FALCÃO PEÇANHA

FALCÃO PEÇANHA

Conto um

Estava bom demais para ser verdade. A segunda-feira havia começado tranquila. Acordei pela manhã ainda cansado da noite anterior quando Raquel e eu resolvemos fazer amor de madrugada, por volta das duas da manhã. Foi muito estranho. Quando finalmente terminamos, o dia já despontava no céu e minha namorada precisava se ajeitar para voltar ao trabalho. Eu ainda permaneci algumas horinhas, mas levantei-me assim que o celular despertou às sete. Eu não costumo dormir na casa de Raquel aos domingos, poucas foram às vezes em que fiz isso. Nossos encontros limitam-se muito mais as sextas-feiras e sábados, isso quando ela não está de plantão no hospital onde é enfermeira há doze anos. Deixei a casa de minha garota e tomei café da manhã numa padaria meia-boca que fica na esquina. Saboreei um delicioso Croissant de queijo com presunto junto com um café puro coado na hora. Às oito e vinte deixei o estabelecimento e dirigi sem pressa alguma até o DPN(Departamento Policial de Natalina) onde atuo como investigador a mais ou menos vinte anos. Ao chegar, fui recepcionado por Rubens Fragoso, capitão do DP, segurando uma folha de A4 pela ponta. Eu já sabia muito bem do que aquilo se tratava.

- Toma, é seu. - deu-me as costas.

- Bom dia, capitão.

Fragoso girou nos calcanhares.

- Bom dia, senhor Lauro. Agora mexa-se.

O normal de Rubens é o mal humor e isso se intensifica ainda mais as segundas-feiras, principalmente pela manhã. Eu gosto do capitão, aprendi muito com ele e verdade seja dita: se Natalina é o que é hoje em questão de segurança pública, devemos muito isso a ele que possuí polícia nas veias. Caminhei a passos curtos até minha mesa lendo a ocorrência e decidi ver de perto toda a situação.

*

Parei meu carro no acostamento e desci ajeitando minha camisa para dentro da calça. Sempre gostei de estar bem apresentável para ir a qualquer lugar, mesmo que o lugar seja uma suposta cena do crime. Passei pelas viaturas da PM e me identifiquei para os agentes que guardavam o corpo. Haviam muitos curiosos por ali fazendo seus registros. O ser humano é algo belo e ao mesmo tempo complexo. Temos uma tremenda aversão a dor e ao sofrimento, mas sempre que temos a oportunidade estamos ali, contemplando-os.

- Com licença. – falei ao passar por uma moça que não tirava os olhos do cadáver. – foi você quem a encontrou?

- Sim! – seu nervosismo era tanto que ela mal conseguia me responder.

- Pode me dizer em detalhes como foi que aconteceu?

- Acho que sim. Eu sempre passo por aqui a pé quando vou para o trabalho, aproveito para apreciar a vista...

- Pois é, o lugar aqui é remoto, mas é bem arborizado, muito verde.

- Dai então eu olhei e vi o saco de lixo preto e fiquei revoltada. Como pode, jogaram lixo aqui? Foi quando desci e vi que... – a voz ficou embargada. – vi a pobrezinha.

Passei a mão no rosto e solicitei que um dos PMs colhesse mais informações com ela. Acocorei-me para ver o corpo mais de perto.

- Mulher branca, boa aparência, quarenta e cinco anos no máximo, morta por disparo de arma de fogo na região do tórax. – olhei para o PM. – uma execução.

- Tentativa de assalto?

- Não! – me levantei. – ela foi deixada aqui. Foi executada. Quem cometeu o crime sabia o que estava fazendo. Tiro no peito. Queriam ela morta.

O outro policial apertou os olhos e soltou uma piadinha sem graça.

- Você é o Sherlock Holmes por um acaso?

- Não! – me afastei. – apenas estudei um pouco mais do que você.

*

Meu pai foi um policial. Um baita policial diga-se de passagem. Sempre quando pode, dona Jurema, minha querida mamãe, faz questão de enaltecê-lo nas reuniões de família. Segundo ela, o senhor Osmar Falcão Peçanha era considerado o xerifão de Natalina e que com ele a bandidagem não tinha vez. Pois é, meu coroa era bom no que fazia, ele tinha a profissão como um verdadeiro sacerdócio. Eu me lembro e não foram poucas as vezes em que ele nos abandonou no meio da madrugada para atender a um chamado de urgência. Meu pai, meu herói e meu exemplo, é claro.

Voltei para o meu veículo lembrando-me do passado quando meu telefone vibrou no bolso de trás da calça. Era Raquel.

- Oi! - sentei-me ao volante.

- Eu sei que passamos o final de semana inteiro juntinhos, mas, será que podemos nos ver hoje?

Eu já sabia aonde Raquel queria chegar com aquela conversa.

- Por mim tudo bem. Só preciso avisar minha mãe.

Ela ficou em silêncio, provavelmente fazendo caras e bocas.

- Tudo bem. Eu aguardo você avisar sua mamãezinha.

Minha mãe e Raquel nunca foram amigas, porém longe de serem inimigas. O grande problema em questão é; Raquel Assunção quer se tornar a senhora Falcão Peçanha de qualquer jeito e eu tento as duras penas fazer com que ela mude de ideia. Casar pra que? Não podemos só morarmos juntos, ou simplesmente seguirmos como namorados?

- Querida. Estou no meio de uma investigação. Te ligo depois. Certo?

- Fico te esperando.

Precisei parar e fazer com que minha mente voltasse ao foco do caso. Olhei para o lado e vi um dos peritos passando pelas fitas amarelas que isolavam o local. Acenei para ela a pedindo que aguardasse.

- Bom dia! Já tem um parecer?

- Incipiente, mas sim. Sem sinais de violência física. Tudo indica que ela foi morta e colocada aqui.

A perita era uma mulher esbelta, alta, cabelos cortados bem curtinhos e não tirava os olhos de mim um segundo.

- Temos uma identificação?

- Sim! Sônia Soares.

Ela me mostrou o documento. Eu não tinha luvas ali no momento, por isso analisei o material nas mãos da perita. Sônia Soares, uma mulher madura, olhos vivos em um semblante bastante comum. Por que a mataram?

- Ótimo! Não quero lhe atrasar.

- Que nada, foi um prazer.

Ai, ai, ai essas mulheres!

*

Jurema Falcão Peçanha, minha mãe, a mulher mais enigmática do mundo. Nem meu falecido pai o qual conviveu com ela cerca de trinta e cinco anos a conheceu direito. Ele vivia dizendo “Jureminha, minha querida, você é um mistério profundo”. Ela adorava quando ele dizia essas coisas para ela, talvez tenha sido isso que o fez se louco por ela todos aqueles anos.

Eu passei o final de semana todo na casa de Raquel e quando isso ficou decidido, eu apenas a comuniquei e ela deu de ombros como sempre faz. Dona Jurema se faz de durona, finge que não se importa, mas na verdade ela se corrói de ciúmes por dentro e não é por menos. Sou filho único. Quarenta anos e ainda moro com ela e não pretendo largar da barra de sua saia tão cedo.

- Oi, coroa! – falei assim que ela me atendeu.

- Coroa é a sua mãe!

- Você é a minha mãe. – ri.

- Já sei: vou passar na casa da Raquel mais tarde. Acertei?

- A senhora deveria jogar na loteria.

- Lauro, meu filho, você já é um homem barbado, vê se toma jeito e case-se com essa moça, ela parece ser legal.

Só me faltava essa. Sofrendo pressão dos dois lados.

- Tudo bem, mãe. Vamos com calma. Só liguei para avisar.

- Tudo certo, meu filho. Agora deixa eu voltar a ver meus vídeos de culinária em paz.

Agora sim eu poderia seguir com meu trabalho bem mais tranquilo.

*

Mais tarde lá estava eu envolto de meus pensamentos aguardando minha namorada surgir na porta de saída do hospital para termos definitivamente uma conversa sobre o nosso relacionamento. Um bom policial nunca perde tempo, dizia meu querido pai. Aproveitei para deixar Fragoso a par do que havia acontecido.

- Eu já descartei a possibilidade de latrocínio.

- Acha que foi uma execução, então?

- Positivo. – respondi acenando para Raquel que deixava a unidade hospitalar.

- Siga com o trabalho. Quero relatório completo a cada passo, copiado?

- Copiado.

Raquel entrou de maneira ruidosa jogando seus pertences no banco de trás.

- Oi! – me beijou. – estou morrendo de fome, podemos comer alguma coisa?

- Serve um dogão da esquina?

- Claro que serve, amo os podrões.

Parei o carro bem ao lado do famoso hot dog vinte quatro horas que localiza-se em uma das praças mais movimentadas de Natalina. Essa praça é muito conhecida e considerada o maior polo gastronômico da região. Quase tudo relacionado a comida tem ali. Desde culinária Árabe a maravilhosa comida mineira. Raquel foi correndo para a fila do dogão e eu, mais uma vez, botei a mente para funcionar. Sônia Soares e sua execução. De repente notei uma movimentação suspeita de um indivíduo. Ele circulava por entre os transeuntes parecendo esconder algo por baixo da blusa.

Perto da barraca do frango frito haviam duas meninas comendo e jogando conversar fora. Alvo fácil. Desci segurando minha pistola ainda no coldre. O tal malandro as abordou com uma faca de cozinha. Eu apertei meus passos sacando minha Glock.

- Polícia, parado. Jogue a arma no chão.

Um animal acuado costuma atacar ou fugir, nesse caso ele decidiu fugir. Eu até esbocei correr, mas minhas condições físicas não andam lá essas coisas. Preferi acionar a patrulha mais próxima e estava tudo certo. Raquel veio segurando dois cachorros-quentes bem caprichados.

- Você está bem? – ela olhava ao redor.

- Estou! Vamos nessa.

*

É sempre bom estar com Raquel. Além de ser uma mulher extraordinariamente bonita e gostosa, ela é inteligente e agradável. Lógico que não ficaríamos somente no dogão sentados no sofá assistindo a TV. Fizemos amor ali mesmo e na hora do banho, iniciamos tudo novamente. Ao final eu estava fraco, por isso me joguei na cama ainda nu.

- E então, senhor Lauro Falcão Peçanha. Quais as suas pretensões comigo?

- As melhores possíveis. – falei com a cara enterrada no colchão.

- Estou falando sério, cara. Eu já tenho 37 anos. Quando vai parar de me enrolar? – se envolveu na toalha.

- Eu não estou te enrolando. Nós podemos morar juntos, seria a mesma coisa. Ou não?

- Não acho. Prefiro casar. – mexeu nos cabelos molhados o que a deixou ainda mais linda.

- Eu curto o nosso lance. - levantei-me. – posso pensar?

Ela me olhou e depois olhou na direção do meu membro e sorriu.

- Eu quero me casar, detetive. Nada diferente disso, se não...

- Se não? – cruzei os braços.

- Vamos ter que dar um tempo no namoro.

*

Lembra de quando falei que tudo estava bom demais para ser verdade? Pois então. Eu falava justamente do fato de Raquel ter me colocado contra a parede e praticamente exigir que eu me case com ela. As coisas não devem ser assim, não desse jeito. Eu a amo muito, mas eu também penso que casamento é um passo muito sério a ser dado. Não pode ser levado como uma brincadeira de casinha. Dar um tempo no namoro. Não sou do tipo que aceita pressão e se tiver que ser assim...

Fui até a residência dos Soares, mas confesso que minha cabeça não estava nenhum pouco preparada para tal tarefa. Normalmente as conversas com parentes ou familiares de vítimas de homicídios não costumam ser nada agradáveis. A casa é simples. Muros altos. Portão de social e portão de garagem combinando. Interfone. Típico lar de pessoas de classe média.

- Bom dia. Sou o investigador Falcão Peçanha, posso falar com o senhor Luís Soares?

Aguardei a resposta e ela veio dez segundos depois. Uma voz baixa, metalizado devido ao microfone do aparelho.

- Um momento!

O portão social se abriu e dele surgiu um cidadão mediano, pele branca com algumas manchas vermelhas, óculos e incrivelmente calvo.

- Bom dia, senhor policial. Em que posso ser útil?

Luís Soares tinha porte de professor universitário.

- Podemos entrar e conversar?

- Sim! – falou me dando passagem.

Se eu fosse apostar, ganharia o prêmio sozinho. A casa por dentro era ainda melhor do que por fora. Tudo do bom e do melhor havia ali dentro.

- Sente-se detetive. Deseja tomar alguma coisa, um café talvez?

A educação do sujeito era quase irritante.

- Pode ser.

Para quem acabou de perder a esposa de um modo tão terrível, até que Luís Soares estava tranquilo. Tranquilo demais para o meu gosto.

- Prontinho!

O cara acertou até na quantidade de açúcar que gosto.

- Podemos começar, detetive... – apertou os olhos por trás dos óculos.

- Lauro Falcão Peçanha. – deixei a xícara em cima da mesa de centro. – em primeiro lugar, lamento pela sua perda e dizer que estarei trabalhando a finco para solucionar esse caso. E em segundo, gostaria de saber o que sua esposa fazia ou fez para ser executada?

Luís Soares não tirava os olhos de mim um segundo sequer.

- Executada?

- Sim! Pelo menos é o que as evidencias mostram.

- Não foi um assalto? – falou sem esboçar qualquer movimento.

- A princípio acreditávamos que sim, mas, depois de estudarmos melhor o fato, temos 98% de certeza de que sua esposa, Sônia Soares foi executada.

Agora sim Soares desabou num choro comovente que por muito tempo se encontrara represado. Me fez lembrar um menino levado que acabou de ter o pedido negado pela mãe. Incrível! O deixei terminar.

- Meu Deus! Aonde vamos parar? – tirou os óculos revelando olhos miúdos. – minha Sônia era uma mulher tão boa, era capaz de tirar do nosso filho para dar para outros.

- Lamento! – engoli seco. – o que ela foi fazer do outro lado da cidade?

Os óculos voltaram a ornamentar o rosto. Luís parecia um tomate de tão vermelho que estava.

- Ela saiu daqui dizendo que participaria de uma exposição de artesanato. Nem meu filho e eu pudemos acompanha-la então ela decidiu ir sozinha.

- Hum! O senhor e seu filho foram para algum outro lugar?

- Eu prometi ao Lucas que o levaria ao cinema.

- Tem como comprovar isso?

Se outrora o homem parecia um tomate, agora então parecia a beira de um derrame.

- Vamos ver se estou entendendo. - ajeitou-se na poltrona. – por um acaso sou suspeito?

- Entenda uma coisa, seu Luís...

- Acho que podemos dar essa conversa por encerrada.

Me levantei ainda falando.

- Não há registros de ligações do senhor no celular da sua esposa.

A respiração do viúvo passou a falar mais alto.

- Infelizmente minha mulher tinha sérios problemas com relação ao horário, senhor policial. Estou acostumado a vê-la chegar muito tarde da noite. Simplesmente achei que seria mais um desses dias. Entendeu?

- Ótimo! – andei em direção a porta. – tenha um bom dia, senhor Luís.

- O senhor também, policial.

*

Fisicamente eu estava bem, mas mentalmente um bagaço. Aproveitei as horinhas de folga para relaxar e quem sabe jogar um pouco. Tudo isso foi planejado, porém me esqueci de um fator primordial chamado Jurema Falcão Peçanha, minha querida mamãe.

Logo ao entrar pela porta dos fundos que dá acesso a cozinha, dei de cara com ela picando alguns legumes para o seu famoso cozido.

- Bênção, mãe!

- Deus te abençoe, meu filho.

Eu já havia cruzado toda cozinha quando ela me fez girar os calcanhares.

- Sente-se.

Seu pedido é uma ordem.

Puxei a cadeira. Me sentei e aguardei.

- A pelo menos um mês tivemos uma conversa. Lembra? E você disse que resolveria tudo com Raquel, então... vou direto ao ponto. Assunto resolvido ou não?

Eu amo minha mãe. Daria minha vida por ela, mas tinha horas em que ela testava meus limites.

- Conversei com ela sim.

Dona Jurema me olhou por trás dos óculos de leitura.

- E?

- Nada feito. – suspirei.

Minha mãe voltou com sua tarefa visivelmente irritada.

- Se eu fosse essa moça já teria lhe dado um pé na bunda.

- O que é isso, mãe?

- O que ouviu! Por que não joga limpo com ela? Por que não diz logo; Raquel, estamos juntos, mas casar não é a minha finalidade. Pronto. Fica mais bonito do que ficar enrolando a menina.

Ficamos em silêncio. Somente as batidas da faca contra o vidro da mesa eram ouvidas.

- A senhora tem razão. – me levantei. – vou ligar para Raquel e...

- Tome logo uma decisão.

Andei até meu quarto um pouco mais fadigado mentalmente. As vezes penso que, relacionamento amoroso e investigação criminal são coisas que jamais deveriam andar juntas e no meu caso há mais um agravante: policial solteiro, namorando e que ainda mora com sua mãe viúva. É complicado demais. As cobranças surgem de ambos os lados. Ao ver minha cama, meticulosamente arrumada, pensei duas vezes em me jogar. Dona Jurema é sinistra. Não me joguei, como é de costume. Me deitei fechando os olhos, quem sabe um cochilo antes de uma tomada decisão não ajude?

*

Bem antes de ser acometida pela tragédia que infelizmente tirou Sônia Soares do convívio da família, os Soares viviam bem, na medida do possível. Luís, até mesmo antes de conhecer sua esposa, já era um funcionário público muito bem remunerado e sempre viveu como um verdadeiro playboy. Sônia, ganhava a vida prestando seus serviços como explicadora e na época em que começou a se relacionar com Luís levou a fama de aproveitadora. A golpista do baú. Lógico que isso não a fez desistir do casamento. Entre Luís e ela existia amor de verdade. Sônia não sabia que estava grávida quando propôs ao esposo que a ajudasse com um empreendimento que, segundo ela, a renda mensal da família triplicaria.

- Uma loja virtual? – Luís tirou os óculos.

- Exatamente! Esse mercado vem crescendo muito nos últimos tempos. – lhe mostrou o site na tela do notebook.

- E que garantias temos que esse negócio é promissor? – cruzou os braços.

- Numa loja virtual estamos livres de aluguel. Tudo o que precisamos é de um lugar para estoque, ou seja: custo baixíssimo.

- Hum! Não sei não. Vou pensar no assunto.

Quando Lucas nasceu, a loja virtual de Sônia já era um sucesso e como foi previsto, a renda familiar foi parar nas alturas ao ponto do próprio chefe da família se tornar um dos funcionários.

- Minha esposa querida e sua mente visionária. Que orgulho. – a abraçou. – essa vitória merece uma comemoração a dois.

- Hum, gostei da ideia.

- Que tal um jantar logo mais a noite no restaurante onde lhe pedi em casamento?

- Jura?

Luís anuiu.

A realidade é cruel e não poupa absolutamente ninguém, classe social, etnia, cor da pele ou idade. Lucas Soares sofre com a ausência da mãe e isso o faz chorar e ter pesadelos todas as noites.

- Oi, filho? – Luís entrou no quarto às pressas.

- Pai, a mamãe. – se jogou no colo do pai.

- Sonhou com ela de novo?

- Sim!

- Se acalme, filhão. Nós vamos superar tudo isso. Acredite no papai.

- O senhor pode ficar aqui comigo?

- Claro. – o deitou. – papai vai ficar sentado bem aqui.

E assim tem sido às noites de Luís e de seu único filho Lucas desde quando Sônia foi assassinada.

*

As vezes me pego pensando sobre decisões que tomei e às que ainda preciso tomar. Eu digo as vezes porque quase sempre estou com a mente direcionada ao trabalho. Confesso que não ligo muito para os assuntos concernentes a minha vida amorosa. Eu amo ser solteiro e não vejo razão para abandona-la. Quanto a Raquel e minha mãe, prefiro deixar com que o destino resolva por mim. Sou investigador de polícia e quando sou comissionado para resolver um caso eu não posso me dar ao luxo de refletir em questões paralelas.

Voltei ao DPN e minha intenção era seguir direto para a sala de Fragoso e deixá-lo inteirado da visita que fiz ao viúvo de Sônia Soares, mas antes que eu pudesse fazer isso ele me abordou no corredor.

- Como foi lá?

- Saí de lá com uma impressão de que terei que retornar.

Rubens cruzou os braços.

- Por que, acha que Luís Soares não foi convincente?

- Não sei! Só sei que eu preciso voltar lá uma segunda vez.

- Tudo bem! O tempo está passando. – começou a andar em direção a sua sala. – quero que volte a residência dos Soares ainda hoje se for possível.

- Sim, senhor.

- A mulher foi executada, Peçanha. Não é apenas só mais um crime. Vamos checar os antecedentes. Conto com você.

- Pode deixar, chefe.

Como é bom saber que o nosso superior confia em nosso potencial. Eu me lembro que, assim que ingressei na polícia ainda muito jovem, o capitão anterior não era uma pessoa que delegava as funções e deixava o profissional trabalhar com autonomia. Ele era inseguro e todos no departamento sabiam disso e por isso, nada funcionava como deveria. Com a chegada de Rubens Fragoso, meus companheiros e eu conquistamos o que sempre sonhamos: confiança.

Capitão Rubens Fragoso é um líder nato, um sujeito de honra, não alcançou o comando máximo da segurança de Natalina por acaso. Na época das forças armadas foi o melhor de sua turma. Sua doação foi total ao ponto de colocar sua vida em risco. Quando chegou nas forças auxiliares sua devoção por fazer às coisas com paixão e dedicação triplicou. Logo de cara liderou uma operação de tomada de terreno. O tráfico havia dominado uma certa região mais precária da cidade e graças a sua inteligência e bravura, hoje os moradores vivem tranquilamente lá.

Deixei o DPN e encarei o transito maluco em direção ao IML. Minha cidade natal cresceu muito e se transformou numa metrópole muito parecida com São Paulo com prédios e arranha-céus. Fantástico. Claro que, todo o crescimento tem o seu custo. Natalina agigantou-se, se tornou bela, principalmente no período noturno, porém os meios de locomoção a invadiram de forma monstruosa.

*

Dificilmente vou ao IML. O ambiente é pesado demais para mim e sinceramente prefiro manter a distância. Lógico que há casos em que não dá para se dar ao luxo de não ir a tal lugar. O caso de Sônia Soares por exemplo me obrigou praticamente a me deslocar até lá e tentar encontrar peças que possam solucionar a montagem do quebra-cabeças. Me identifiquei na entrada e cruzei o corredor a passos apressados. Com dois toques na porta fui atendido pela mesma perita de outrora.

- Que surpresa boa. – disse ela de jaleco e segurando uma prancheta azul transparente.

- Olá, doutora Marta Lima. – vi seu nome no crachá.

- A que devo a visita?

Marta, como já falei, é uma mulher incrivelmente alta e bonita também. Seu jeito de ficar em pé, sua postura, tudo nela é exageradamente sedutor. Eu precisei me controlar o máximo que podia.

- Sônia Soares.

Ela arqueou uma das sobrancelhas muito bem feitas e encostou o lápis que tinha na mão ao lado da boca.

- A pobre com um tiro no peito?

- Exatamente!

Eu estava uma pilha de nervoso perto daquela mulher.

- Venha comigo.

Nossa! Até o jeito de andar da perita me fazia imaginar milhares de coisas loucas. Entenda. Marta Lima não era do tipo mulherão, mas tudo nela me atraia demais. Deus me livre!

- Pronto!

O corpo de Sônia jazia em cima daquela mesa com um orifício no peito bem perto do seio esquerdo. Quem quer que tenha feito aquilo sabia o que estava fazendo.

- Confirmado execução? – perguntei com minhas mãos na cintura.

- Sim! Sem sinais de violência física ou sexual. Não havia nada nas unhas ou nos dentes. E se meus cálculos estiverem certos, ela se encontrava morta naquele lugar a mais ou menos cinco horas.

Outra vez ela não tirava os olhos de mim.

- Vamos lá então. – falei dando a volta na mesa. – segundo o marido, Sônia saiu sozinha para um evento. Demorou por lá.

Marta apenas assentia.

- Demorou também para voltar para casa. O marido, por já estar acostumado com seus atrasos, não se preocupou em ligar e foi para outro lugar com o único filho do casal.

Marta voltou a por a ponta do lápis no canto da boca.

- Quando eles voltaram Sônia Soares ainda não havia chegado e mesmo assim ele não ligou para a esposa. Estranho, não acha? – olhei para o corpo.

- Muito!

- Tenho mesmo que voltar a residência dos Soares e ainda hoje.

- Sim! Faça isso.

Começava a andar em direção a porta quando Marta me faz parar.

- Meu plantão termina às dezoito, hoje.

Me fiz de desentendido.

- Caso o senhor queira saber mais sobre essa pobre coitada.

- Às dezoito! Não vou esquecer. – cruzei a porta.

*

Lá estava eu, outra vez pressionando o botão do interfone da casa de Luís Soares. Precisei ter paciência, a demora ao me atender quase me fez enfiar o pé no portão. Aproveitei o tempo para enviar uma mensagem para Raquel via Whatsapp.

Podemos nos ver logo mais?

Ela não estava online, provavelmente bastante ocupada naquela loucura de hospital. Finalmente minha entrada foi autorizada. Luís parecia não se agradar de minha visita inesperada. Acho que ninguém se agradaria.

- Como tem passado, detetive?

- Trabalhando bastante. Podemos conversar?

Luís deu-me as costas. Na sala o pequeno Lucas Soares brincava entretido com um caderno de desenhos.

- Lucas, esse é o investigador Falcão Peçanha.

Lucas era incrivelmente parecido com a finada mãe e isso fez com que meu peito ficasse apertado.

- Oi! – ele me olhou por segundos e depois voltou a desenhar.

- Bebe alguma coisa, policial? – Luís parecia um Lorde.

- Não, obrigado.

Realmente a presença da criança ali me incomodava muito, o assunto a ser tratado era bastante delicado.

- Sua esposa costumava chegar muito tarde...

- Já tivemos essa conversa anteriormente.

- Sim! Porém algo não ficou claro. – olhei para Lucas e o mesmo seguia com sua tarefa.

- O que não ficou claro, investigador? – Soares cruzou as pernas.

- Sua esposa costumava chegar muito tarde, mas ela sempre chegava e dessa vez ela não chegou e mesmo assim o senhor não ligou para ela. Estranho, não acha?

Luís apertou os olhos e não houve reação alguma corporalmente.

- Sônia e eu havíamos brigado feio. Ela estava com raiva, eu também. Pior do que isso foi ver meu filho nervoso com a nossa discussão. Lamento em não ter contado isso da primeira vez.

- Foi a primeira vez? – fui direto ao ponto.

- Não! Foi a última de muitas. – tirou os óculos e limpou as lágrimas. – confesso que me vi tentado a ligar pra ela e me retratar, mas, permiti que o meu orgulho falasse mais alto. Eu a amava, detetive. A amava muito.

Finalmente Luís Soares deixou transparecer o homem frágil por trás daquela postura rochosa da primeira visita. O luto o estava consumindo de fato.

- Lamento, senhor Luís. – olhei para Lucas. – estou me esforçando o máximo nesse caso.

- Agradeço! – se levantou. – vou pegar um suco, o senhor aceita?

- Sim!

O menino seguia desenhando. Cabeça baixa. Olhos compenetrados no papel. Enquanto traçava suas figuras um pouco disformes, Lucas apertava os lábios não se importando com a minha presença. Ele colocou os lápis de cor na mesa de centro e andou em minha direção segurando o papel A4.

- Fiz pro senhor.

- Hum, que legal. Quem são?

No desenho haviam duas figuras masculinas de mãos dadas.

- O papai. – pôs o dedinho indicador no homem careca.

- Sim!

- E o moço do cabelo igual de mulher.

- Ah tá.

Observei melhor e vi que o cabeludo tinha algo na mão livre.

- O que é isso na mão desse?

- Dinheiro.

Nesse momento Luís voltava da cozinha com o suco. Lucas voltou para o sofá reiniciando sua tarefa.

- Lucas adora desenhar, detetive. O senhor acha que devo investir nisso?

Dobrei o papel e o guardei no bolso.

- Deve!

*

Já era noite quando cheguei na casa de Raquel. Ela estava exausta e eu pensativo. Pensativo por dois motivos. O primeiro foi pelo fato dela por condições ao nosso relacionamento. Eu não queria “dar um tempo em nosso namoro" isso pra mim não existe. E o segundo, não poderia ser diferente, o caso Sônia Soares. Ocupei a cadeira da mesa da cozinha analisando mentalmente cada passo dado até ser interrompido pela indagação de Raquel.

- Já posso distribuir os convites?

- Convites? – apertei os olhos.

- Veja bem, Lauro, eu estou super cansada, tive um dia intenso e sinceramente, gostaria de poder comer alguma coisa e me jogar naquela cama. Diz logo o que você quer?

Pois é, minha amada Raquel estava diferente e pelo visto falou sério sobre dar um “tempo” no namoro. Eu não tinha argumentos e o que me restou foi dar o fora dali o mais rápido possível.

- Tudo bem. – me levantei. – eu só queria te ver...

Raquel mal olhava pra mim. Peguei às chaves e saí da cozinha.

- Boa noite! – saí.

- Boa noite!

Assim que Lauro deu a partida no carro a enfermeira correu para o banheiro, arrancou as roupas e se enfiou embaixo das águas mornas do chuveiro. Foi o único modo de não sentir as lágrimas descerem.

*

Bem depois de conversar longamente com dona Jurema e ter que engolir suas broncas, broncas essas que fizeram me sentir com dez anos novamente, fui para o meu quarto com o meu corpo pesando duas toneladas. Posso não gostar dos puxões de orelha de minha mãe, mas tenho que admitir, ela sempre esteve certa. Fechei a porta. Tirei minha camisa, minha arma no coldre e também meu distintivo. Sentei-me na ponta da cama. Apoiei meus cotovelos na coxa e com às mãos segurei minha cabeça e chorei como nunca havia chorado.

Só após me sentir renovado foi que eu pude raciocinar com facilidade. Enterrei a mão no bolso direito da calça e puxei o papel contendo o desenho do filho dos Soares. O desamassei mal e porcamente e o coloquei no chão. Lá estavam eles, os supostos Luís Soares e o homem cabeludo segurando o dinheiro. O que poderia significar isso? Um prestador de serviços? Um entregador? Um matador de aluguel...

Peguei meu celular para consultar o horário e vi que havia uma ligação perdida. Quem seria, como não ouvi? Retornei a ligação. Ao segundo toque a voz de Marta Lima penetrou aos meus ouvidos suavemente.

- Detetive, Lauro Falcão Peçanha.

- Oi, você me ligou eu nem ouvi, acho que diminui o volume do telefone sem querer. O que mandas?

- Meu plantão terminou faz duas horas.

Caramba, que mulher insistente, mas eu estava gostando daquilo.

- É, sim, mas, nós marcamos alguma coisa? – cocei a cabeça olhando para o desenho de Lucas.

- Sim! Você prometeu que me levaria para tomar um chopinho. – mentiu.

- Nossa! – conferi o horário. – e aonde você está agora?

- Em casa.

Tive que ser muito rápido.

- Legal. Me passa seu endereço.

- Jura? Você vai vir aqui?

- E ainda vou levar as cervejas. Preciso consertar essa falha.

Marta não brincava em serviço. Claro que ela me passou seu endereço e mais uma vez lá estava eu diante de dona Jurema lhe comunicando minha saída.

- Vá te catar! – vomitou assistindo aos vídeos de culinária na internet.

*

Marta Lima. Perita criminal a um pouco mais de quinze anos. Antes da realização do seu sonho de desvendar crimes sejam eles hediondos ou não, a mais velha de três filhos homens de uma família humilde vinda do interior, batalhou e muitos nas roças de milho junto com o pai para conseguir pelo menos o alimento. Quando o assunto era trabalho ela não media esforços e não se poupava nunca. Sua entrega era tanta naquelas lavouras que seu pai a pegou desmaiada. Sem comer direito, sol forte e trabalho braçal pesado. O resultado não poderia ser outro.

- Caramba. – eu disse me servindo de mais cerveja. – mas, me diz, quando começou sua virada na vida?

- Logo após esse desmaio no meio do mato. Meu pai jurou por Deus e o mundo que a filha dele não sofreria mais na lavoura de milho.

- Desde então você veio para Natalina estudar, se formar e trabalhar. Que bom que deu certo para você.

Marta estava super a vontade, a final de contas sua casa era e é o melhor lugar para se voltar depois de um dia duro de labuta. Ela me recebeu com uma blusa rosa solta e calça legui preta de academia. Muito gata mesmo.

- Eu não podia me dar ao luxo de dar errado, investigador. Ou eu vencia ou eu vencia. Não havia outra alternativa.

- Claro!

Ficamos um certo tempo em silêncio, Marta mal conseguia controlar sua respiração.

- E você, Lauro, como anda sua vida amorosa? Com essa pinta de galã de novela das nove, a mulherada deve arrastar um bonde por você.

Pronto! Chegamos aonde ela queria.

- Será? – dei de ombros.

Tudo o que eu menos queria naquele momento era tocar no nome de Raquel, mas foi inevitável.

- Você deve ter uma pessoa especial em sua vida.

- Como tem tanta certeza? – comecei a demonstrar nervosismo.

Marta jogou a cabeça para trás e sorriu da minha falta de jeito.

- Ai esses homens. Eles apenas crescem e ficam velhos, mas ainda são meninos. – ela voltou a me olhar. – o que veio fazer aqui, Lauro?

Boa pergunta!

Eu havia me metido numa enrascada e o único jeito sair, era tirar proveito da situação e por isso não perdi tempo.

- Bem! Tirando o fato de você ser uma mulher extremamente sedutora, inteligente e...

Marta simplesmente me atacou com um beijo tão gostoso o qual me deixou sem reação. Tudo o que eu pensava com relação a ela foi confirmado nessa noite.

*

Acordei e precisei aguardar alguns segundos até me situar. Eu não estava em meu quarto, tão pouco no quarto de Raquel. Onde estou? Girei minha cabeça para o lado direito da cama e não havia ninguém. Não acredito! Olhei em direção a porta do quarto e ela estava aberta e era possível ouvir a voz de Marta ao telefone. Por falar em telefone, o meu celular se encontrava na escrivaninha perto da janela. Quando esbocei jogar o edredom para o lado e me levantar a minha perita criminal favorita surgiu no quarto ainda com roupas de dormir. Meu Deus, que mulher!

- Tenho que ir trabalhar e eu acho que você também.

Ela tinha razão, mas antes eu precisava tirar uma dúvida. Duas, aliás.

- Sim, claro, mas é só isso?

Marta Lima jogou-me um olhar que me desconsertou por inteiro.

- Só isso o que, investigador Falcão Peçanha? – colocou uma das mãos na cintura e apoiou o peso do corpo na perna esquerda.

- Pelo que eu saiba, nós fizemos amor a noite passada. Não foi?

- Fizemos “amor"? – vociferou e em seguida soltou uma gargalhada não tão alta, mas que soou como uma explosão aos meus ouvidos. – nós “transamos”, foi o que quis dizer, não é?

Tive que concordar mais uma vez. Confesso que eu, mesmo sendo um homem vivido e um policial experiente, caí de joelhos perante a sagacidade de Marta. Que mulher é essa, meu Deus?

- Você está certa. - levantei-me. – e por falar em trabalho, acho que o dia promete grandes emoções. – corri até minhas roupas. – quero que dê uma olhada nisso.

Minha perita pegou o desenho feito por Lucas Soares, o analisou por segundos e depois olhou para mim encolhendo os ombros.

- Quem fez esse desenho foi o filho único dos Soares e eu tenho quase certeza de que, esse menino me entregou o assassino de sua mãe.

Lima abaixou os olhos para o desenho.

- Existem profissionais que acreditam em hipóteses. Existem profissionais que não descartam as hipóteses e existe Lauro Falcão Peçanha.

Preferi entender o comentário como um elogio.

- Acha mesmo que o marido encomendou a morte da mulher? – me devolveu o papel. Eu assenti.

- Sim! É esse... – apontei para o homenzinho cabeludo do desenho. – é o assassino.

- Meu Deus! Desejo-lhe sorte. Vamos.

*

Tudo ocorreu exatamente como havia previsto no quarto de Marta. Voltei para o DPN e mofei diante da tela do computador vendo fotos e lendo fichas de suspeitos. Eu estava tão concentrado e com minha mente girando a mil por hora, que até me esqueci de comer. Por volta das dezesseis horas meu capitão tocou em meu ombro me tirando das analises.

- O que é isso? – apontou para o desenho. Lá vamos nós outra vez.

Deixei Fragoso inteirado da investigação e ao final de tudo ele me parecia descrente.

- Vamos ver se eu entendi. Você está buscando há horas um suspeito cabeludo e barbudo com base num desenho de um menino de dez anos?

- Não posso descartar qualquer hipótese, capitão.

Rubens enterrou as mãos nos bolsos.

- Estou em minha sala. – saiu.

Voltei minha atenção para a tela do computador meio aborrecido e também um pouco preocupado. Estariam Marta e Fragoso certos? Segui com minha árdua tarefa e lá pelas dezoito e trinta, bingo.

- Daniel Santiago. Trinta e sete anos. Preso por: agressão e pequenos furtos, bla, bla, bla.

Imprimi a ficha. Me acomodei em minha cadeira com uma dor de cabeça em sua fase inicial. Eu precisava comer alguma coisa, mas também não queria perder o foco. Daniel Santiago não tinha uma ficha tão longa e nem tão expressiva, mas merecia toda uma atenção. Cabeludo e barbudo. Seria ele o mesmo sujeito do desenho de Lucas Soares?

*

Pela décima quinta vez Raquel andou até o banheiro não com a finalidade de fazer suas necessidades fisiológicas. Ao chegar ao box ela retirou do bolso do uniforme seu celular e não havia sequer uma mensagem de Lauro. Verdade seja dita, Raquel estava arrependida do que havia feito e agora poderia ser um pouco tarde para isso. Assim que se conheceram ela sempre achou que ele era o cara certo para se viver. Diferente dos outros relacionamentos, Lauro não só expressava, mas demonstrava seu amor por ela e isso foi fundamental para autenticar tudo o que ela imaginava dele.

Lauro talvez esteja certo. Casar pra que, morar juntos não basta? Muito chateada, Raquel pensou em ligar e até esboçou discar seu número, mas hesitou. Quando pensou em enviar uma mensagem, alguém invadiu o banheiro a sua procura.

- Raquel, vamos, o paciente do leito B não vai resistir.

O aparelho voltou para o bolso e para disfarçar a descarga foi acionada.

- Estou aqui. Vamos.

*

Estacionei em uma das vagas de uma locadora de veículos que ficava a poucos quilômetros de onde o corpo de Sônia Soares foi encontrado. De cara visualizei o que tanto almejava: câmeras de segurança. Subi rapidamente os quatro lances de escada e empurrei a porta de vidro.

- Bom dia, em que posso ajudar? – me perguntou um dos atendentes.

- Bom dia! Sou investigador de polícia, Falcão Peçanha. – me identifiquei. – esse cidadão passou por aqui? – lhe mostrei também a foto de Daniel Santiago.

- Não me recordo, senhor. – ele apertou os olhos.

- Veja de novo.

- Passam por aqui diariamente cerca de cem, cento e cinquenta pessoas. Fica difícil.

- Certo! Preciso ver se houve alguma locação em nome de Daniel Santiago. Consegue?

- Entre, por favor.

Entrei. O lugar cheirava a café fresco. Andamos até uma das mesas onde haviam computadores com a logomarca da empresa na tela de descanso. A agilidade do funcionário me surpreendeu.

- Senhor! Não há registro de nenhum Daniel Santiago.

- Tudo bem. Veja se há no mês inteiro.

Outra vez a habilidade do atendente me deixou boquiaberto.

- Lamento, investigador. Não há.

Mais que droga!

Eu estava decidido a pedir as imagens do circuito interno quando me ocorreu algo.

- Veja se há em nome de Luís Soares.

Xeque-mate.

- Há sim, senhor. Ele locou um veículo no dia dez.

- Ótimo! Você fez um bom trabalho. Imprima pra mim todos os dados da locação, por gentileza.

Em menos de uma hora eu deixei aquela loja com a marca e a numeração da placa do carro. Eu havia feito uma golaço e agora era só correr para a comemoração. No meio do caminho recebi uma mensagem de Marta Lima que, surpreendentemente investigou por conta própria e descobriu alguns fatos que não constavam na ficha de Daniel Santiago, coisas do tipo freelance para grandes chefões do crime e até participação em execuções. Eu tinha o matador e agora só restava pegar o mandante do crime. Em pouco tempo eu dobrava a esquina da rua da casa dos Soares. Luís fechava o portão da garagem e ao me ver não esboçou qualquer reação.

- Posso lhe atrapalhar um pouquinho? – falei sorrindo.

- O senhor nunca atrapalha, detetive. – desdenhou.

- O senhor locou algum veículo na semana da morte da sua esposa?

- Não, senhor.

- Tem certeza? – olhei e vi Lucas sentado dentro do carro aguardando o pai.

- Absoluta!

Abri as cópias dos documentos de locação e apontei com o indicador para o nome e assinatura.

- Essa é a sua assinatura? Dê uma olhada na data também.

Luís Soares mal olhou para o papel, retirou os óculos e coçou os olhos negando mais uma vez.

- Detetive Falcão, por que acha que mandei matar minha esposa?

- Não é isso. Eu só quero saber qual a finalidade em locar um carro na semana da morte da sua esposa.

- Eu não aluguei carro algum. Não há só um Luís Soares em Natalina, compreende?

Eu estava ficando cansado daquela conversa, por isso resolvi atacar.

- Daniel Santiago. Esse nome lhe parece familiar?

Luís olhou demoradamente para o filho e depois abaixou a cabeça focando o chão da calçada.

- Não sei de quem se trata.

Peguei a foto do sujeito e o mostrei.

- Melhorou?

Ele encarou a imagem e em seguida seus olhos fuzilaram-me. Estranhamente ele riu chorando.

- Tá certo! Você me pegou...

- Não! O senhor confessou o seu crime.

Luís arqueou uma das sobrancelhas.

- Lembra do que me perguntou agora pouco?

- Sim! Por que acha que mandei matar minha esposa. – se entristeceu.

- Eu nunca falei isso. Sou policial, senhor Luís. Meu dever é juntar provas, evidências e investigar e aqui estou eu.

Um choro amargurado. Um pranto transbordante de sentimentos e ressentimentos. Luís Soares mais parecia uma montanha de gelo se derretendo.

- O que será do meu filho?

Olhei para o interior do veículo e Lucas mexia em seu celular mergulhado em seu pequeno mundo. Luís passou a falar em voz baixa.

- Sônia havia mudado bastante desde quando a empresa passou a sustentar a nossa casa. Ela se transformou numa mulher arrogante, não me ouvia mais. Lucas também sofria muito com isso. Em nossa última briga, ela me chamou de inútil. Foi a gota d'água, detetive...

- Por que não pediu o divórcio?

- Eu queria dar uma lição nela. A fúria consumiu-me até os osso e eu pensei; chega de tanta humilhação.

- Foi quando Daniel Santiago entrou na história?

Luís apertava a mandíbula.

- É! Entrei em contato com ele e tudo ficou acertado bem aqui em casa mesmo.

Lembrei-me do desenho de Lucas.

- Aluguei um carro para que ele a raptasse e a executasse e tudo aconteceu.

- Consegue dizer tudo isso para o juiz?

- Consigo! Eu só lamento pelo meu filho. A mãe morta e o pai preso. Que tristeza, meu Deus.

Enquanto Luís chorava debruçado ao veículo, eu liguei para Rubens Fragoso pedindo auxílio de uma viatura no local. O caso Sônia Soares foi relativamente fácil, confesso que já houve outros em que eu tive que me abdicar das noites de sono. Ao assistir aquele homem maduro, chorando feito criança, eu pude entender o quando podemos padecer quando não paramos para pensar e refletir antes de tomarmos qualquer decisão.

- Senhor Luís, só mais uma pergunta. Aonde Daniel Santiago mora?

Matadores de aluguel não costumam ter endereço fixo, mais eu precisava encerrar aquele caso tirando de circulação um perigoso assassino. Ainda com o celular colado em minha orelha direita passei o endereço dito por Soares a Fragoso.

- Copiado, capitão. Assim que pegarem ele me avise, por favor.

Em menos de vinte minutos uma viatura apareceu e Luís foi algemado e levado ao distrito policial. Lucas voltou para dentro da casa na companhia de um familiar. Eu voltei para o DPN a fim de começar logo meu relatório.

*

Marta Lima e eu fazíamos amor no chuveiro como dois maníacos sexuais. Ao saber que eu havia resolvido o caso Sônia Soares, a perita resolveu me recompensar com um início de noite pra lá de prazeroso. Ela me fazia perder a linha.

- Gostou do prêmio?

- Se gostei? Você foi incrível também. Obrigado por confiar em minha intuição e faro policial.

- Você merece, Falcão Peçanha. Assassino e mandante do assassinato atrás das grades, tudo isso num só dia. – se enrolou na toalha. – diz ai, vai passar a noite aqui? Podemos pedir alguma coisa para forrar o estômago.

- Claro que vou. Fragoso me deu folga. – eu ainda estava excitado demais para deixá-la ir. – acho que vou precisar de uma boa perita para estudar esse caso. – lhe mostrei meu membro enrijecido.

- Nossa! Pode deixar comigo.

O celular do policial que se encontrava em cima da mesa da cozinha, recebeu uma nova mensagem no Whatsapp.

"Oi! Tudo bem? Será que podemos conversar? Meu plantão já terminou e só estou aguardando sua resposta. Beijos!"

FIM.

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Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 13/12/2022
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