mais de 18 anos e outro mais experiente, que coincidentemente também era colega de profissão da vítima, taxista. Após ouvir o motorista, se dirigiram à casa e apertaram o interfone. Em bom tom se identificaram e educadamente solicitaram que o infrator saísse.

O homem saiu, ainda mais sério do que antes. Abriu o portão e cumprimentou friamente os oficiais, que também não fizeram questão de muita cortesia. Foram claros e diretos, questionando se o cidadão tinha intenção de pagar pela corrida.

O rapaz estufou o peito, ergueu o queixo e soltou, em alto e bom som, um confiante "Você sabe com quem está falando?". Colocou a mão no bolso e prontamente apresentou sua carteirinha de identificação com as inscrições "Ordem dos Advogados Brasileiros". Tratava-se de um advogado, formado e devidamente credenciado. Talvez isso explicasse sua tamanha arrogância.

Indo contra as expectativas do advogado, sem pensar duas vezes e movido pela compaixão com o colega taxista, o policial mais experiente tomou a carteirinha da mão do rapaz, a rasgou e a jogou no chão. Com um grosseiro "Pouco me importa esta merda", deixou claro que a posição de advogado do rapaz era totalmente irrelevante para a situação.

A postura do infrator mudou imediatamente. Sua expressão de surpresa entregou a frustração que a reação do policial causou. O oficial acrescentou: "Vai pagar ou não?". O homem imediatamente tirou a quantia exata para pagar a corrida do bolso, demonstrando que tinha dinheiro, mas pensava não ter obrigação de pagar.

Análise:

No acontecimento relatado, percebemos uma tentativa de sobreposição de um grupo dominante a um grupo dominado, deixando evidente a indesejável cultura brasileira da exigência de privilégios provenientes de títulos e posição social, estabelecendo assim o conflito.

A classe a qual o personagem pertence (advogado), está habituada com seu lugar de superioridade na hierarquia social, a qual não prevê um conflito como o ocorrido e muito menos a reação de "insubordinação" do agente (policial).

Nessa história, vemos a desconstrução da autoridade que comumente é atribuída ao advogado.

Ele tenta mostrar aos policiais que está acima da lei, como uma maneira de justificar um ato que seria inadmissível à outras classes, então tenta impor o seu poder através da revelação da sua posição. A expectativa era que os agentes se constrangessem com sua própria insolência, desculpando-se pelo transtorno causado, o que não aconteceu.

A reação dos policiais quebra o padrão de pessoalidade comum a esse rito, sendo regida pelas leis e não por uma consideração pela pessoa naturalizadamente "superior" na cultura brasileira.

Vemos nessa história uma consciência horizontal, na qual prevalecem os direitos do taxista e não os do advogado, como normalmente acontece na consciência vertical. Provavelmente o advogado foi acometido de sentimentos de indignação e oposição à atitude dos policiais, o que apenas reforçaria o caráter horizontal desse ocorrido.

Confirmando a dramatização do rito, temos o confronto direto entre os policiais e o advogado, com uma tensão característica. O conflito se dá entre dois representantes anônimos devidamente identificáveis e um representante que sente a necessidade de revelar sua autoridade diante da ameaça dos policiais, passando de "oprimido para opressor ".

A identidade é revelada mediante a apresentação de um documento comprobatório, porém neste contexto foi atribuído um papel de irrelevância à revelação.

Não houve separação entre a pessoa e a norma por parte dos policiais, mantendo a impessoalidade no rito. A dominância da lei prevaleceu à posição social, frustrando as expectativas do advogado e dando prioridade aos direitos do taxista.