Ausência de atenção

Juliano está esperando no carro da autoescola. Isso vem acontecendo duas ou três vezes por semana desde quando ele tinha 19 anos. Há uns quarenta anos, ele é aluno da autoescola Punheta na Estrada. Talvez tenha acumulado milhões de horas de aula, o que provavelmente significa que tem muito mais capacidade para ser instrutor de direção de carro do que qualquer outro no universo. O problema: falta a carteira de motorista. Ele tira da mochila uma garrafinha de vodca vagabunda de dez reais que ele compra no supermercado ao lado do shopping modesto onde fica a escola. A bebida alcoólica é tão horrorosa que o consumidor sente que está bebendo alcool puro. Ou acetona. Juliano sabe que não pode beber antes de dirigir, mas foda-se. O homem está nessa há quarenta anos, caralho. QUARENTA ANOS. Quando um homem fica quatro décadas na autoescola, ele precisa de privilégios. Paulo, seu instrutor há uns dez anos, entra no carro.

- Juliano, nem vou mais reclamar de seu hálito de vodca. Mas você sabe o que significa, se a fiscalização pegar, não é?

- Eu faço isso há uns vinte anos. Nunca fui pego.

- E se pegar, você não paga propina…

- Não sou dessas coisas, você sabe.

-Se você fosse, não estaria tomando aula até hoje.

- Ah não vem não…

- Juliano, considere a possibilidade de juntar um dinheiro. A probabilidade de você pegar examinador corrupto é altíssima. Só tem corrupto nessas bandas. Muitos outros teriam o mesmo destino que você, se não fossem propineiros por um dia. Sai dessa de honestidade. Vai dizer que nunca fez merda na vida?

- Merda criminosa não.

- Cara, para de gastar dinheiro com aquelas putas. Sei que você humilhado por várias mulheres, quando descobrem que você é um eterno aspirante a motorista…Mas não precisa exagerar.

- Já cansei de me perguntarem, a caminho da cama, se eu tinha carteira de motorista. Parece que ter habilitação é critério para foder mulheres. Não aguento mais! Dando dinheiro, ninguém pergunta nada.

Paulo tirou o tablet de dentro do porta-luvas. Talvez seja a milésima vez que ele fez isso, com Juliano do lado. Talvez seja a milésima vez que ele use o “sistema de reconhecimento de foto”. Aliás, quando Juliano começou, sequer existia essas tecnologias. O cara é do tempo em que tudo era registrado nesses caderninhos que se encontra em mercadinhos esquálidos de bairro.

- Você me disse que era uma “questão de honra e tudo mais”… Mas porque não aceita que dirigir não é para você?

- Paulo, perdi a conta de quantos instrutores me disseram a mesma coisa. Isso nunca me convenceu.

- Então vamos lá, você gosta de gastar dinheiro nisso e com aquelas putas.

E assim começa mais uma aula. Já perdemos a conta de quantas foram. Ainda assim, Juliano demonstra dificuldades básicas. Ele não lembra, por exemplo, o procedimento inicial para sair com o carro. Ele sempre esquece de colocar a marcha no “neutro”. Em outras vezes, ele esquece de descer a porra do freio de mão. Porra, quarenta anos nisso e ele esquece, se perguntou Paulo. E depois disse isso na cara dele.

- Juliano, talvez você seja um limitrofe.

- Quê?

- Tem pessoas que são boas em alguma coisa. Você é bom em lavar privadas. Aliás, você é conhecido por ser o melhor da cidade. Mas dirigir não é para você, cara.

Nas vias desertas, onde toma aulas há pelo menos vinte e cinco anos, Juliano consegue manter a direção básica, consegue fazer conversões à direita e à esquerda, mas ele às vezes age com ímpeto, colocando a vida dele, de pedestres e do instrutor em risco. Passou mais uma vez numa determinada área, onde uma vez vacilou e deixou vagabundos roubarem o carro da autoescola. Há uns quinze anos, depois de fazer a baliza e “finalizar”, saiu do carro e deixou a chave na ignição e o motor ligado. Algum marginal aleatório percebeu, saiu de dentro da mata e correu em direção ao carro. Entrou e arrastou o veículo. O instrutor tentou impedir. Correu e se segurou na porta do lado do condutor, para tentar segurar o bandido. Tomou uma cotovelada e caiu na pista com o carro em movimento. Bateu a cabeça do chão e morreu instantaneamente na rua. Foi um acontecimento que abalou Juliano. Na época, todos culpavam ele pela morte do instrutor. Até sua namorada que morava com ele. Até os colegas da padaria, onde ela trabalhava, mandavam indireta para ele. Ou direta: “olha, o Jegue Lerdo que namora a Liziane”.

- Ele só busca ela a pé. Nunca vem de carro. Não é motorista. Incapaz de passar.

Ela ficava cobrando ele o tempo todo.

- Você está há uns vinte cinco anos nessa porra de autoescola e não passa. Os namorados das minhas colegas vão buscá-las de carro. Só nós dois que vamos de ônibus.

- Então vá arrumar alguém que tenha carro!

Ela seguiu sua sugestão e arrumou outro homem. Um cara que passou de primeira no teste de direção. Um propineiro? Talvez. Mas depois Liziane também tirou a carteira de habilitação dela e logo ela e o namorado passavam buzinando por ele. Fazendo hora com a cara. Até que um dia ele jogou pedra no carro dele. O cara saiu, um brutamontes de quase dois metros, e o espancou na rua.

Essas lembranças iam e voltavam sempre durante a trajetória. E olhe que estamos falando das vias com pouca movimentação.

E as vias movimentadas?

Juliano quase causou inúmeros acidentes. Quase. Sorte dele (e dos pedestres) que no banco do carona, onde fica o instrutor, tem o pedal de freio.

E acreditem, até hoje ele tem dificuldades e soltar a embreagem sem deixar o carro morrer.

- Juliano, pega um dinheiro e paga propina. Só assim você tira habilitação. Me sinto até culpado por sugerir isso. Imagina um motorista desatento e limitrofe, como você, dirigindo por aí. Vai atropelar e matar gente. Mas meu remorso por você é maior. Suborna o examinador. Te passo a tabela. Era para você ter feito isso antes. Hoje os preços estão mais caros, desde a operação que desmascarou o Grande Esquema. Vai, cara, só assim você passa.

Pela primeira vez, Juliano estava considerando subornar o examinador. Lavou privadas a semana toda pensando nisso. Pegou suas economias. A última puta lhe cobrou um pouco mais em troca de elogiar suas proezas como um não-motorista. Pensou um pouco mais durante dias. Enfim, cogitou levar o dinheiro no dia da prova de direção. Só não sabia se ia mesmo utilizar.

Sexta-feira, de manhã cedo.

Lá estava Juliano, era a mílésima vez que ele estava ali esperando ser chamado para fazer a prova de direção. Ou não. Não tinha certeza. Mas era quase isso. Quarenta anos! Quanta gente passou por ali, quantos se aposentaram desde que ele começou a torrar seu dinheiro nessa tentativa perene de ter sua carteira. Homem honesto, nunca cogitou propina. Hoje isso pode mudar. Talvez se torne um bandido em prol da carteira.

- Sr. Juliano, me acompanhe.

Era o Examinador.

- Sr. Juliano, o senhor tem o rosto bastante conhecido.

- Não me diga…

- Na última vez que o senhor esteve aqui, eu tinha outra função. Agora sou examinador. Há algumas semanas.

Era um rapaz jovem. Mas alto, forte e tinha um ar imponente. Os jovens são idealistas, dizem. Então o cara pode recusar o dinheiro sujo para aprová-lo. Que azar, Juliano. Você só se fode.

Os dois entraram no carro do exame. Momento decisivo. O Examinador manda começar. Ele hesita, não fala do dinheiro. Comete erro que custa um, dois pontos. Se perder mais dois, está reprovado mais uma vez. Treme na hora das paradas em cruzamentos. É o medo do carro morrer e ele perder. O terror do fiasco toma conta dele.

- Cara, tem oitocentos paus no meu bolso.

- Sr. Juliano, olhe para as vias. O que tem o seu dinheiro?

Eita, se fodeu. O Examinador é um idealista e parece pouco receptivo à proposta.

- Sr. Juliano, o senhor quer comprar sua aprovação?

- Quero. E que se foda. Se quiser me denunciar, vai em frente.

- Eu vou te denunciar agora, propineiro! Pare o carro!

- Porra!

- Polícia, pegamos ele no flagra!

- Meu Deus!

- Calma, sr. Juliano, foi uma brincadeira.

- Quase me matou do coração.

- Me dê os oitocentos.

Juliano tirou uma bolada do bolso.

- Isso aqui é pouco.

- Me disseram que o preço era esse.

- Aumentou de novo. Sempre aumenta quando há operações contra propinas.

- E agora?

- Soube que você lava privadas.

- Sim.

- Lave as privadas da minha casa nos próximos dois meses. Vou dar um jeito de aprová-lo. E olhe, você perderia de novo.

- Obrigado.

- Não há de quê.

Pouco tempo depois, Juliano enfim recebeu sua habilitação. Amigos festejaram com ele e ele ficou lavando a privada do Examinador nos meses seguintes. Parece que valeu a pena.

FIM