Hora certa, lugar certo

Hora errada, lugar errado.

Isso ecoava na cabeça do jovem Afonso. Baleado três vezes num tiroteio que gerou dois cadáveres para o legista cortar.

Hora errada, lugar errado.

Pouco a pouco, as lembranças do tiroteio começam a emergir. É como tentar ver e identificar imagens na TV de tela bruxuleante. Lembrou que estava estudando física, horas antes de acontecer. Qual o assunto? Talvez entropia. Foda-se. Acelera e tenta lembrar o local do tiroteio. Havia algumas pessoas. O clima estava tranquilo, nenhuma briga, não havia nem gente xingando. Estava sozinho? A princípio, pensou que sim.

Hora errada, lugar errado.

Depois, percebeu que não. Não estava sozinho porra nenhuma. Afonso estava com o primo. Mas como foi parar lá com ele? Volta um pouco. Estava estudando física? Tem certeza? Sistema termodinâmico? Foda-se. Lembrou que o primo Marcos o convidou para ir até as margens de uma rodovia. O que teria lá? Uma festa? Que diabos. Ele sabe apenas que havia gente lá.

Hora errada, lugar errado?

Depois ouviu os tiros. Primeiro apenas ouviu. Depois viu. Depois sentiu. A mão com sangue. O primo o segurando pela argola da camisa. A cidade está tomada por facções criminosas. Esse contexto ele não esqueceu, fácil demais de lembrar. Recordou de um dia, quando voltava da graduação de física, em que o traficante, um ex-amigo de infância, o cobrou por segurança.

- Tem que colaborar, Afonso.

Ele colaborou. E agora está na cama. Baleado três vezes. Que porra de segurança é essa? Em sua defesa, o traficante pode argumentar:”você foi baleado fora do nosso perímetro de proteção”. De fato, as margens da rodovia fogem da jurisdição dos “protetores do bairro”. Como Afonso foi parar lá?

Hora errada, lugar errado?

Logo tudo começou a ficar nítido. O primo o convidou. Algumas pessoas se reuniram às margens da rodovia. Marcos conhecia algumas delas. Parecia uma festinha. Tinha pagodão alto. Mulheres gostosas de shortinho e que flertavam. Muita cerveja. Afonso não curtia festinhas. Era um sujeito meio antissocial, ficava em casa. Digo “meio”, porque ele estava fodendo com um colega de faculdade. Ela não ia gostar de saber que ele estava ali, porém ele foi praticamente arrastado até ali pelo primo.

Hora errada, lugar errado?

O primo sabia que ele não curtia nada daquilo. Todavia, foi, de maneira insólita, insistente.

- Quanto você quer, primo, para me acompanhar? Cara, você só fica em casa, não sai para porra de lugar nenhum. Para de ser donzelo. Hoje tu vai foder.

- Você sabe, eu tenho namorada.

- Com todo respeito, essa mina que você pega não tem nem bunda. É uma tábua.

- Você espera que eu te acompanhe, com você xingando minha namorada assim?

Nem tudo está claro. Esse era o momento em que Afonso ficou puto. Como ele pode ter sido convencido a ir? De qualquer modo, ele foi. E percebeu outra coisa insólita durante a festinha às margens da rodovia. Marcos não descolava dele. Houve até uma piadinha sacana.

- Marcos, você é minha mulher? Quer dizer, nem minha mulher anda colada em cima de mim.

- Meu primão, só quero te proteger.

Então aconteceu. O tiroteio. Lembranças nítidas. Dois caras numa moto. Armados com duas .357.

Hora errado, lugar errado porra nenhuma.

A mão na argola da camisa. Não foi por acaso. Andar colado. Não foi por acaso. O alvo dos bandidos era Marcos. Ele teria usado Afonso como escudo na hora dos disparos.

Hora certa, lugar certo. Para o primo.

Afonso começou a levantar suposições. Marcos esperava os bandidos. Era uma armadilha. Depois de ter usado Afonso como escudo, ele conseguiu derrubar os dois atiradores e depois fugiu. Não deu socorro. Deixou ele fodido, com três balas no corpo, sangrando. E vazou. A polícia que o socorreu.

Mas por quê? Por que o próprio primo faria isso com ele? Havia outras pessoas na festinha que poderiam ser usadas como escudo. Por que optou pelo parente e até amigo de ocasião para que servisse de isca e escudo? Algum problema pessoal? Afonso estava com raiva e não parava de fazer perguntas.

Depoimento para a polícia. Não falou nada sobre o primo ter armado para ele e tê-lo usado como escudo para pegar dois bandidos. Falou da chegada dos atiradores.

- Afonso, não havia moto. Os bandidos estavam na festa.

- É disso que me lembro.

- Não encontraram moto alguma no local.

Explicaram a possível razão do crime. A polícia estava procurando o cara que matou duas pessoas. Em legítima defesa, mas não deixa de ser homicídio. Afonso sabe que foi Marcos.

- Então uma facção criminosa tentou matar seu primo? Como você estava perto, foi atingido?

Não falou sobre suas suspeitas. O verme do primo tramou tudo. Quer se vingar dele por alguma razão. Usou o corpo dele como escudo. Isso não vai ficar assim.

Semanas se passam. Meses. Recuperação árdua. Nenhum sinal do primo. Depois do duplo homicídio, sumiu.

- Minha namorada não veio me ver nenhum dia.

- Mas que namorada, Afonso? Você nunca nos falou disso.

Dia após dia. Parou de frequentar a faculdade. Sentado, lendo sobre entropia. A mente não está mais como antes. Antes entendia facilmente sobre termodinâmica e teoria da informação. Agora está mais complicado compreender. Mas não parou de refletir: “hora errada, lugar errado”. Uma sequência de eventos, com baixa - talvez baixíssima - probabilidade de acontecer, aconteceu. Fazia mais sentido considerar que o primo articulou tudo. Marcos levou Afonso para fora do perímetro de proteção das gangues. Não foi coincidência. Mas por quê? O que ele teria feito que irritou o primo assim?

Dias passavam, sem notícias do primo. Entender a motivação dele importava menos. Importava mais matá-lo. Procurou o traficante que o cobrou por segurança.

- Pago o que você quiser, mas mate o Marcos.

- Tu está brincando, não é?

- Ele me usou como escudo. Levei tiros por causa dele!

- Tu gosta de zoar.

- Ele me usou como escudo e depois matou os caras.

- Curinga nunca irá pegar numa arma.

- Eu estava lá e vi tudo. Marcos me levou para fora do perímetro. Não foi por acaso.

- Tu gosta de se gabar. Sabemos quem aqueles alemães queriam pipocar, Matemático. Mas já encontraram o destino deles.

Tarde da noite. Afonso deitado na cama. Gritos na sala. Era a mãe dele. Alguém gritava “cala a boca, vagabunda!” e dava porrada nos cornos dela. Afonso entrou em pânico. Derrubou um livro, que na verdade não era um livro, mas o esconderijo de um “brinquedinho”. Uma 9mm.

- Eu quero o seu filho! - Alguém gritava isso para o pai de Afonso.

Afonso se lembra. Imagens ficam nítidas. O medo pode ser capaz de tudo. Namorada, faculdade, suposto interesse por física - frutos de um mundo ideal e imaginado. Matemático deixa o brinquedo pronto para atirar. Matar seu primo? Matar você, Matemático. Escondido num fundo falso do quarto: drogas. Cocaína, maconha, crack… tinha de tudo. Matemático, foi você quem determinou o perímetro. Foi você que detonou os atiradores e conseguiu que um policial corrupto fizesse parecer que você apenas era uma vítima e não algoz. Foi você quem deu a ordem de dentro do hospital: seu primo traíra, que te levou para a armadilha, nunca mais vai aparecer, os pedaços dele estão enterrados pela cidade. Ninguém vai encontrar. Ninguém se importa. Imagens nítidas. Afonso/Matemático derruba dois que vieram para matá-lo. Mais uma vez.

FIM