O Pastor
“NOS ANOS 1980, NO PRESÍDIO ONDE TRABALHEI, chegou um homem acusado de matar as filhas e a esposa. Era oriundo das classes miseráveis. Gostávamos de fazer perversidade com criminosos assim. Lembro que esmagamos todos os dedos das mãos dele com uma marreta”.
Quem me contou isso foi Cleber, um agente penitenciário. Nós dois estamos numa barbearia. Enquanto Zé Máquina corta o cabelo de outro cliente, eu e ele trocamos ideia. Me contou relatos tenebrosos de bandidos sofrendo torturas na cadeia. Percebi que ele contava essas coisas com prazer.
Eu tinha um problema para resolver. E pensava seriamente em pedir a ajuda de Cleber. Minha televisão deu defeito. No bairro onde moro não conhecia ninguém que consertava aparelhos eletrônicos. João, o dono de um bar que eu frequento, me indicou um tal de Evandro TV, um técnico que conserta televisões e que mora no bairro de Vista Alegre, subúrbio de Salvador.
Me deu o telefone do cara e eu liguei. Acertamos que eu deveria comprar uma peça necessária para consertar a TV. Eu paguei, ele recebeu a peça em seu endereço, mas faltou acertar para que ele fosse até minha casa. No entanto, depois de receber a encomenda, Evandro TV começou a sumir. Não atendia ligações. Quando atendia, ficava enrolando.
- Estou com problemas pessoais.
- Problema seu!
- Sim, foi o que eu disse, os problemas são meus!
- E a minha TV!?
- Vou consertar. Não se preocupe.
Dias se passaram. Evandro TV parou de atender de vez as chamadas. Fiquei nervoso. Minha mulher todo dia me cobrava, me chamava de otário, zombava de mim, dizendo que esse sujeito tinha me passado a perna e que eu tinha que tomar uma providência. Ou ele conserta ou devolve a porra do dinheiro. Eu tinha o endereço dele, mas não conhecia Vista Alegre. E hoje em dia, não é muito seguro andar por certos locais, se você for desconhecido.
Eu descontava minha frustração no bosta do dono do bar, João. Ele ficava insistindo que o cara era de confiança, que minha TV seria consertada, que o cara não me passaria a perna porra nenhuma, que ele conhecia o cara, que poderia cobrar dele, se o cara não devolvesse.
- Vai se foder!
Cleber talvez fosse a solução para o meu problema.
- Cleber, você conhece Vista Alegre?
- Conheço gente que mora nas proximidades, por quê?
- …
- Fala, meu rapaz, você precisa de algo? Alguém mexeu com você?
- Bom, eu acertei com um sujeito para consertar minha televisão. O cara disse que eu tinha que comprar uma peça. Comprei. Ele recebeu a peça. Mas enrola para consertar minha porra. Não atende telefonemas. Acho que ele passou a perna.
- Não ache isso.
- Por quê?
- Não ache. Verbo “achar” expressa incerteza. A certeza é que ele te fez, sim, de otário.
- …
- Amigo, você foi feito de otário.
- Sim, já entendi!
- Mas vou quebrar seu galho.
Cleber tirou seu smartphone do bolso, discou um número. Estava telefonando para alguém.
- Opa, diga aí, pastor. Como você está?
Não dava ouvir as respostas do “pastor”.
- Um irmãozinho aqui foi feito de otário foi um tal de Evandro TV, um sujeito que conserta televisões em Vista Alegre.
Deu para entender, dessa vez, a resposta do “pastor”.
- Nunca ouvi falar desse tal Evandro.
- Pastor, tenta descobrir quem é esse cara. Ele roubou duzentos reais de um irmãozinho aqui. O cara comprou a peça que deveria ser usada para consertar a TV. Depois que recebeu, nunca mais atendeu o telefone.
- Verei o que posso fazer.
- Obrigado, amigo.
- Pronto, rapaz, me dê seu número. Entro em contato logo.
Dois dias depois, ele entrou em contato.
- Infelizmente, não conseguimos, ainda, localizá-lo. O endereço que você deu é de um lugar abandonado. Me diz uma coisa: como você, que mora nas margens da Avenida Bonocô, foi procurar um cara que conserta televisão lá nos quintos dos infernos do subúrbio.
- Eu não conhecia ninguém que ajeitava televisão por essas bandas, então perguntei ao João do Bar. Ele me indicou esse cara.
- João do Bar? Foi ele que te meteu nessa falcatrua?
- Bem…
- Vamos perguntar a ele.
Mais cinco dias se passaram e no Whatsapp começou a correr a notícia de que um homem sofreu “agressão grave”. Era o João do Bar. Cleber quebrou o cara, não existe coincidência. Fui até o bar e encontrei a esposa de João chorando.
- Alguém atirou nas duas mãos e nas duas pernas de João.
Um dos bandidos ainda teria dito que isso era “para assustar”. Fiquei horrorizado. Então cheguei em casa e minha mulher começou a me esculhambar, me chamando de bunda-mole, de otário, que não conseguia garantir nem que ela possa assistir a novela. Com raiva, dizia que “deve ter coisa melhor na rua”. Liguei para Cleber.
- João não queria dar mais detalhes. O Pastor ordenou que se arrancasse informação dele à força. Eu não estou mais envolvido nisso, amigo. O Pastor assumiu tudo. Ele vai recuperar seu dinheiro.
- Quem é o Pastor?
- Não pode saber, amigo. O cara quer te ajudar e você quer saber quem é? Não importa! Apenas sente e espere. Esqueça o autor do serviço. O que importa é o serviço.
Os dias se passavam. Jornais mencionavam “onda de violência” no Subúrbio soteropolitano. Mortes e torturas. Um dos entrevistados por um dos jornais disse: “os caras estavam furiosos atrás de alguém”.
Recebi mais uma ligação de Cleber.
- O Pastor descobriu que esse tal Evandro TV é um nome falso. O cara se chama Juliano, o Falcão, e é um bandido com uma extensa carreira criminosa e atua em vários ramos de bandidagem, inclusive pequenos golpes, pegando bobos e otários como você. Você foi vítima de um dos tentáculos dele, o menor, talvez. Mas não se preocupe. O Pastor vai desmantelar tudo.
Dito e certo. Jornais noticiam que um chefe do crime organizado foi encontrado morto em Lauro de Freitas, três dias depois do último telefonema de Cleber. Juliano, conhecido como Falcão, era a vítima. Ele saiu do subúrbio para fugir. Sabia que o Pastor estava atrás dele. Mas Cleber disse que ninguém escapa do Pastor.
No outro dia, alguém bateu na minha porta. Era um homem usando blusa social, parecia um neopentecostal, até Bíblia tinha.
- Você é o Pastor?
- Não, mas estou aqui por ele.
O cara abriu a Bíblia e tirou quatrocentos reais.
- O tal Evandro TV te roubou duzentos, não é? Mas toma aqui quatrocentos.
Outros homens neopentecostais estavam com ele e carregavam uma TV novinha. Colocaram na sala de minha casa.
- Presente do Pastor.
- Tudo de graça?
- Tudo de graça.
- Ele não vai querer nada em troca?
- Amigo, você é otário, o Pastor nunca vai precisar de você. Aproveite a TV e o dinheiro. Adeus. E Deus te abençoe.
FIM