Lembre-se você é mortal.

Castigando impiedosamente os paralelepípedos e os olhos dos clientes da barbearia o sol de fevereiro ardia em seu zênite, mas não demoraria muito para um mar escarlate arrefecer as pedras e o coração em brasas de Regismunldo. O jovem aspirante a poeta viu sua pretensa entrada no rol dos ilustres literatos de Salvador, dissolver-se como espumas lavadas após uma possante canetada. Há algum tempo arrendou o suficiente para uma pequena organizar e publicar sua coletânea de versos, contos e crônicas sob o título de "Floreios tropicais: águas de meninos". Bastaram então poucos dias para seu nome sair nas colunas de opinião de um jornal popular, Regis já se via entrando, ocupando uma cadeira da Academia Brasileira de Letras e bebendo o doce sérum da imortalidade, certamente era o que aconteceria com o súbito sucesso do rapaz, que a essa altura já dava entrevistas e distribuía autógrafos.

Seu algoz depois de uma longa estadia em Paris crescendo exorbitante para os lados com a fina confeitaria francesa, deleitava-se com as novidades literárias e em suas tessituras mordazes a respeito destas. Resolveu de última hora voltar a sua terra natal ao receber uma mensagem de correio eletrônico mostrando como um sujeito estranho estava invadindo e irreparavelmente maculando o seu sacrossanto império. Dorgival Gouveia Marmelos mal havia colocado os pés no desembarque do aeroporto e já estava envolto num aglomerado de repórteres inconvenientemente apontando seus microfones, fazendo inúmeras e repetidas perguntas a respeito do tal livro e de seu autor, irritado limitou-se a dizer apenas que na atualidade qualquer um podia ser poeta, já que aqui era o Brasil.

A decisão da entrada se Regismundo na eternidade agora estava muito perto de ser tomada. Na mesma noite a grande expectativa ruiu penosamente, o "satracobaco¹" escrevera a crítica mais ácida que aquela coluna já havia publicado. Pouco a pouco o nome de Regis foi minguando da boca do povo, entrevistas em estados do Sul foram desmarcadas, exemplares outrora esgotados passavam a acumular volumes e poeira, a editora fechou as portas e reabriria meses depois sob uma nova e luxuosa fachada. Regismundo desapareceu por um longo tempo não tardando surgir especulações sobre o paradeiro do poeta arruinado, tabloides diziam que ele estava desfrutando do enriquecimento rápido numa temporada no exterior, colunistas tratavam o sumiço como exílio e os sensacionalistas afirmavam que o pobre havia dado cabo da própria vida. O que ninguém sabia mesmo era que o homem havia intencionalmente.

O que ninguém sabia mesmo era que o homem havia intencionalmente mudado, passou exatos doze meses em metamorfose, o rosto, a fisionomia, as roupas o fizeram um distinto cavalheiro digno de frequentar a rua Chile, o Rio Vermelho, e tantos outros espaços prestigiosos, era agora Edmundo Miranda, empresário dono de fazendas e terras no interior da Bahia ao menos era o que corria à boca miúda. Naquela tarde quente, o Dr. Edmundo entrou na barbearia para alinhar sua barba e bigodes, não parecia estar muito à vontade, constantemente olhava o relógio e desviava o olhar para rua, acompanhando a extensão da avenida como quem procura ou espera por alguém, como era o terceiro da fila de espera, saiu para comprar um jornal, reconheceu na banca um exemplar de capa colorida e ainda embalado em plástico bastante empoeirado, perguntou ao jornaleiro o valor do livro, mas o homem o ofereceu gratuitamente dizendo se tratar de um lixo sem valor aparente.

Edmundo não controlou sua raiva e chutou o estande de revistas, o comerciante assustou-se e perguntou se estava tudo bem com o cavalheiro, ele não respondeu, apenas jogou algumas notas e saiu dali pisando duramente. Mais uma vez esquadrinhou a rua e notou o enorme "mundrovengo²" vindo ao longe, do lado oposto vinha caminhando um rapazinho em farrapos, trazia na mão uma garrafa de bebida, em suas calças rasgadas, uma protuberância balançava na medida dos seus passos cambaleantes revelando um bolo de dinheiro, ao tempo que aqueles dois universos opostos se aproximavam Edmundo retornava a barbearia com seu antigo livro e jornal nas mãos, entrou e sentou-se contemplado a rua que ficava agora um tanto quanto vazia.

O som de risadas encorpadas junto de um forte e irritável perfume almiscarado misturado a tabaco invadiu o estabelecimento quando Dr. Marmelos passou, fitou aquele distinto e desconhecido homem sisudo observando a rua com os olhos de um corpo sem alma, parou e perguntou-lhe as horas. Edmundo despertando do devaneio respondeu-lhe:

- Memento Mori.

Mal completou a emblemática frase em latim quando viu o rapazote maltrapilho romper a garrafa no chão e afundar profundamente o vidro na barriga do velho crítico, girar, tirar e sair correndo. Os paralelepípedos chiaram quando o sangue lavou a calçada, em meio aos gritos histéricos das mulheres, os berros dos comerciantes e os curiosos que começavam a se juntar, Edmundo levantou as pressas e tentou socorrer o homem, olhou-o nos olhos e antes de morrer, Dorgival reconheceu o tal autor pretensioso naquele distinto moço, tentava falar-lhe, pedir perdão, mas golfava sangue a cada tentativa. Edmundo lentamente abriu o paletó do satracobaco, enfiou o livro em seu bolso e furtou-lhe a dourada caneta, fitou a face pálida do defunto por alguns minutos enquanto fingia estancar o buraco nas entranhas e aguardou a ambulância chegar.

Francisco Grandiel
Enviado por Francisco Grandiel em 25/03/2022
Reeditado em 25/03/2022
Código do texto: T7480276
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