Passeio de carro

Parte I

Andei até o estacionamento daquele modesto shopping center. Lá estava o carro com a placa indicada. Fui até o veículo. O Instrutor estava dentro. Um homem coroa, rosto ossudo, bem-apessoado, usando óculos. Bato no vidro. Ele abre a porta.

- Você só pode ser um aluno.

- Ninguém mais vem até aqui?

- Vem. Mas só outros alunos.

E não é que ele estava certo? Apareceu um rapaz. Estava alegre. Cumprimentou o Instrutor. Fez piadinha.

- Dirige usando cara de mau, rapaz. - ele disse.

Não sirvo para colocar cara de mau. Não tento parecer durão. Gente durona não precisa mostrar que é. O próprio Instrutor é um homem durão, parece um e faz isso sem esforço aparente.

- Quantos? Você sabe… aquele rapaz?

Perguntei, com um pouco de receio, admito.

- Ele foi pego. Duas vezes.

- E ele não disse nada?

- Claro que não. É de confiança. Ou está muito muito ciente sobre o que acontece com os que falam muito.

Fiquei em silêncio. Ele continuou.

- Bom, ele derrubou algumas. Porém, numa delas, foi pego. Você vai ver como é. Agora ponha o cinto.

Ligou o carro, saiu do shopping. Rumo à Rua.

A Rua era deserta. Cheia de casas com câmeras, cercas elétricas, portões de ferro imensos, garagens com cachorros pitbulls… Bairro nobre. O lugar perfeito. Antes as aulas eram em outras Ruas, mas sempre é preciso ficar mudando.

-Para ser meu aluno, você precisa ter noções básicas de carro. Sabe dirigir, né?

- Sei.

- Troque de lugar comigo. A aula vai começar.

Fui para o banco do motorista.

- Primeiro, rode pela Rua. Quando avistar um alvo em potencial, iremos começar.

Rodei. Atravessei cruzamentos, passei por curvas, fui e voltei. Passamos pelos mesmos lugares várias vezes. Tudo deserto. Ou quase. Até que vimos um alvo em potencial. Uma mulher, voltando do supermercado. Cheia de compras na mão. Ela está de costas para o carro.

- Perfeita. Com tanto peso em mãos, vai ser difícil correr. Não há ninguém em volta. Apenas matagal e casas com playboyzinhos e patricinhas enfiados em seus mundinhos. Vá devagarzinho.

Reduzi a marcha. Acelerei um pouco e depois tirei o pé do acelerador. Na verdade, folguei, mas não tirei todo o pé. O carro se aproximava devagar, mas ainda estava relativamente longe. Mesmo lento, a velocidade média do carro era maior que a velocidade média do andar dela. Quando chegou numa determinada distância, o Instrutor mandou acelerar. Segui rigorosamente a sugestão. Subi o passeio com tudo e acertei o alvo em cheio. Um pote de manteiga, que estava em um dos sacos, caiu em cima do parabrisa. Sujou tudo. Depois de acertá-la, pisei no freio.

- Porra, olha a sujeira. Passa por cima e vamos limpar isso aí.

O Instrutor dizia instruções lacônicas, diretas e secas. Segui rigorosamente essa instrução. Passei com o carro por cima da mulher que, graças ao impacto, tinha sido jogada alguns metros à frente. Queria sentir o som surdo de ossos se esmigalhando. Comentei isso.

- Só se você se tornar um Motorista muito bom. Tem que ter muita prática. Como eu tenho.

Depois de limparmos o parabrisa, voltamos à pista. Procuramos outra Rua. Aquela ali estaria cheia de policiais e ambulâncias.

- Será que ela morreu?

- Talvez não. Você não passou por cima da cabeça.

Parte II

Mesmo esquema de antes. A orientação: “saia para o estacionamento. Quando chegar na escada, aviste o último carro numa fileira de carros à esquerda. É esse”. Sigo rigorosamente. Encontro o Instrutor dentro do carro. Dessa vez ele está de terno e sem gravata. Assim como eu.

- Temos um encontro hoje, aluno. Entre.

O Instrutor era um homem bonito. Teve alunas, seduziu alunas, atropelou alunas. Hoje a aula era mais complicada. Imagina um magrelo como eu tendo que seduzir mulheres.

- De fato, você é magrinho, quase esquelético. Faça tudo que eu disser e dará tudo certo.

Fomos até um restaurante, um dos mais caros de Salvador. O segurança não tirava os olhos de mim. Talvez queira um relacionamento homoafetivo comigo.

- Sente na mesa 44. Espere que já vou.

Segui rigorosamente a ordem. De longe, observo o Instrutor conversar ao telefone. Ele, um homem calmo, gesticula um pouco. Depois guarda o celular e vem.

- Já estão chegando.

Passa uns quinze minutos e aí elas chegam. Duas mulheres. Muito bonitas. As duas de vestido. Acho que eram duas irmãs.

- Garoto, essas são Angela e Maria.

- Prazer.

Angela sentou na direção do Instrutor. Maria sentou na minha direção. Parece que ficou combinado que Angela faria o par com o Instrutor. Maria, comigo. Acho que ela esperava coisa melhor. Quando sentou, deu a impressão de que estava ali a contragosto. E quando me cumprimentou, deu um sorriso amarelo.

- Jorge, você me falou do seu amigo, mas…

Jorge!?

- Jorge?

O Instrutor olha para mim. Deu medo.

- Meu bom amigo Jorge! - improvisei.

- Pensei que você não viria, Jorge.

- Tinha que vir. Vocês são perfeitas.

- Obrigada.

Angela contou que conheceu Jorge/Instrutor numa sinaleira, enquanto ambos aguardavam o sinal abrir e assistiam um malabarista de rua fazer o seu show. Ela deu em cima dele. O Instrutor era um homem austero até demais. Em circunstâncias normais, ele não responderia às investidas dela. Mas ele precisa me ensinar. Então aceitou o convite dela. Foi no mesmo dia em que ele me ensinou a atropelar duas pessoas de vez. Matei só uma. Progresso. Maria nem olhava para a minha cara. Enfiou a cara no celular. Tentei puxar assunto.

- Você tem Instagram?

- Não.

- Facebook?

- Não.

- Não tem rede social nenhuma?

- Sou eremita.

Garçom chegou com o vinho. Comecei a virar taça.

- Vai com calma, garoto. Não se esqueça que você vai dirigir.

O Instrutor começou a pegar pesado com Angela. Primeiro recusou suas investidas mais diretas. Depois a acusou de ser garimpeira. Para o horror dela e de Maria. Aliás, Maria estava recusando todas as minhas investidas. Quando a convidei para ir à praia, ela chegou ao ponto de dizer que nem sai de casa e que nunca foi à praia. Mas ela estava com marcas de bíquini. Questionei e ela disse que tinha nascido assim. A mãe tomava tanto sol que as marcas acabaram se incorporando à genética dela. A filha herdou.

- Vamos embora, Maria. Nunca me senti tão humilhada.

- A gente dá uma carona para vocês.

- É o mínimo que você pode fazer depois de todo esse constrangimento.

Antes de sair, Angela bebeu mais.

- Vai com calma, Angela. Faça como sua irmã. Beber demais pode dificultar em certas situações. Você sabe.

Dirigi o carro com nós quatro. Elas deram o endereço e logo chegamos à rua. Ou melhor, à Rua. Deserta. Hora da aula.

- Tchau.

As duas desceram.

- Espere elas chegarem no ponto de referência. Vai andando devagarinho. No ponto, você acelera.

Chegaram. Engatei a acelerei. Subi o passeio com tudo e acertei as duas. Angela foi lançada mais à frente. Passei por cima da cabeça de Maria com o pneu da frente. Parece que o crânio esbagaçou. Depois passei por cima de Angela. Com a roda da frente e depois com a roda traseira.

- As duas morreram. Você está cada vez melhor, garoto.

Me senti vingado. Agora entendi tudo. O Instrutor é um gênio. Caímos fora dali açodados. Logo polícia, socorristas e gente do IML chegariam.

FIM