Janelas de Carros

Era um rapaz vaidoso. Acho que esse adjetivo o define plenamente.

Morava num bairro pobre de Salvador. O caminho de casa até a estação do metrô era constítuida por calçadas de uma via local. Nem todo mundo tinha suas própria garagem, então boa parte de todo o trajeto era ocupada por carros. Era um rapaz bonito, rosto ossudo, simétrico, sobranchelhas cheias, maxilar forte.

- Veja, meu bem, como eu tenho queixo e maxilar fortes. Você também. Adoro mulheres de maxilar forte. - ele dizia para as várias namoradas. Sua vaidade - alguns diziam que era narcisismo - o levava a ficar admirando sua aparência no reflexo gerado pelos vidros das janelas dos carros. Como os veículos estavam à sua esquerda - na ida - e à sua direita - na volta, gostava de admirar seu maxilar forte, atraente. Sentia vontade de admirar a própria aparência nos espelhos dos retrovisores, porém tinha receio de se atrasar. Quando via gente de maxilar fraco na rua, zombava delas para si mesmo. Dentro do metrô, a caminho do trabalho ou voltando para a casa, flertava pra caralho. Gostava de trocar olhares. Nunca flertava com mulheres de óculos escuros. “Desvantagem, pois não tem como ver direito se elas olham de volta ou não”, dizia a amigos.

Essa era a rotina. Até que aconteceu.

Foi andando pela rua e se admirando que ele viu. Em um dos carros, quando ele admirava seu maxilar, presenciou algo insólito dentro do veículo. Foi tudo muito rápido. Um homem e uma mulher. Nem dá para dizer que era uma briga, pois o homem agredia a mulher e ela nem tinha como se defender. O rapaz vaidoso viu rapidamente: o agressor parecia estar estrangulando a vítima, não com as mãos, mas com algo que parecia um fio. Acelerou o passo e o coração. Ficou em pânico. Olhou para trás e viu que o homem o olhava de longe. Coração acelerou pra caralho. Ele costuma levar de dez a quinze minutos andando de casa até a estação. Dessa vez, ele levou menos de dez minutos. Quase correu, pois achou que o suposto assassino estava atrás dele, talvez de carro. Talvez ele tinha presenciado um assassinato e agora estava marcado. Queima de arquivo. Desespero tomou conta. No metrô, expressava abatimento e horror. Sua boa aparência degenerou. Não conseguia flertar com mulher nenhuma. Nem pensar em mais nada: teria visto um homicídio? No mínimo, tentativa de homicídio.

No trabalho, os colegas notaram o quanto estava cabisbaixo. Não foi produtivo. O chefe percebeu que havia algo errado e o mandou para casa. Evitou aquele caminho maldito. O caminho onde aconteceu aquilo. Em casa, os pais notaram que estava diferente. Na cama, a namorada notou que havia algo errado, pois ele não se gabava, tampouco o pau subia. Estava brocha e nem havia feito trinta anos de idade ainda. Queria contar a alguém o que tinha visto. Mas se a hipótese dele - a de que está marcado para morrer - for correta, significa que se ele contar para outras pessoas, elas também ficarão na mira do bandido. Aliás, ele passou a acreditar nisso. Todos em volta dele estariam em risco. Dia após dia foi isso. Teve que procurar outro caminho para ir até a estação do metrô. No trabaho, colegas ainda tentavam animá-lo.

- Ei, se anima aí, Eric. Deixa eu te falar, tem um filme muito massa. Um cara presenciou um assassinato e depois o bandido o encontrou e o matou, mas antes arrancou os olhos dele. - disse um colega.

Sua namorada também queria excitá-lo.

- Ei, amorzinho, quer que me fantasie de bandida? Uma bandida safada e perversa que quer te pegar. Mas claro que será o meu “arquivo” que será queimado, se é você me entende hihihi.

Nada adiantou. Com o tempo, cortou todas as relações e parou de se preocupar com a aparência. Isolou-se. Largou o emprego. Todos notaram a sua alienação e tentaram ajudá-lo a seu modo. Sua mãe lhe recomendou um terapeuta.

- Não sei se posso te contar, doutor.

- Pode contar tudo. O que é dito aqui fica aqui.

- O senhor não entendeu, a sua vida pode estar em risco.

- Como assim?

- Eu acho que presenciei um assassinato.

- Acha? E por que não chamou a polícia?

- Eu nem tenho certeza do que aconteceu. Foi tudo muito rápido. Nem sei o que houve. Sei que o cara me viu. Só isso.

- Por isso você está assim? Medo de o cara te pegar? Talvez seja um mal entendido. De qualquer forma, vamos à polícia. Você se lembra da aparência dele?

- Pouco. Sei que era um cara grande e de pele clara.

Foram à polícia. Na espera para falar com o delegado, conversou com um homem que estava no programa de testemunhas.

- O cara que eu denunciei prometeu me matar de várias maneiras e ainda me mandou varios desenhos e fotos horríveis. Os caras são perversos.

Ao falar com o delegado, soube que não foi registrado nenhum crime naquela área onde ele teria visto o suposto homicídio. A imprensa também não relatou nada naquela rua por onde ele passava. A descrição que ele deu também não batia com nenhum bandido conhecido pela polícia. Mesmo assim, a polícia foi até o local. Conversou com pessoas, ninguém afirmou ter visto nada estranho por ali nos últimos meses. A polícia foi direta ao rapaz:

- Ou esse assassino é extremamente habilidoso ou você delirou, rapaz.

O psicólogo usou de argumentos racionais e até estatísticos.

- Foi um mal entendido, Eric. Não existe por aqui um assassino tão exímio assim. Seria coisa de filme. Imagina só: um cara mata e não deixa nenhum rastro. Coisa de filme, repito.

A princípio, Eric continuou resistindo aos argumentos, mas depois começou a ceder. Tomou medicação. Pouco a pouco voltou à rotina. Voltou ao trabalho. Sua produtividade aumentou um pouco. Colegas, amigos e namoradas se aproximaram novamente. Logo o pau dele voltou a subir e ele conseguiu fazer sexo depois de meses. Não demorou e voltou a passar pelo caminho onde teria presenciado o crime. Passou com medo, no começo. Mas depois se acostumou. Até as olhadas nas janelas dos carro voltaram a acontecer. Sua vida estava voltando a ser o que era antes. Passou-se muito tempo. Se houvesse um bandido atrás dele, já era para ter acontecido alguma coisa. Todavia, ele não recebeu uma única ameaça. Não havia razão para se preocupar.

Numa manhã de sexta-feira, combinou com a namorada.

- Quero que você se disfarce de bandida. Agora estou percebendo que é um feticha gostoso. Beijos, linda.

Passou pelo caminho dos carros. O carro onde ele teria visto a cena não estava por ali. Só o viu naquele dia. Flertou no metrô. Chegou no trabalho. Ao entrar, tomou um susto e todo aquele horror que ele sentiu durante meses voltou com tudo: aquele rapaz, que lhe falou do filme, estava morto. Havia sido estrangulado. Sentado em cima da mesa, estava o assassino, com o fio de nylon, esperando ele. Grande e de pele clara, como ele descreveu. Não buscou correr. Apenas ajoelhou. Era como se aceitasse o seu destino. O matador se aproximou e executou o crime. Enquanto sua vítima se debatia, ele não disse nada. Havia apenas posicionado um espelho, para que o rapaz vaidoso visse o reflexo de seu próprio fim agonizante.

FIM