O punhal no vaso sanitário

Ambos pelados na cama. Estavam discutindo sobre Shakeaspeare. Em específico, sobre a peça “Dois Fidalgos de Verona”. A Mulher discordava da tese do Marido. Para ele, Valentino entregou Sílvia a Proteu, quando disse “eu te entrego […] todo o amor de Sílvia”, pouco depois de o próprio Proteu ter ameaçado estuprá-la. Sim, o Marido dizia que ela estava sendo entregue como se fosse um objeto qualquer. Tipo você entregar a caneta para alguém, quando for exigido. Ela discordava obstinadamente, dizia que Valentino insinuava estar entregando não a própria Sílvia em pessoa, mas sim o “amor dela”, como se estivesse dizendo que não fazia questão da paixão dela por ele. Como se dissesse “pode ficar para você”.

- Sua tese não faz sentido. - ele disse - A opinião de Sílvia sequer é considerada. Seria o mesmo que eu afirmar para alguém que pode ficar com seu amor por mim. O seu amor não é minha propriedade material, como um presente físico. Eu não tenho esse poder. Você é quem decide se vai dar seu amor para outro ou não. Por outro lado, olhando o contexto e a situação da mulher naquele período, suponho que ele está oferecendo ela própria, o corpo dela, para o amigo. O corpo é material, físico. Pode ser visto e tratado como uma propriedade contra a vontade dela. Algo que o seu algoz em potencial estava cogitando fazer momentos antes.

A mulher discordou novamente.

Ele discordou da discordância dela. Não sei, mas suponho que entre eles havia um acordo, um trato. Discordâncias infinitas precisam ser resolvidas num combate de facas. Também não sei quem desafiou quem primeiro. Não faz diferença. Sabe-se que o combate foi dentro do quarto mesmo, os dois nus. Tiveram dificuldades em espalhar os móveis.

- Eu falei a você que não deveríamos comprar tantos móveis para o quarto!

- Nunca imaginei que um dia teríamos que lutar nus dentro dele!

Ambos eram exímios combatentes. Não sei onde duas figuras da classe média soteropolitana teriam aprendido a arte do combate com lâminas, mas os indícios de que houve uma luta de alto nível dentro do quarto são fartos. Para começar, o utensílio na mão da vítima. E o legista apontou uma perfuração no coração, o que indica que ele foi finalizado com um passata sotto. Não me perguntem como foi isso, ainda estou elaborando uma teoria. O passata sotto consiste em se esquivar de um golpe de espada de esgrima. Ao fazer isso, o atacante fica indefeso por uma fração de segundos, o suficiente para um contra-ataque fatal. O lutador que se esquivou pode acertar o coração do adversário com a espada. Para isso ser possível numa luta de facas, a Mulher e Marido precisariam estar próximos e ele precisaria ter feito um movimento incomum com a faca, pois atacar com a faca é bem diferente do que atacar com a espada. Ele atacou, ela esquivou e apunhalou o coração dele. Ele caiu na cama, ainda vivo. Ela então afundou ainda mais a faca no peito dele, matando-o. Segundo a regra, ela venceu a discussão. A tese dela sobre a peça shakespeariana é superior à dele. E por quê? Alguns objetarão o resultado final, alegando que não houve síntese, sequer evidências de que a tese ou a antítese foi vitoriosa. Mas o argumento venceu no campo de batalha. A luta com facas nada mais é do que a materialização dos argumentos em conflito.

Suponho também que o Marido estava confiante e por isso deve ter desafiado a Mulher. Mas ela acabou com ele. Essas coisas me empolgam. Outro fato intrigante: a arma do crime foi encontrada no vaso sanitário. Também não compreendo por que a suspeita esconderia um punhal no vaso sanitário.

Sim, encontraram um punhal no vaso. A Mulher suspeita está desaparecida. E mãe encontrou o corpo do rapaz.

Escrevi tudo isso que acabei de mencionar. Mas não poderia jamais publicar no jornal. Não é embasada em fatos e evidências. Tudo especulação. Contei isso ao delegado e ele riu da minha cara.

- Não há indício algum de luta de alto nível. O cara foi morto na covardia. Enquanto estava deitado.

- Talvez a luta tenha sido de tão alto nível, que não deixou muitos rastros e por isso até o momento seja indetectável pela polícia. O que você diz do utensílio na mão da vítima?

- O que tem?

- Não era um punhal?

- Não! Quem te disse isso?

- Porra, tem gente na polícia me sacaneando. O que tinha na mão do Marido?

- Um vibrador. Não me pergunte por quê.

- Não vou perguntar. Mas e o punhal no vaso?

- A arma do crime. Nada mais.

- Nada mais? Nada por trás disso?

- Não.

À noite, estava em casa com minha namorada. Foi quando vi pela televisão que um suspeito pela morte do Marido foi encontrado. Segundo informações passadas a uma emissora de TV, ele afirma que a Mulher é a mandante do homicídio, mas não acredito nisso! Mas se a polícia está certa, então o ponto central da minha tese foi para as cucuias. Vou ter que elaborar outra.

Um homem chega ao edifício onde moram o Marido e a Mulher. Fala com o porteiro.

- Estou aqui para consertar o ar condicionado.

O porteiro deixa ele entrar. Ele pega o elevador e sobe até o décimo quarto andar. Vai até o apartamento do Casal. O plano é: ele fala que está lá para consertar o ar condicionado. O Marido irá deixar ele entrar. Então ele pegaria o cara na covardia e o mataria. Porém, algo frustrou seus planos. Ao chegar ao apartamento, notou que a porta estava aberta. Entrou. Não notou mais nada estranho, a princípio. Todavia, foi até o quarto e viu o seu alvo morto. Alguém chegou antes dele. Uma armadilha preparada pela Mulher? Ela manda um matar e outro levaria a culpa? Se fosse isso, o assassino estaria lá para matá-lo também. Engatilhou a arma e ficou esperando? Mas não aconteceu nada. O bandido tinha ido embora. Ele se sentiu derrotado. Mas a polícia o pegou. A meu ver, ele erroneamente deduziu que a Mulher armou para ele. Todavia, não foi isso. É melhor um incriminado morto do que vivo. Acho que o assassino verdadeiro não foi enviado por ela. Há algo por trás. Preciso saber.

Fui ao porteiro do edifício. Perguntei se antes do Suspeito apareceu outra pessoa estranha. Ele disse que não. Insisti. Ele insistiu que não. Contei para ele sobre minha teoria, ele riu. Talvez tenha sido ameaçado e não queira falar.

- Não lhe devo satisfação. Vaza daqui, jornalista.

À noite, estava novamente com minha namorada. Contei para ela sobre minha nova teoria. Ela riu.

No outro dia, falei ao delegado sobre as correções que fiz na teoria anterior. Ele riu de novo.

Contei ao editor, ele gargalhou.

- Você sabe que eu nunca poderia publicar essa merda no jornal, né?

Enfim, a Mulher foi pega. No começo, ela foi tenaz. Mas com a prisão preventiva, o emocional resistente dela ruiu. Confessou que foi a mandante. E confirmou que o Suspeito era mesmo o assassino. Que ela pagou o cara. Ela havia colocado calmante da comida do Marido. Ambos transaram e ele apagou com o vibrador em mãos. Ela saiu. O assassino de aluguel veio e o apunhalou no coração e depois escondeu o punhal na privada. Eu também fui tenaz em manter minha teoria. Fiquei louco procurando algum elemento ambíguo na história que pudesse me dar alguma razão. Mas não encontrei nada. A reconstrução policial foi precisa.

No outro dia li o jornal e vi minhas especulações. Mas não na página policial e sim na parte do folhetim. O editor gostou tanto que insistiu que eu criasse um romance em série sobre o crime do punhal escondido no vaso sanitário. Foi um sucesso.

FIM