Reportagem na Boate

- Não entendo. Você diz que é jornalista com uma carreira que transita entre o jornalismo sindical e o jornalismo empresarial, mas o seu portfolio tem, majoritariamente, reportagens sobre violência urbana.

Tive que explicar para o editor-entrevistador que Salvador está enlouquecendo, que está todo mundo pirando. Trabalhei em jornais sindicais e especializados em economia, mas era inevitável não cobrir eventos de violência. Para se ter uma ideia, fui repórter num jornal chamado Notícias de Escritório. O antigo editor tinha lido a obra “Elementos de Jornalismo Econômico”, de Sidnei Basile, e queria porque queria implementar uma recomendação do autor: a cobertura microeconômica parte do particular para geral. Se uma empresa é inovadora na busca pelo lucro, por exemplo, é notícia. O problema é que não encontramos nada interessante, nem em meio à torrente de press releases, nem em lugar nenhum. Logo o editor foi trocado por outro, porque não era inovador para a empresa jornalística, muito menos trazia lucros. No lugar dele, entrou um cara que adorava o lugar-comum “espreme que sai sangue”. Com isso, parei de cobrir empresas que fabricam parafusos com o formato de personagens extravagantes de desenhos animados e fui cobrir violência. Aí alguém pode me perguntar: “isso não desviaria o foco da linha editorial do jornal? Não seria incomum um jornal chamado “Notícias de Escritório” publicar violência?” Pois é. A primeira conversa entre os repórteres e o novo editor foi sobre isso.

- Sim, meu rapaz, você tem toda razão. É por isso que nosso foco será a violência dentro das empresas. Não precisa ser homicídio! Patrão quebrando pau com funcionário é notícia! O inverso também! Corrupção, estupro, chacina, assalto, colocar vinagre na água do chefe… tudo isso será notícia, se acontecer dentro, ou pelo menos na entrada, de prédios empresariais! - ele disse.

Curiosamente, minha primeira pauta orientada por essa nova linha editorial foi um quebra pau entre peões, uma empresa e um engenheiro civil. Trabalhadores da construção civil acusavam uma empreiteira de calote. O engenheiro virou alvo da indignação porque ele serviu como uma espécie de intermediário entre os peões e a empresa, que não assinou carteira. Sem contrato formal, era muito fácil passar perna sem sofrer retaliação na justiça. Mas os trabalhadores planejavam suas próprias retaliações. Resultado: moeram o engenheiro na porrada e planejavam também arrebentar a sede da empresa caloteira. Armados com marretas, pés de cabra e tijolos, peões enfurecidos espatifaram uma vidraça que estampava a entrada da sede. Chamaram a polícia e um conflito teve início. Havia centenas de peões. Não foi fácil reestabelecer a ordem. Apurei tudo.

Entrevistei tanto os trabalhadores, quanto empresários e fui ao hospital conversar com o engenheiro espancado.

- Disseram que iam enfiar um pé de cabra na minha bunda. Foi horrível.

Tempos depois comecei a trabalhar num jornal sindical intitulado A Mordida de Boca. Depois de períodos cobrindo greves modorrentas e levando bronca do editor por escrever coisas abstratas demais, recebi uma pauta que considerei instigante: líderes emergentes de um partido de esquerda estavam sendo assassinados. Apurei e descobri que os mortos pretendiam fundar outro partido de esquerda. Mais um. Aquele que eles estavam foi formado por pessoas que tinham saído de outro, por causa de discordâncias. O anterior, de onde eles saíram, também havia sido criação de dissidentes de um anterior, que por sua vez também foi criação de discordantes de um outro partido… enfim, uma fragmentação interminável.

Aliás, tal fato serviu para a polícia descobrir a motivação do crime. Depois de semanas de investigação, foi descoberto que o mandante dos crimes era o presidente do partido. Ao confessar, admitiu que mandou matar para evitar mais fragmentações e dissidências.

- Alguém precisava dar um fim nisso. Nesse ritmo teríamos centenas de partidos de esquerda até o fim do ano.

Comentei esses relatos ao editor-entrevistador. Mas ele não quis meus serviços. Claro, ele não admitiu isso na minha cara. Usou daqueles eufemismos nojentos que gente dos recursos humanos costuma falar: “aguarde e entraremos em contato”. Mentira! Não entrou em contato porra nenhuma!

Nem procurei entender por qual razão não queriam me contratar. Já recebi críticas e elogios por conta do meu estilo mordaz de escrita e pela forma de retratar personalidades da vida pública. O cara era de um jornal de empresa. Talvez um house organ. Talvez não fosse mesmo o meu estilo de publicação. Mas jornalista que é jornalista escreve sobre qualquer coisa. Apura qualquer coisa. E estou desesperado atrás de emprego, não dá para escolher o tipo de cobertura. Enquanto isso estou aporrinhado nas costas de Maria Clara, minha namorada que trabalhava numa sorveteria e mal conseguia dinheiro para ela e a filha. Todo dia ela me cobrava. Receber o “não” dessa empresa foi a gota d’água para ela. Eu já havia recebido vários “nãos” antes.

- Chega. Desse jeito não vai dar!

Ela sabia que a culpa não era minha. O desemprego era só um pretexto para me trocar por outro cara. Maria Clara achava que poderia esconder isso de um jornalista. É uma bobinha. De qualquer modo, eu queria mesmo um emprego, independente de ser um critério para ela me querer ainda ou não, a ponto de aceitar qualquer merda. Foi então que a qualquer merda me telefonou. Atendo.

- Sim? Obrigado! Vou nesse endereço agora.

O lugar era imundo. Nem parecia redação de jornal. Paredes riscadas. Como se uma criança gigantesca passasse por ali e rabiscasse tudo com giz. Não entendi por que era assim. O cara do recursos humanos, que também era editor, repórter, revisor, cronista e crítico de arte, me entrevistou. Quase não olhou para minha cara. O nome do jornal era Factótum.

- Gostei do seu estilo de escrever.

- Obrigado.

- Já tenho até uma cobertura para você em mente.

- Opa!

- Mas já aviso que não assinamos carteira.

- Ah, porra… quanto vocês pagam?

- 300 por semana.

- Assim, vocês desvalorizam a profissão de jornalista.

- Amigo, a profissão está desvalorizada. Não inverta a relação causal. A expressão correta é “pagamos isso porque a profissão está desvalorizada”, não “a profissão está desvalorizada porque pagamos isso”, ok? Vai aceitar ou não vai?

- Topo.

- Seja bem-vindo. Sua primeira pauta será…

- Não tem reunião de pauta?

- Já estamos na reunião de pauta. Você irá a boates de Salvador para investigar como é o trabalho de seguranças desses locais. Sabe como é: observe tudo, viva o ambiente, jornalismo imersivo. Tire fotos. É isso que faremos aqui na Factótum.

- Vocês são ágeis!

- O “vocês” somos só nós dois. Agora comece a se preparar. Tenho alguns livros para indicar. Vou na biblioteca do jornal.

A “biblioteca” do jornal era uma estantezinha com alguns livros no canto da sala, a alguns metros de onde ele estava sentado.Me deu uma “Enciclopédia das Boates Brasileiras” e um “Manual de Segurança de Boate”. Também me emprestou “Como expulsar baderneiros de boate”.

- Você tem esses livros técnicos de segurança de boate, o que significa uma especialização no assunto. O jornal Factótum já se dedicou a cobrir boates?

- Exato, mas só as fodidas. Muitos tentaram, ninguém conseguiu fazer uma reportagem decente sobre segurança de boate. Você pode ser o primeiro. Boa sorte.

Voltei à casa de Maria Clara. Sim, a casa é dela. Minhas coisas estavam embrulhadas.

- Você está me colocando para fora?

- Estou. Você não está ajudando em nada. Não consegue emprego.

- Você sabe que a culpa não é minha. O país está em crise!

- Não posso sustentar você, Rubem.

- Eu consegui um emprego. Começo hoje à noite.

- Num jornal?

- Isso.

- Quanto você vai ganhar de salário?

- 300 por semana. O cara nem assinou carteira.

- Só isso? Assim você desvaloriza sua profissão!

- Maria, a profissão está desvalorizada. Não inverta a relação causal. A expressão correta é “aceitei receber 300 porque a profissão está desvalorizada”, não “a profissão está desvalorizada porque aceitei receber 300”, ok? Ainda vai me colocar para fora?

- Talvez não, desfaça seus embrulhos.

Meu embrulho cabia embaixo do braço. Alguns livros, roupas e recortes de minhas reportagens. Desfiz rapidinho. Maria prefere continuar me chifrando. Ela gosta de emoções. Pegar o cara aqui em casa, sob risco de eu flagrar, é pura adrenalina para ela.

Lá estava eu de madrugada cobrindo uma determinada boate. Amanhã vou em outra. Todas fodidas. O jornal não pode bancar entrada em boate de luxo. Acompanhei de perto seguranças expulsando encrenqueiros, bichas, velhos cachaceiros e pretos.

- Fora do meu trabalho sou democrático. Converso e até pego bichas, velhos cachaceiros, pretos e encrenqueiros. Mas lá fora. Aqui dentro a ordem é para quebrar o pau. - ele disse, enquanto assiste um homem assediar uma mulher.

- Aquilo ali não é encrenca?

- Rapaz, deixa de eu te falar uma coisa: outra ordem que recebi foi “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.

Enquanto ele dizia isso, o cara arrastava a mulher para fora pelos cabelos. Entrevistei bêbados, gostosas, defensores da moral e bons costumes… Material farto para uma reportagem. E era só a primeira noite. Sou muito foda. Descrever o ambiente era mais fácil.

Outro problema descrito pelos seguranças era os caras vingativos. Você expulsava o cara. Ele voltava em bando ou armado. Gente perdeu vida assim. Acontecia quase sempre e tudo indicava que ia acontecer de novo. O segurança que entrevistei expulsou um rapaz de cabelo rosa, que enquanto tomava porrada gritava “eu não sou bicha!”.

-Vou voltar aqui com meus amigos e você vai ver! - ele ameaçou.

E cumpriu.

Três marmanjos imensos. Tinha uma mulher com eles. Todos de cabelo rosa. Para pegar os seguranças. Estavam claramente embucetados.

- Você bateu no meu amigo. - disse ao segurança, que usou o rádio comunicador para chamar os outros. - Chame quem quiser. Vamos quebrar a porra toda aqui dentro.

Eu estava acompanhando tudo de perto.

- E esse viadinho aí com um bloco e caneta na mão? - disse a mulher.

O editor do Factótum falou em jornalismo imersivo. Entendo isso como não apenas reportar, mas também participar do fato jornalístico. Ademais, alguém tinha colocado algo na minha bebida e eu estava agitado pra caralho.

- Vamos ali no canto, sua puta, e eu te mostro o viadinho. - eu disse.

O segurança riu. Antes que pudessem fazer qualquer coisa, dei uma porrada na cara daquela puta, ela caiu do lado de fora. O pau quebrou. Logo a briga ficou generalizada. Gente que não tinha nada a ver quebrando a garrafa nos cornos alheios. Voltei para dentro da boate, anotando tudo o tempo todo. A polícia chegou e acabou com a farra. Eu ia embora, porém um dos seguranças que entrevistei me chamou e me apresentou ao dono.

- Você é jornalista?

- Sou.

- Quanto você quer para ficar calado? Não pode escrever no jornal o que houve aqui! A boate vai ficar ainda mais infame!

- Minha ética não é barata.

- Quanto você ganha no jornal?

- O cara vai me pagar 300 por semana.

- Te pago três mil contos e tu não publica nada do que viu aqui.

Aceitei.

- Vou querer mais mil. Tratamento dentário. Acho que perdi uns cinco dentes.

- Você é um jornalista sujo!

- É o desespero.

- Você está desvalorizando a profissão!

- Amigo, a profissão está desvalorizada. Não inverta a relação causal. A expressão correta é “aceito suborno porque a profissão está desvalorizada”, não “a profissão está desvalorizada porque aceito suborno”, ok? Agora me pague.

O dono foi até um caixa, tirou um bolo de dinheiro e me deu. Contei. Quatro mil reais. Peguei a grana e caí fora.

FIM