Coincidência ou Providência

Minha curiosidade por coincidências era quase nula. Até que aconteceram dois eventos. Desde então, o desejo de tentar compreender as coincidências adquiriu um fulgor inefável. Me deu até vontade de fazer como fez o biólogo austríaco Paul Kammerer, que escreveu Das Gasetz der Serie (A Lei da Serialidade). A obra reúne anédotas de coincidência. Mas o autor vai além, porque ele visa formular uma teoria de serialidade. Não sou adepto de tal modelo, tampouco pretendo formular alguma teoria original. Vou contar dois eventos que não são conectados por “ondas de serialidade”, como afirma Kammerer. Há dois personagens que estão presentes em eventos aparentemente sem conexão causal alguma: eu e o meu cruel adversário.

O Primeiro evento:

Estávamos eu e minha namorada, Sofia, esperando no ponto de ônibus. Era por volta das sete da noite. A parada estava cheia de pessoas. Era um período de forte impressão de que o ciclo de violência estava pior. Exemplo: pessoas fantasiadas de palhaços estavam atacando assaltantes e/ou supostos assaltantes dentro de ônibus que rodavam pelas ruas de Salvador. Bandidos revidavam e começavam a matar palhaços, mesmo aqueles que nunca agiram como justiceiros. Nas favelas dominadas pelo tráfico, traficantes ordenavam a proibição de fantasias de palhaço, até em aniversário de crianças. A situação estava difícil para quem trabalhava com circo. Autoridades manifestavam preocupações nas emissoras de TV e rádio.

O ônibus demorava a passar. E eu começava a ficar incomodado. Sofia não tirava os olhos de um livro chamado “A Providência”. Não sabia até então a natureza de tal livro. Parecia uma mistura de gnosticismo e cristianismo. Sei lá. Pegava aquela frase “não cai uma folha sem que Deus permita” e extrapolava numa tese exótica e esdrúxula, gerando críticas de teólogos e intelectuais que acreditavam em “livre-arbítrio”. Então chegaram dois caras e começaram a esperar o ônibus junto conosco. Não levantavam suspeita. Não usavam fantasias de palhaço. Estavam vestidos como funcionários de uma empresa que fornece serviço de tratamento de água e esgoto. Usavam chinelos e esse detalhe que passou despercebido na hora poderia ter sido fundamental, se eu tivesse um pouco mais de atenção.

O ônibus enfim chegou e todos entramos. Esses dois homens sentaram na frente.

Durante a viagem, Sofia lia “A Providência” e comentava.

- Um pastor atropelou e matou cinco pessoas. Da mesma família. Foi um acidente, mas ele não demonstrava remorso algum. Ao ser questionado, ele disse que tudo acontece porque Deus quer. Logo Deus queria a morte daquelas pessoas.

- Tolice e barbárie.

Num determinado local, que ficava no caminho da rota do ônibus, os dois caras de quem falei levantaram e anunciaram o assalto.

- Olhamos bem cada um de vocês! Não há palhaço algum para proteger vocês, rabanho de desgraças! - um deles gritou.

O outro parecia sentir ódio do motorista. A primeira coisa que ele fez foi dar uma coronhada no cara. Sangue desceu.

- Gosto de ver o mel descer.

- Bora, bora, bora, ou vou meter bala aqui dentro. Passando tudo aí! Celular, carteira, dinheiro, relógio, balas de canela…

Então a merda aconteceu. O autor da coronhada ficou de olho em Sofia. Dizia que queria ela e então a agarrou e tentou rasgar suas roupas. Tentei intervir e acabei levando coronhada, chutes e socos. Outras pessoas também foram agredidas.

- Fica quieto aí, vagabundo!

Sofia resistia e chorava muito. Até que o cara disse que ia meter bala nela. Ela se aquietou. O desgraçado colocou a mão dentro da calcinha. Queria fazer de tudo, mas o parceiro dele estava preocupado com a repercussão que isso poderia dar e praticamente o arrancou de cima dela.

- Não perde tempo com essa puta não!

- Você é viado, porra?

Os dois pegaram os pertences e saíram açodados.

Depois daquele dia, Sofia nunca mais foi a mesma. Ficou traumatizada. Foram meses de terapia. Nossa relação acabou. O pai dela me culpava. Me chamava de frouxo, que não conseguia defender a filha dele. E eu realmente me sentia assim. Aquilo poderia ter sido evitado. Eu disse antes: os caras estavam vestidos como trabalhadores que consertam esgotos. Não poderiam estar de chinelos. É uma função que exige arrebentar chão e penetrar em lama. Verdadeiros trabalhadores desse ramo usam botas. Fui burro por não notar isso. Puta merda.

Todo contato com a devastada Sofia foi rompido. O único legado dela foi o livro chamado “A Providência”. Odiava essa merda, mas era a única lembrança palpável dela que tinha sobrevivido.

O pior de tudo é que os bandidos não tinham sido pegos. Pelo menos, eu não tive conhecimento disso.

Passou mais de um ano e comecei a trabalhar no hospital, o local onde ocorreu o segundo evento. Também fiz terapia, tomei antidepressivos. Minha vida tinha virado um inferno. Mas conseguir esse emprego novo foi um suspiro. Depois de quatro meses trabalhando, surgiu aquilo que mudaria tudo: um dos Algozes do evento anterior entrou na minha nova vida. Eu achando que tinha superado, mas esse novo fato irrompeu no meu cotidiano de forma violenta. Estou falando de dois eventos independentes. A aparição desse bandido que havia abusado de sofia, no entanto, de alguma maneira passou a condicionar os elementos do segundo evento.

Sim, um dos caras que assaltaram o ônibus estava internado no hospital que eu trabalhava. Ele não tinha aquela aparência imponente e bárbara, portando uma arma na mão. Estava frágil, na cadeira de rodas. O seu cenho melancólico quase me deu dó. Me aproximei. Uma pessoa acompanhava ele. Talvez a mãe.

- Está tudo bem? - perguntei.

Ele não se lembrava de mim. Aparentemente. Contaram que tentaram estrangulá-lo e que ele foi espancado brutalmente. Não disseram o motivo, é claro. Mas suspeito que tenha sido algo a ver com sua atividade criminosa. Ele não estava sob custódia. Não tinha sido pego. E o que aconteceu com o comparsa? Estaria morto? É sabido que bandido não dura muito tempo.

Passei a ficar de olho nele. Enquanto isso, minha curiosidade por teorias de coincidência foi despertada. Acreditei que o fato de meu inimigo ter cruzado meu caminho tinha alguma explicação natural ou sobrenatural por trás. Depois pensei que era mais provável que fosse uma coincidência. Havia hospitais variados, mas ele foi precisamente naquele onde eu trabalhava. Cogitei até teorias conspiratórias malucas, porém, a teoria da coincidência era, até então, a mais atrativa.

Li o citado Kammerer. Comprei um dicionário de alemão-português só para ler sua obra “Das Gasetz der Serie”. Para ele, um princípio natural poderia explicar o que estaria por trás do meu encontro com o Algoz. Parecia se tratar de algo legaliforme. Kammerer acreditava em “constelações de corpos e forças” que estariam atraídas sob uma lei. As coincidências seriam manifestações de picos conspícuos dessas constelações. Haveria sistemas obscuros operando no mundo real e as coincidências são partes visíveis desses sistemas. Em resumo, é um incidente específico o abusador de Sofia ser tratado no mesmo hospital onde eu, outra vítima dele, trabalho. Todavia, tal incidente faz parte de uma estrutura ampla e compartilhada, mas não tão óbvia para qualquer um ver.

Também comecei a ler “A Providência”. A tese geral desse livro era quase oposta à tese de Kammerer. Dizia basicamente que tudo acontece por vontade de Deus. Não há coincidências, do ponto de vista teológico. Não importa se é acontecimento bom ou se é ruim. Deve ser por isso que fiquei com o livro. Sofia estava com ódio dele, pois insinuava que o abuso que ela sofreu era vontade de Deus.

Estava de plantão. Andei por setores do hospital tarde da noite. Vagava e lia A Providência, quando olhei um dos corredores e vi um médico sair. Vi também que todas as câmeras estavam desligadas. Mais coincidências. Eu estava sozinho naquela parte do hospital. Sentia até pavor. Andei e vi algumas salas vazias. Quase todas. Em uma delas estava o Algoz. Indefeso na cama. Se recuperando de uma tentativa de linchamento, suponho. A mãe dele também não estava ali. Só era eu e ele. Então pensei que a tese do livro poderia estar correta: e se Deus quiser que eu o mate? Se for a vontade Dele? O Algoz está indefeso, eu posso matá-lo e não seria fácil ser incriminado. Mataria e voltaria para meu setor tranquilamente. Nada estaria gravado. São coincidências ou vontade de Deus? Eu estava com ódio. Minha vida estava um inferno. Eu amava Sofia e não pude protegê-la! Esse homem é o responsável pela desgraça de nossas vidas.

Peguei o travesseiro e o sufoquei. Ele se debatia, mas não tinha forças, estava muito debilitado. Depois parou de se debater. Matei o desgraçado. Voltei para meu setor. Cinco minutos depois todas as câmeras voltaram a funcionar. O médico voltou. A mãe voltou. Encontraram ele morto. Vou me safar, pois é como se eu nunca estivesse lá. Tudo coincidências ou foi a Providência? Impossível responder.

FIM