Bandidos não avisam quando chegam

Em memória de James M. Cain (1892-1977)

COLOQUEI A ARMA NA BOCA DELA, dentro do carro. Soluçava muito, os olhos lacrimejavam e estava trêmula. O cano da arma ficou cheio de saliva. Foi a maneira que encontrei para que não gritasse ou para que calasse a boca. Do lado de fora do carro, havia um banco. Minha mulher, Laura, está lá dentro. Pegamos cartões dessa pobre criatura sob a mira de uma glock. Laura está tentando sacar o dinheiro. Eu sou o ladrão cruel da dupla. Ameacei a vítima incontáveis vezes. “É bom que tenha dinheiro, senão você está fodida, sua puta” foi uma das frases que disse para a coitada. Resolvi parar de falar isso, vai que ela fica com tanto medo e acaba urinando tudo.

Como chegamos a isso?

Em casa, semanas antes, eu estava olhando as planilhas com cobranças de empréstimos e outras dívidas, que se acumulavam a cada mês. Eu sou um empresário, talvez médio empresário ou pequeno empresário, quem sabe, foda-se. Sei que sou dono de uma pousada no litoral baiano. Ou melhor, somos. Eu e Laura, apesar de o empreendimento estar em meu nome. Mas agora somos sequestradores, ladrões e empresários. Polímatas!

A clientela da pousada estava menor, não estávamos conseguindo lucro. Havia mais despesas que receita. A falência era iminente. Até que Laura teve uma ideia insólita, que inclusive me deixou chocado.

- Meu amigo Marcos disse que uma conhecida dele conseguiu uma indenização na justiça de 20 mil reais. Os dois moram na Pituba, bairro nobre de Salvador. Ele é um rapaz com histórico de crimes e o pai dele não quer mais ajudá-lo com dinheiro. Está tão desesperado quanto a gente. Comentei sobre nossa situação e ele sugeriu que entrássemos no esquema. Fiquei pasma, mas se tudo der certo, ninguém vai saber. Precisamos muito do dinheiro ou caíremos em desgraça financeira. Eu sabia que isso ia espantar você, porém que escolha temos, Lucas?

- Laura, isso é loucura. Você tem noção do que está falando?

Insisti no blá blá blá moralista e banquei o surpreendido . Todavia, no fundo eu já estava acatando a ideia criminosa. Eu entendia que sem um investimento, a pousada estava arruinada. Com tantas dívidas e juros, acho que cedo ou tarde chegaria um momento em que o Estado tomaria a pousada, por causa de tanto calote. Sem falar nas dívidas pessoais que tínhamos. Vinte mil reais ajudaria muito. Na verdade, íamos receber menos que isso. O amigo de Laura ia querer a parte dele, óbvio.

Marcos chegou ao litoral baiano dois dias depois. No dia anterior inteiro fiquei refletindo, pensando nas consequências. Mas o futuro bandido sempre acredita que vai dar tudo certo. Então falei com Laura que íamos tentar a sorte. Só que era preciso cogitar a possibilidade de sermos pegos. O que seria de nós?

- Iríamos para a cadeia, Marcos. Ou poderíamos ser mortos. - ela era uma pessoa estóica.

- Carlos é um traficante amigo meu. Pode arranjar uma arma fácil. - explicou Marcos.

- Mas você vai contar a ele que vamos sequestrar uma pessoa? Isso significa que mais alguém, além de nós, irá ter ciência dos fatos.

- Não contei. O bom é que ele nunca faz perguntas.

- Continue falando do esquema.

- Tenho monitorado a rotina da vítima. Sei que ela mora sozinha. Sua casa tem uma garagem com porta automática que abre devagar. Enquanto abre, ela espera com o carro. É o momento de distração e fraqueza que precisamos. É o momento que teremos que aproveitar e rendê-la. Ela chega por volta das 22 horas. A rua está deserta. Na verdade, a rua onde ela mora está sempre deserta, não importa o horário. Mas caso ela grite, chamará muita atenção. Temos que rendê-la de uma maneira que faça ela ficar de bico fechado imediatamente.

- Você pensou em tudo, Marcos. Ou quase tudo. Há câmeras do lado de fora das casas?

- Provável que tenha, mas isso é quase irrelevante. O sequestro acontecerá à noite. Será difícil detectar nossos rostos. Tudo tem que ser muito rápido.

- Tem outro problema. E os vizinhos? Sempre tem alguém espiando a vida dos outros. Se tiver alguém na janela na hora que ela for rendida? Podemos ser pegos por causa de algum fofoqueiro ou fofoqueira bosta.

- Então tudo tem que ser o mais discreto possível. Tem que ser um assalto silencioso, sem gestos e posturas que expressem agressão ou violência, para que não chame atenção.

O tal do Carlos ia arrumar a arma para Marcos. Eu e Laura viajamos para Salvador no dia seguinte. Ficamos hospedados num hotel a dois quarteirões da casa da vítima. Aproveitamos e ficamos de olho nela também. Parecia morar sozinha. Saía para o trabalho no início da tarde. Observamos ela no fim de semana. Não tinha vida social - não tinha namorado, nem amigos. Uma pessoa não convencional. Comecei a achar isso esquisito. Seguimos ela até o trabalho. Era funcionária do Tribunal de Justiça. Tive que me aproximar mais para saber a função dela lá dentro. Claro que não perguntei nada a ninguém, poderia levantar suspeitas depois. Não pretendíamos matar ela. Só tomaríamos o dinheiro e depois íamos soltá-la em alguma rua deserta. Sem agressão física, só terror psicológico.

Esperei e acabei vendo ela do lado de fora do tribunal. Estava usando crachá. Me aproximei como quem não quer nada. Passei por perto e consegui ler o que estava escrito. “Patrícia Vilela - assessora jurídica”. Não era, a meu ver, um alvo ideal para ser sequestrado. Mas então lembrei que ela tem carro e mora num bairro que deve ter o IDH da Noruega. Ademais, Marcos disse que ela recebeu indenização por danos morais.

Pesquisei o nome dela no site de busca “Cadê? E, depois de vasculhar a fundo, vi que o caso dela estava no noticiário. De forma discreta, mas estava. Foi difamada pelo ex-namorado. O cara chamado Michel esbofeteou Patrícia num bar localizado no bairro de Costa Azul, em Salvador. E fez isso enquanto a xingava de tudo quanto é nome. Ela o denunciou e mudou de residência para tentar escapar da perseguição dele. Talvez explique o motivo da sua possível ansiedade social. Processou ele e venceu em todas as instâncias num processo cuja velocidade do “trânsito em julgado” surpreendeu a imprensa e o próprio querelado. Uma assessora jurídica denuncia o ex-namorado violento e ganha processo em tempo recorde. Insólito.

No dia do crime, Marcos se reuniu conosco no hotel e apresentou todo o esquema de modo ainda mais específico do que antes. Desde que tivemos a ideia de meter o cano nessa mulher, já havia se passado três dias. Mas Marcos não acredita que ela tenha gastado toda a grana em alguns dias. Na verdade, estávamos na escuridão. Sequer tínhamos certeza se ela já tinha recebido o dinheiro. Não tínhamos informação sobre acordos entre ela e o cara que a agrediu ou o advogado dele. Sigilo da Justiça. O sujeito também estava sendo alvo de processo penal - lesão corporal, entre outras coisas. Questionei Marcos sobre essa incerteza.

- Cara, eu só sei que ela ia receber a indenização. Não levei em consideração esses detalhes burocráticos. De qualquer maneira, ela deve ter dinheiro. Ela mora num bairro nobre. Deve ter muito dinheiro. A família dela deve ter!

Ele tinha razão e eu cogitei essa hipótese. Talvez teríamos que improvisar. Combinamos que o sequestro relâmpago teria que se tornar sequestro, caso ela não tivesse o dinheiro. Isso envolveria contato com a família, com a polícia. O risco de sermos expostos e pegos iria aumentar.

- Considerei a possibilidade de ela ter escondido o dinheiro dentro da casa. - disse Marcos. - Levar ela para passear de carro não será suficiente. Será necessário alguém entrar na casa e vasculhar cada centímetro lá dentro. Pode ser que ela tenha sacado o dinheiro e escondido em algum lugar. Vamos fazê-la falar. E caso o dinheiro não esteja lá, deve ter outros objetos de valor. Deixem essa parte comigo.

Como Laura tinha dito, Marcos “tinha histórico de crimes”. Ele invadiu residências de mauricinhos soteropolitanos. Havia adquirido a habilidade de encontrar locais escondidos pelas casas como, por exemplo, sótãos escondidos em baixo de tapetes. De fato, a pessoa ideal para vasculhar a residência de Patrícia era ele. Eu e Laura ficaríamos com a refém na nossa estreia como bandidos.

Nove e meia da noite ficamos como tocaia a uns 30 metros da casa. Era preciso o máximo de cuidado para não despertar suspeitas. Provável que as janelas tivessem olhos naquela rua plana, bem asfaltada, com telhados repletos de antenas DirecTV. Estávamos nós três no carro que tinha placa falsificada. A arma estava com Marcos. Ela sairia de uma entrada à direita a uns 10 metros de onde a gente estava. Viraria à direita rumo ao lar. Seria o momento que nos aproximaríamos até dar o bote.

De repente, uma viatura policial. Confesso que o cu piscou. Mas fiz questão de olhar o noticiário de crime nos dias anteriores e não havia onda de crimes naquela rua. Talvez a ronda policial não estivesse tão desconfiada. Passou pelo nosso carro. Quem dirigia olhou para dentro, porém seguiu caminho. Havia dois policiais, um homem e uma mulher. O problema é que estacionou uns 14 metros adiante.

- Mas que inferno! Olha aonde a viatura foi parar. - disse Laura.

- Se Patrícia chegar e a polícia estiver ainda ali, é óbvio que não vai dar para seguir com o plano. A não ser que tenhamos a habilidade magistral de cometer um sequestro bem debaixo do nariz da polícia, sem que ela perceba. Eu não quero correr o risco.

Nove e quarenta e cinco. A viatura estava dez minutos parada ali. A paranoia começou a emergir. Consideramos a possibilidade de estarem desconfiados da gente. Então pegamos o carro e fomos dar uma volta pelo bairro. Mas só tínhamos quinze minutos ou supostos quinze minutos até Patrícia chegar. Sim, daria para voltar outro dia. Só que de tanto aparecermos por ali, isso levantaria suspeitas de forma inevitável. Rodamos pelo bairro da Pituba por uns dez minutos. Voltamos ao local às nove e cinquenta e cinco. A viatura não estava mais por ali.

Aproximamos o carro mais uns cinco metros. Marcos saiu com a arma e se escondeu próximo da casa dela. Tinha que ser ele. Marcos morava por ali pelo bairro. Se alguém o visse de bobeira, não ia desconfiar, a não ser que a reputação dele de criminoso fosse reconhecida entre o pessoal dali. Ele jura que não é.

Enfim, vinte e duas horas. Mas nada de Patrícia. Teria quebrado a rotina? Indo para a casa de outra pessoa? Eu tinha inferido que ela não tinha vida social. Se for uma conclusão errada? Vinte e duas horas e dois minutos. Tudo bem, há atrasos assim, não temos que ser rigorosos na pontualidade.

Patrícia chegou. Colocamos as máscaras para cobrir o rosto. Marcos estava usando uma de palhaço. A vítima ia se aproximando do portão de casa, quando de repente parou, a uns 3 metros. O que houve? Ficou uns cinquenta segundos paradas. E depois fez a volta e tentou o retorno na contramão! Será que ela descobriu que estávamos de tocaia prestes a assaltá-la?

Como eu disse, poderíamos ter que improvisar, então fechamos o carro dela. A freada brusca fez barulho. Marcos veio correndo, apontou a arma e exigiu que ela abrisse a porta do carro. Porra, o plano era não fazer coisas assim para não chamar atenção. Mas saiu do script. Era um sequestro no meio da rua. Deserta como se sabe, o problema é alguma testemunha espiando de alguma casa. Foda-se. Agora tínhamos que terminar o que começamos.

Marcos botou a arma na cabeça dela. “Oi, Patrícia, você sabe o que queremos!”. Ela estava chorando, trêmula, assustada. Havia sido vítima de violência do ex-namorado e agora vivia outro pesadelo, pior. Coitada, mas o ideal era agirmos como profissionais. Marcos a levou até o carro onde eu e Laura estávamos. “Onde está os vinte mil, Patrícia?”. Ela não conseguia responder. Laura entrou em ação.

- Não queremos machucá-la. Só diga onde está o dinheiro!

- Eu ainda não recebi!

- Mentirosa!

- Temos que ser rápidos. Vou pegar o carro dela e entrar na casa. Vasculharei cada centímetro em busca de objetos de valor. Vocês dois já sabem o que fazer. Usem os cartões, o dinheiro pode estar em alguma conta. Saíam pelo bairro com ela.

- Barulho de freio, cara! Talvez não seja uma boa ideia. Nossa ação deve ter chamado atenção…

- Vou ter que arriscar! O dinheiro pode estar lá! E muitas outras coisas!

Marcos pegou as chaves e o carro dela e entrou pelo portão automático da garagem. Antes havia me dado a arma. Eu, Laura e a vítima saímos com o nosso carro. Agora é pra valer. Considerei a possibilidade de algum vizinho ter visto tudo e chamado a polícia. Inevitável. Saímos do bairro. Do nada, ela começou a falar demais. “Pelo amor de Deus, não me matem!” E clichês do tipo. Perdi a paciência e encostei o cano da arma na cabeça dela. Comecei a ameaçá-la de coisas horríveis, até de estupro. Então ela começou a chorar e a gritar alto, a intenção era fazê-la calar a boca, mas a ameaça teve efeito contrário. Enfiei o cano na boca dela. Só assim para fechar a matraca.

Tivemos que acalmá-la para que dissesse a senha dos cartões dos bancos. Ela disse. Laura foi até o banco. Inseriu o cartão no caixa eletrônico e apareceu na tela que Patrícia tinha 80 mil reais na conta. Quatro vezes mais do que esperávamos encontrar. Ela sacou tudo de uma vez. Talvez isso resulte numa movimentação bancária atípica, o que pode chamar atenção da polícia. Mas até perceberem tudo, já estaremos longe.

- Ela tem muito dinheiro! Podemos conseguir muito mais!

- Claro que podemos, Marcos está na casa.

- Você não entendeu! Podemos extorquir. A família dela tem muito dinheiro!

Primeiro ela me convenceu de fazer isso. Agora está me convencendo a piorar as coisas. A pobre da Patrícia estava desesperada. O terror se manifestava no cenho dela. Peguei meu Nokia 3330 e liguei para Marcos. Chama, chama, ninguém atende. Será que foi pego pela polícia? Talvez alguém tenha chamado depois de ter ouvido o barulho da freada. Talvez algum fofoqueiro filho da puta botou a cara da janela e viu sua vizinha ser sequestrada. A polícia foi lá e pegou Marcos ou até o matou?

- Vamos voltar lá para ver!

- Tá maluca?

- A gente fica de longe. Se tiver polícia perto, saberemos antes mesmo de nos aproximarmos.

Voltamos ao bairro da Pituba. Continuei ligando para Marcos, nada de atender. Quando entramos em uma das avenidas que levavam à casa da vítima, um carro saiu de outra rua e pegou o mesmo sentido que a gente. Se aproximava cada vez mais, até que começou a ser agressivo, batendo no fundo do nosso carro.

- Mas que porra é essa?!

Era nítido que o veículo estava tentando nos tirar da pista. Quando chegamos numa mão única, o carro que tentava nos derrubar ficou ao lado. O vidro desceu e alguém disparou com arma de fogo de lá de dentro. O alvo era quem estava no banco do motorista. Eu. Laura ficou horrorizada. Agora havia três pessoas desesperadas dentro do carro. Quem é esse sujeito e por que está tentando nos matar? Será polícia? Mas polícia não age assim. É coisa de bandido. Será que é um concorrente, mais alguém que está querendo a indenização da moça?

Foi então que notamos algo grotesco. O carro adversário é o de Patrícia! O mesmo que Marcos pegou e entrou na casa para parecer que era a dona entrando. Então é ele? Está tentando nos trair? Comecei a revidar. Primeiro bati meu carro na lateral do carro dele. Em seguida disparei. Duas vezes. Errei um tiro. O outro acertou o para-brisa. Talvez no banco do carona, não deu para ver. O infeliz continuou agressivo, dessa vez tentava fazer o nosso carro capotar. Cerca de dois minutos depois, o carro foi desacelerando, perdendo o controle. Bateu em um poste, não a ponto de derrubar.

Parei o carro. Ficamos olhando de longe. Passou três minutos. Alguém abriu a porta do carro de Patrícia. Era um homem, mas não era Marcos. A vítima estava chorando, porém depois de ver o homem cair de longe, desabou de vez. Saí do carro e me aproximei do sujeito. Ela estava sangrando. Foi o tiro que eu dei. Laura se aproximou. Peguei a identificação e vi que o cara era advogado e se chamava Michel. Era o ex-namorado de Patrícia.

- Como esse cara sabia que você estava conosco? - gritei, apontando a arma para a cabeça dela.

- Eu não sei! Eu não sei! Talvez ele estivesse na minha casa me esperando!

- Mas você mora sozinha, porra!

Na época que ele a perseguia, inúmeras vezes invadiu a residência dela. Não se sabe como ele conseguia subir pelo muro imenso e com cerca elétrica. Ela ficou com tanto medo que passou um tempo com a família. Quando voltar a morar na própria casa, pagou caro por um sistema de alarme. É provável que segundos antes de entrar em casa, ela foi alertada de que tinha um invasor. Foi por isso que ela desistiu de entrar naquela hora, minutos antes de ser sequestrada.

- Então significa que o Marcos…

Teríamos que voltar para casa de Patrícia? Saber o que houve com Marcos. O problema é que o advogado estava morto no meio da rua. Sim, eu matei uma pessoa. Empresário, sequestrador, assaltante e homicida. Um polímata! Foi legítima defesa, eu deveria estar com remorso ou embasbacado, mas estava mais preocupado em não ser pego. Pegamos o corpo do cara e colocamos na mala. Coisa de filme. Saímos dali logo, provável que alguém viu mascarados enfiando um cadáver no carro. Vai chamar a polícia.

Desistimos de ir até a casa de Patrícia. Sabe se lá que diabos rolou. Melhor nem saber, talvez Marcos esteja morto. Saímos do local.

- Olha só, moça. Meu comparsa apagou o seu ex-namorado. O desgraçado tornou a sua vida um inferno. Agora não mais. Ele já era. Nos agradeça por isso. Depois que pegarmos mais dinheiro, você estará livre, nunca mais te incomodaremos de novo. E você está livre para sempre de um relacionamento abusivo. Então fica calma. Precisamos de você calma para que tudo que planejamos não se perca. Só isso. Engula o choro por um momento. Limpe a cara, pareça alguém tranquila. - disse Laura, especialista em deixar os outros confortáveis.

- Os oitenta mil é mais do que suficiente. Alguém escutou a batida do carro e vai chamar a polícia. Ficamos expostos ali na rua. Vamos ter que liberá-la agora. Ela não viu nossos rostos. Deixamos ela e o cadáver em algum lugar. O resto é problema da polícia.

Laura era gananciosa, mas notou que exacerbar esse pecado poderia nos colocar em risco, então acatou minha ideia. Deixamos Patrícia e o cadáver do ex-namorado dela num bosque próximo ao bairro. Depois caímos fora.

Procuramos um hotel a uns 10 km. Era necessário ficar bem longe do local dos nossos crimes. No quarto, fizemos sexo, porém não consegui deixar pensar no Marcos. Brochante. A verdade é que ele era um homem morto. Ele entrou na casa e topou com o ex-namorado invasor de Patrícia, que estava armado. Deve ter levado um tiro. Só o assassino saiu e nos perseguiu. Sobre isso, surgiu-me uma dúvida. Como o tal do Michel sabia sobre o nosso carro? Ele veio com tudo, parecia estar de tocaia, pronto para fazer uma emboscada.

Laura também pensou nele, eu acho. Ou talvez fosse a tensão do crime, que acabou bem-sucedido. Os bicos dos seios dela sequer estavam duros, ela não estava excitada.

Evitamos ligar a TV. Talvez o sequestro relâmpago de Patrícia ainda sequer havia sido descoberto. O problema era sobre o que tinha acontecido na casa dela. Marcos contra o ex. Na madrugada pegamos a estrada com os 80 mil na sacola. O destino era o Sul da Bahia.

Com aquele dinheiro iria recuperar a pousada, pagar funcionários, quitar dívidas. Só que não poderia gastar tanto dinheiro assim em poucos horas. Laura passou o dia seguinte ligando para a casa de Marcos e ninguém atendia. Então tudo veio à tona. Nossos rostos apareceram em noticiários da Bahia como sequestradores e assassinos. Não apenas os rostos, como também nossos nomes completos. Estávamos sendo considerados foragidos. Só descobrimos isso quando a polícia estava na nossa porta, horas depois do crime. No mesmo dia em que fomos denunciados na TV, fomos pegos. Nem deu tempo de fugir. Quando nos viu na TV, Laura desabou em lágrimas.

Alguém abriu o bico. Ouviram barulho de tiro e gritos na casa de Patrícia na mesma noite do assalto. A polícia tenta decifrar ao certo o que ocorreu ali, mas eu sei. Marcos, nosso comparsa, invadiu a casa e topou com o ex-namorado da dona da casa que atirou nele. Não foi um disparo fatal.

- Quem é você? Onde está Patrícia?

- Vai se foder!

Michel tinha sido policial. Tinha conhecimento a respeito de métodos de tortura para fazer vagabundo falar até o que não fez. Uma prática corriqueira vista em manuais de tortura é arrancar unhas. Com alicates, bastou ele arrancar duas unhas e queimar o saco com faca aquecida no maçarico e Marcos contou todo nosso esquema, descreveu até o carro onde estávamos. Por isso, ele já sabia. Depois ele deu mais dois disparos no torso. Marcos não morreu. Duro na queda. Vizinhos escutaram disparos e gritos e chamaram a polícia. Michel saiu a tempo. Não sei que diabos ele foi fazer lá, mas se estava armado, talvez tinha ido matar a ex por quem era obcecado. Porém se tornou a variável que fodeu nosso plano. Isso era imprevisível. Por que ele nos perseguiu? Não sei. Talvez pensou que se matasse eu e Laura e salvasse Patrícia, ela o considerasse herói e o aceitasse de volta, apesar de tantos abusos.

Mas o que interessa aqui é Marcos. A polícia o socorreu e viu no seu celular inúmeras chamadas minhas. Pouco depois, na mesma noite, Patrícia foi resgatada. Ela reconheceu Marcos pelas roupas e o acusou de ter colaborado no sequestro relâmpago. O nosso comparsa estava puto porque não tínhamos voltado para pegá-lo ou socorrê-lo. Então ele abriu o bico e nos entregou fácil. Contou todo o esquema em troca de ter a pena amenizada.

A morte de Michel causou comoção. Era visto como um cidadão de bem, trabalhador e afável. Muita gente culpava Patrícia pela própria violência que sofria. A vitória dela nos tribunais talvez tenha sido influência de seu pai, um notório desembargador que mexeu os pauzinhos, dando uma celeridade nunca vista ao processo que favoreceu a sua filha. O pai de Michel, um juiz, também exerceu sua influência na imprensa. Logo o filho foi visto como um herói que tinha derrubado o marginal Marcos e morreu para salvar a ex-namorada. As marcas de tortura? Ninguém quis saber de nada.

A polícia ligou os pontos. Viu na minha casa os boletos, os problemas com encargos trabalhistas. Deduziu de forma correta que eu e Laura estávamos precisando de muito dinheiro para salvar a pousada. Então arquitetamos o sequestro relâmpago. Como não havia passado nem 24 horas, fomos presos em flagrante e depois transferidos para presídios distintos.

Meu advogado disse que Laura resolveu colaborar com a polícia e iria admitir a culpa. Contou tudo que aconteceu. Ou quase tudo. Alterou a parte em que matei Michel em legítima defesa. O advogado dela aconselhou a não divergir da versão que colocava esse sujeito como herói. Michel teria apenas cometido a imprudência de nos seguir. Quando eu vi que ele nos seguia, teria tentando tirar ele da pista a todo custo. O resultado foi o tiro no para-brisa que acertou o peito dele, matando-o.

Logo a imprensa estava noticiando que eu era o mentor do assalto. A pousada estava em meu nome. As dívidas eram minhas, não de Laura. Eu tinha mais motivos para cometer os crimes do que ela, que teria sido cúmplice.

Dessa forma, dos três bandidos, eu peguei a pena mais rigorosa. Fui condenado por homicídio, sequestro, ameaça e extorsão. Totalizando 24 anos de prisão em regime fechado. Laura pegou 12 anos e respondeu pelos quase mesmos crimes que eu, exceto assassinato. Marcos, o delator, pegou quatro anos de cana.