Parafusos

ESTAVA NO METRÔ DE SALVADOR, linha Acesso Norte-Aeroporto. Esperava um cliente. O intermediário disse que ele queria o serviço. E qual o serviço? Matar alguém. É o meu trabalho. Era um horário em que o metrô tinha pouca gente. O que significa uma liberdade maior para falar sobre crimes, como assassinato. Queria deixar o cliente à vontade. Ele ia me passar o dinheiro. Vivo. Depósitos poderiam me ferrar. O banco rapidinho ia notar que o dinheiro recebido era incompatível com minha renda.

O metrô parou na estação Imbuí. Ele entrou. Um homem calvo. Por volta dos quarenta anos de idade. Tem posição importante numa empresa. Ganha bem. Se a cara dele tem olhos fundos e cansados, certeza que a causa não é o salário. Deve ser casamento. É corno? É brocha? Filhos não falam? Não sei. Foda-se. Lá vem ele.

- Sr. Caim, você é o cara…

- Sim, senta aí e fale baixo.

- Você sabe por que estou aqui.

- Sei. Diz logo quem é o alvo.

- Bem, é um cara, ele comanda um grande esquema de corrupção. A empresa de instalação de purificador de água é só uma fachada…

O cara está mentindo.

- Então você quer derrubar um grande esquema de corrupção?

- Sim…

- Q ue homem nobre você é.

- Bem, obrigado…

- De nada. Sempre preocupado com a sociedade.

- …

- Não venha com essa conversa fiada. Muitos clientes são como você. Eles tentam dar verniz moral ao assassinato encomendado. Você e os outros são egoístas, querem matar por razões egoístas. Conheço isso. Não me enrola. Fala a sua verdadeira razão.

- Está bem. Ele me roubou uns parafusos.

- Você quer matar o cara porque ele te roubou parafusos? Não me sacaneia, cara. Isso é sério?

- Sim. Ele trabalha numa empresa de venda e instalação de purificador de água. Contratei o serviço da empresa. Ele é um mero instalador. Na verdade, ele nem foi à minha casa instalar nada. Foi consertar. E consertou, mas quando fomos ver, quase todos os parafusos tinha desaparecido.

- E você quer matar o cara por isso?

- Sim.

- Sério? Você deve ser algum parodista.

- Quê?

- É, te dei um sermão sobre egoísmo. Para se vingar, você me sacaneia, contando uma história absurda de retribuição desproporcional. Estou fora dessa palhaçada.

Estava mesmo caindo fora. Ia descer na próxima estação. Ele me mostrou o dinheiro. Vários bolos de nota de cinquenta e de cem. Me deu um. Peguei. Vi que não eram notas falsas.

- Tem cinquenta mil aqui, sr. Caim.

- Você está me dando cinquenta mil reais para matar alguém que te roubou parafusos de um purificador de água? Eu ainda não consigo acreditar.

- É que…

- Não explica não. Foda-se. Vou fazer o serviço. Não cabe a mim questionar o absurdo dessa proposta. Mas me diga. É só matar?

- Vou querer os parafusos de volta.

Não dava para acreditar. Mas eu sou profissional. O cara pagar cinquenta mil para apagar um instalador de purificador de água que roubou parafusinhos dele. Só pode ser brincadeira. Ou há algo por trás. Talvez haja alguma razão muito maior. A meu ver, ele quer encobrir o verdadeiro motivo, até de mim. Os parafusinhos servem como fachada. Porém, ele poderia inventar algo melhor. Parafusinhos? Puta que pariu. Como é que pode? Ou será que ele é alguma autoridade querendo me pegar?

- Vou fazer o serviço, cara. - digo, enquanto meto a grana na mochila. - Mas é bom que não seja tentativa de cilada. Se for, você morrerá. Esteja ciente. Não arme para cima de mim.

- É a mais pura verdade.

Desci do metrô.

Além do dinheiro, ele me passou toda informação possível sobre a vida do cara. Trabalho profissional. Ele não fez sozinho. O que significa que gastou mais grana. Todo esse investimento por parafusinhos? Difícil acreditar. Continuei considerando a possibilidade de ser uma cilada. Armação de gente que quer me pegar. Autoridade ou não. Mas foquei no trabalho. Graças ao cliente sabia onde o cara morava, quando saía para trabalhar, que ônibus pegava, renda dele, tudo. Era um trabalhador. Se a razão dos parafusos é fachada, esse cara só pode ter visto o que não poderia ver. Por que investiriam tanto assim para apagar um cara que pega ônibus lotado, para depois instalar purificadores na casa dos outros.

Fui ao bairro dele. Bairro humilde, mas com saneamento básico, asfalto, parque. Privilégio, se comparado com outros bairros de Salvador. Segundo dados que o cliente me passou, ele sai de casa às sete da manhã. Vai ao ponto. O ônibus chega por volta das sete e vinte e cinco. Enquanto espio a caminhada dele de longe, fico ligado na minha situação. Não é absurda a tese de que estou numa emboscada. Parafusos? Cara, não dá para acreditar. Fico no parada, próximo dele. A mão está na jaqueta. Tempo chuvoso. Dá para enfiar a arma na roupa sem medo de ser notado. Talvez o inverno seja a melhor época para matar. Você anda armado, usa roupas pesadas. Combinação para ninguém perceber que você está com o ferro. Me preparei para atirar. Pode ser que alguém atire em mim a qualquer momento, se isso for uma cilada.

Entramos no ônibus. Sempre ligado. Além de estourar o cara, eu ainda ia ter que recuperar o parafuso. Não sei por que ele levaria os parafusos para casa. Senão eu teria matado ele em casa. Minha hipótese é que os parafusos estão no trabalho dele. Aliás, já que é uma empresa de purificador de água, deve haver milhares de parafusos. Trabalho fácil.

O trajeto durou vinte minutos. Ele desceu. Deixei andar um pouco. Em seguida fui atrás. Tinha que agir rápido. Coloquei o boné no rosto. Esperei mais dois minutos. Ele entrou, deu bom dia para a recepcionista e entrou numa porta. A recepção era estreita e cheirava a cloro. Só tinha uma atendente na frente. Entrei.

- Bom dia, sr.

Apontei a arma.

- Não grite. Coloque essas vendas nos olhos.

Ela ficou pálida. Queria gritar. Mas sabia que se gritasse ia arruinar meu plano e eu teria que improvisar. E improvisar, segundo o Manual do Assassino - 32ª edição, significa matar quem não tem nada a ver.

Fechei a porta da firma da empresa onde meu alvo trabalhava. Porta de vidro. Quem passava poderia ver. Amarrei a recepcionista. Ela estava com venda nos olhos. Disse que só tinha meu alvo lá dentro. Eu sabia. O cliente me deu essa informação. Entre os instaladores, ele é o primeiro a chegar.

Dei um chute na porta e apontei a arma.

- Se gritar, te furo todo.

Ficou com as mãos para cima. Pálido. Todo mundo fica pálido.

- Onde estão os parafusos?

- Parafusos?

- Sim, parafusos.

- Isso é alguma pegadinha?

- Eu pareço que estou brincando?

- Não, mas eu nunca vi isso.

- Eu também não. Um cara quer você morto, porque você roubou parafusos dele.

- Sério?

- Sim.

- Cara, eu não roubei parafusos nenhum. Por que eu faria isso?

- Não sei. Onde ficam os parafusos? Usados.

Ele apontou para uma caixa em cima de uma estante de ferro. Peguei. Sempre com a arma apontada. Tinha milhares, talvez milhões de parafusos. O cliente só queria seis. Peguei.

- Olha, cara, eu…

Antes que pudesse terminar de falar, atirei na cabeça. Matei. Não poderia demorar ali. Saí pela porta da frente. Peguei outro ônibus. Cai fora. Sempre ligado. Talvez fosse uma emboscada, mas me sentia invencível.

Dois dias depois encontrei o cliente no metrô. Devolvi os parafusos. O trabalho estava feito.

- Sério? Parafusos?

- Sim, muito obrigado.

- De nada.

Ele desceu. Parece que era sério. Ou talvez tenha mesmo algo grande por trás. Foda-se. Não é problema meu.