Não há anestesia em porra de lugar nenhum

“O DENTISTA VAI ARRANCAR TODOS OS SEUS DENTES E SEM ANESTESIA! Aceite Jesus como seu único e suficiente Salvador”. Essa maldita gravação repete pela milésima vez. É a porra de um pen drive numa caixa de som. O gênio que inventou ou propôs isso deve ter colocado no “repeat” ad nauseam ou trata-se de um arquivo mp3 que dura várias horas. A voz é de um pastor evangélico. Eu acho que estou amarrado nessa cadeira de dentista, e com ferros na face que me impedem de fechar a boca, por horas. Uma sala imunda, fedorenta, sem um mínimo de higiene. Mas o que eu poderia esperar? Uma clínica limpinha? Isso aqui nem clínica é, é um “centro de tortura”, segundo as palavras de Flamingo, o traficante que quer se vingar de mim. Nas salas que ficam aos lados, gritos e gritos. Antes de me arrastarem aqui, por um instante vi um Dentista arrancando os dentes de uma menina de quinze anos. Sem anestesia, como diz essa desgraça desse áudio. Ela se debatia e chorava muito. Vi horror, pânico e sofrimento nos olhos lacrimejados. Como ela irritou esses caras? Não sei. Talvez nem saia viva. Eu vou sair, se resistir ao alicate.

Como parei aqui?

Pedi um ferro emprestado a Flamingo. Dias antes, eu havia brigado feio com o atendente de uma padaria. O cara me deu o troco errado e insistiu que não. Tentei pegar dinheiro de volta na marra e o cara me quebrou todinho. Apanhei, mas antes ameacei: “eu vou te pegar, sua desgraça!”. Uma ameaça digna de riso, a princípio. O que eu poderia fazer contra um brutamontes que havia me moído na porrada? Ora, será que ninguém sabe da existência das “bocas”? Flamingo era um velho conhecido. Jogávamos gude na infância. Nas bocas há drogas, porém também há armas.

- Então, você acha que eu deveria te emprestar uma arma? Só para estourar o atendente de um padaria nojenta? Não tem ninguém melhor para você passar o fogo?

- Ele me humilhou. Me bateu bastante. Quase me espancou.

- Que peninha.

- Porra, Flamingo!

Flamingo parece um flamingo. O pescoço dele tem um tamanho um pouco insólito. E ele também trabalhou numa padaria chamada Flamingo. Foi demitido e preso depois de bater repetidamente a cabeça do gerente na mesa do refeitório.

- Tá, você apaga o cara, mas e depois? Vai ter que sumir daqui. Para onde vai? Você mal tem casa. Mora com Maria, mas ela nem te suporta e deve estar fodendo com outro.

- Não fala isso, caralho! Eu vou botar uma máscara, forjar assalto. Sei lá.

- Olha só, Lucas. Estou pensando em te emprestar. Mas e se você for pego? Vai dizer onde conseguiu a arma? Vai entregar meu negócio? Não fode comigo, senão te mato. Essa porra dessa sua ideia de estourar aquele bosta tem que dar certo, senão você será um homem morto, entendeu? Ou vai acontecer algo muito ruim contigo, não tão ruim a ponto de morrer, mas ainda ruim.

O cara jogava gude comigo e me ameaça. Ele já ameaçou a irmã de estupro. Já ameaçou o pai. Aliás, Flamingo é um traficante que adora ameaçar. Ele até escreve ameaças no caderno dele. Escreverei “O Livro das Ameaças”, diz ele. “Quero ser escritor”. Bandido fodão tem que ameaçar, impor respeito. Aceitei os termos e ele me emprestou. Loucura? Claro. Todavia, estava com tanta raiva daquele atendente bosta que nem estava ligando para o preço da minha alma que acabei de vender ao diabo.

O resultado está aí. Horas de “O Dentista vai arrancar todos os seus…”. E logo o Dentista vai entrar aqui e fazer o serviço. Se sobreviver, não terei mais dentes. Vida de merda.

O Dentista terá pouco trabalho. Eu não tenho mais todos os dentes. Perdi alguns ao longo da vida. Brigas, falta de higiene, abuso de doces e cigarro. Frequentei poucas vezes o dentista. Não tinha plano de saúde. Lembro que uma vez fui numa clínica e havia doces na sala de espera. Comentei isso com a recepcionista.

- Doces? Uma clínica de tratamento de dentes oferecendo doces? O cara vai limpar os dentes numa sala. Na outra, ele suja de novo.

- Isso mesmo. Queremos que vocês voltem sempre.

O fato é que antes de ter a intenção de matar o cara da padaria, eu nunca tinha pego num ferro a minha vida inteira. Mas lá estava eu, de boné, quase na hora de fechar, indo apagar o cara. Ele estava fechando a padaria. Engatilhei, ia pipocar pelas costas. Tem que matar pelas costas, senão o desgraçado pode tentar fugir.

Foi então que…

Um carro saiu de dentro de um dos becos da favela onde estávamos. Foi um drive by preciso, rápido e fatal. Os caras metralharam o atendente da padaria. Sei lá quantos tiros foram. Armamento pesado. O pobre coitado foi estraçalhado. Me assustei e tentei sair dali, porém o mesmo carro me fechou. Dois caras saíram, apontando fuzis contra mim e ordenando que eu entre no carro. Entrei. Sob chutes, pontapés e coronhadas.

Amarrado numa cadeira. Apanhando muito. Flamingo fazia questão de enfatizar: “batam em várias partes do corpo, menos na cara”. Depois ele se dirigiu a mim.

-Oi, X9.

- Quê? Cara, eu não…

- Cala a boca!

Coronhada.

- Logo depois de você vir aqui pedir a arma. Horas depois. Menos de doze horas depois. Aliás, acho que foi depois de 12 horas. Enfim. Os porcos deram batida e acabaram com algumas bocas minhas, seu desgraçado. E não pense que mandei matar aquele vagabundo da padaria por sua causa. Matei porque minha nega reclamou que ele deu o troco errado.

Penso: olha aí, porra, eu sabia.

Flamingo prossegue:

- Mas eu não vou acabar com você não. O Dentista vai!

Alívio na hora. O cara estava me batendo, mas ia bancar tratamento dentário para mim…

- Flamingo, gostei dessa sua ameaça. “O Dentista vai cuidar de você!” - disse um dos caras que tinham me espancado.

- Você gostou, Pizzaiolo? Vou colocar no meu Livro de Ameaças! Quanto a você, Lucas, o Dentista vai se divertir com você. Boa sorte. Mas não pense que estou pagando tratamento bucal para você. Estou falando de um centro de tortura.

Então me trouxeram para cá. Não tinha ouvido falar do Dentista. Os sicários de Flamingo me explicaram no caminho. Trata-se de um torturador que utiliza técnicas de dentista para torturar. Ele atende a muitos criminosos. Sejam os fodidos ou os criminosos poderosos.

A porta se abre. Um homem usando óculos fundo de garrafa grossos. O “jaleco” era todo preto. Estava cheio de marcas de sangue. Assim como a luva dele. Ele desliga a gravação. Pelo menos isso.

- Sr. Lucas. Você já deve ter entendido como trabalhamos aqui. A gravação foi bem clara. Os gritos ao lado também. Aquela menininha ao lado tentou resistir. Inocuamente. Traiu o namorado bandido e agora está sem os dentes. Vai ser como você vai ficar.

Pegou o alicate. Me contorço inutilmente.

- Você se contorce inutilmente. Vamos começar com o terceiro molar.

Sinto o alicate entrar na boca. Ele aperta e começa a puxar com força. Uns 15 minutos nisso. Antes pegou um bisturi e cortou lá dentro. Muita dor, gengiva sendo rasgada. Antes de puxar de vez, o celular dele toca.

- Um instante, sr. Lucas.

Sai da sala. Olho para tudo que é lado, em busca de algo para escapar. Não há nada disso. Não tem como escapar. Serei um homem sem dentes!

O Dentista volta.

E me desamarra da cadeira de dentista.

- O sr. Flamingo ligou. Levou outra batida policial, perdeu mais grana, drogas, armas e capangas. No entanto, ele encontrou o rato que estava dedando ele. Estão vindo para cá. Como ele não tem mais dinheiro, por ora, vai usar o dinheiro que já me pagou para arrancar os dentes do verdadeiro rato, não os seus. Agora dê um fora daqui. E se andar com a língua nos dentes, já sabe. - ele exibe o alicate ensanguentado - É bom não nos vermos novamente, sr. Lucas.

FIM