Deambulo Diurno
Estava bebendo desde as dezesseis horas, seu rosto criava agora uma familiaridade no botequim que frequentou naquelas duas semanas. Seu corpo estava ali, mas os olhos vez e outra corriam para a esquina e voltavam entediados, no ar estava a impressão de aguardar alguém.
Levantou e por um segundo sentiu a rotação terrestre em sua cabeça, apoiou-se rapidamente na mesa para não cair e nisso acabou por derrubar duas das oito garrafas de cerveja vazias. Um rapaz veio lhe ajudar, mas ela o afastou com um gesto impaciente da mão. Abriu a carteira, apanhou um cigarro e caminhou até o lado de fora, acendeu o tabaco e deu um longo trago, enquanto esquadrinhava a rua já deserta. Levantou o pulso na altura dos olhos e constatou que já passavam das dez. Não conseguiu terminar o cigarro, não após avistar o inóspito carro de luxo passar por aquelas ruas nauseabundas da periferia. Jogou fora o cigarro, entrou, largou uma nota de 100 reais sobre a mesa e saiu.
Apressada, foi nesse mesmo rompante de pressa que tropeçou num caixote do lado de fora e caiu. Levantou e seguiu cambaleando para a rua onde o jaguar preto entrara.
Cambaleou por dois quarteirões até chegar em uma rua escura sem saída, se apoiou num poste de aparência decadente e ali mesmo não conseguindo prender o vômito, colocou grande parte da cerveja que bebera para fora, enquanto tossia e procurava fôlego ouviu ao longe os motores do automóvel. Naquela rua as casas estavam na parte superior das encostas, na parte de baixo havia apenas uma espécie de ferro-velho, a mulher seguia de cabeça baixa se contorcendo um pouco para expelir a bebida de seu organismo e não percebeu o jaguar preto se aproximando. Com uma distância de cem metros, o motorista apagou as luzes e acelerou na direção dela.
A batida fora tão violenta que o poste cedeu derrubando a fiação e o transformador no para-brisa do motorista, o vidro blindado resistiu, mas não saiu ileso das rachaduras. O homem saiu do carro sem um arranhão sequer, mas aparentava estar desorientado e começou a procurar o corpo despedaçado da bêbada, mas não o encontrou. Rodeou o carro, vasculhou algumas caixas de lixo aos arredores e nenhum sinal da mulher. Foi quando decidiu entrar novamente no veículo. Ao tocar na porta suas vistas escureceram e ele desabou no chão desacordado…
A ponta de um dos fios caídos estava desencapado e havia encostado rapidamente em seu tornozelo por cima da fina calça… Antes de matar a pobre bebum, numa fração minima de segundo a mulher se jogou por cima de alguns sacos de lixo, livrando-se do atropelamento e enquanto o homem saia meio zonzo, rolou para debaixo do carro, levou as mãos ate os bolsos e dali retirou um par de luvas, vestiu-as, cuidadosamente pegou um dos fios caídos. E uma leve encostada no tornozelo seria o suficiente para desacordá-lo.
Não muito longe estava estacionado o carro da mulher, a essa altura já não aparentava ser a bêbada de horas atrás, pois sua percepção e reflexos estavam mais do que normais, afiados! Imobilizou e com muita dificuldade arrastou o homem para o porta malas de seu veículo, puxou uma bolsa oculta no compartimento do porta-malas e dela sacou uma seringa cheia com um líquido transparente. Perfurou o desacordado e esvaziou o êmbolo em sua corrente sanguínea.
“Não poderiam haver dois deles ali"... Pensou enquanto trancava a traseira do carro.
Com indiferença, era como ele estava reagindo àquela situação inimaginável. E ainda que destituído de todos seus trunfos dignitários, mantinha um ar de superioridade. Tive de me certificar que o teria para saciar meu apetite e me conhecendo, sabia que ele tentaria me matar de inanição.
Quando ele acordou, não conseguiu acreditar na sucessão de eventos, a única expressão genuína em anos poderia ser finalmente engarrafada pelas lentes de vigilância ao nosso redor. Surpresa, tão macia e gordurosa quanto um grande naco de bacon cozido em plena deglutição. Os seus olhos rapidamente mudaram para neutralidade e esquadrinharam a escuridão da sala em que estávamos. "O que estaria ele pensando?” Certamente, numa maneira de sair dali. As luzes acenderam e a mulher começou a cambalear, desengonçada, aparentava uma ebriedade severa. Veio aproximando-se e caiu aos pés dele. Gargalhei como se uma comichão fustigasse minhas entranhas. Nenhuma expressão, nenhuma palavra. "Ele é maravilhoso! Como consegue?” Queria fechar os olhos, mas faltavam-lhes as pálpebras. Levantei do chão e misericordiosamente lambi seus globos oculares para evitar o ressecamento e imóvel ele permaneceu em completo silêncio.
No trabalho, o celular dela notificava uma tentativa de suicídio de seu refém. Sabia disso porque a monitoração em tempo real da pressão sanguínea dele caiu abruptamente.
Por sorte, um chamado de emergência passava exatamente próximo do nosso cantinho de amor. Sim! Eu o amo tanto! A forma como ele resiste para não me alimentar, me deixa tão excitada e cada vez mais faminta!
Segui o chamado com os meus colegas, era um protesto nos arredores do subúrbio. Pedi que eles fossem liberar o trânsito do local e me dirigi até uma drogaria próxima com a desculpa de que não estava bem do estômago.
“Tem certeza que foi apenas um acidente domestico?" Perguntou a mocinha da farmácia estranhando os itens solicitados. Duas lágrimas apareceram nervosas e disputaram uma corrida até o balcão. Desespero falso, mas tão verossímil que faria florescer a empatia de qualquer um. E depois de chorar um pouco consegui os medicamentos, afinal quem negaria ajuda para uma mãe muito idosa que caiu e fraturou a bacia?
Meus colegas depois de liberarem as vias, seguiram para verificar o roubo do jaguar preto abandonado na favela, contudo não consegui segurar enjoo ao vomitar na viatura forense, “Será uma intoxicação alimentar?” perguntou um deles, “Você insiste em comer essas porcarias de rua e dá nisso aí” “Está tão pálida, parece que vai desmaiar” falei-lhes que eu só precisava de um remedinho e descansar um pouco. Preocupados, me deixaram no quarteirão de minha casa e não muito longe de onde ele estava.
Apressei o passo e o caminho de dez minutos foi percorrido pela metade do tempo. Já estava desacordado. O sangue escorria pela sua boca, no chão junto da poça estava o pedaço da língua arrancada com os próprios dentes. Aferi-lhe o pulso, ainda que fraco, seguia vivo. Alívio, sutil como suspiros em névoa emanava de sua pele. Com o manejo de algumas manivelas e alavancas, deitei-o, apanhei o pedaço de carne do chão e lentamente levei até a sua boca aberta e tentei fazê-lo deglutí-la. Porém, tal qual uma daquelas tartarugas que arrancam os dedos dos desavisados que mexem com elas, suas mandíbulas altamente reativas cerraram violentamente em um de meus dedos. A mulher puxou a mão, mas não sentiu dor alguma e para dar-lhe um gostinho sádico, gritou, chorou, comprimiu-a entre as coxas, caiu de joelhos e ficou em posição fetal. Entre os cabelos desgrenhados observou um sorriso escarlate aparecer no rosto dele. Deleite, doce deleite, tão gostoso quanto doce de leite escorrendo pela garganta dela. Levantei com dificuldade ainda segurando o dedo, afastei os cabelos e sorri para ele. Mostrei-lhe o dedo falso, igual ao daqueles truques cenográficos e a minha fome saciada. Mais uma vez desatento, não percebeu que retirei das coxas a seringa com o sedativo enquanto simulava a dor e a queda. Temendo perder aquela ambrosia, matei dois coelhos numa cajadada só, ou melhor, retirei dentes e cordas vocais de uma vez só. “ Ele não falava nada mesmo” Ademais, o licoroso elixir que vinha da privação de sua necessidade patológica não seria afetado pela remoção de tais acessórios.
Na mesma semana em que se recuperava da cirurgia, deixei o televisor ligado e não demorou muito para ser noticiado. A polícia empreendia uma investigação para descobrir o paradeiro dele, o executivo desaparecido. Trabalhavam com a hipótese de latrocínio, a perita responsável descobriu num dos pontos de desova próximo ao crime, os restos mortais carbonizados de um homem cuja arcada dentária era compatível a do magnata desaparecido. Os familiares da vítima preferiram não se pronunciar e optaram por uma cerimônia de velório restrita. Ele era admirável, não mostraria-se abalado em momento algum, até que tomei o seu hobbie e passei a purgar a sociedade dos malfazejos com um jaguar. Um traficantezinho aqui, outro ladrãozinho ali, um assassino psicopata ressocializado acolá, porém meus favoritos eram os pedófilos e estupradores, esses eram como um buffet completo. Sempre que eu chegava e lhe contava das vítimas atropeladas, na profundidade de seus olhos escapava um clamor de misericórdia.
Pela manhã ele despertou com uma dor terrível no pescoço e uma ressaca infeliz. Sempre que retornava de seus passeios noturnos, a mulher já estava dormindo, então ia para o escritório bebericar um bom e velho whisky. Bebera tanto ontem que apagou ali mesmo na poltrona. Olhou o relógio, apanhou o celular e ligou para alguém, talvez um fornecedor de peças. Precisava reparar o automóvel, aquele poste comprometera tanto o aspecto externo quanto o estrutural de seu suntuoso carro. No fim sentia mesmo um certo prazer ao dedicar-se ao hobby.