Tonny Ramos – verborrágico

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Detetive em uma cidade do Leste, Leste norte-americano, bem entendido.

Filho de imigrantes brasileiros, oriundos do norte, norte de minas Gerais, é claro, nascido nos Estados Unidos, provavelmente em estado embrionário, atravessou a fronteira na barriga da mãe. O pai já estava em solo estadunidense trabalhando nas obras de manutenção do subway aguardando – nem tão ansiosamente assim - a família que nem tinha certeza se voltaria (ou mesmo se gostaria de) encontrar; imigrar tem dessas coisas de incertezas.

Por que Tonny Ramos? Bom, o pai era Antônio Ramos, ele era Antônio Ramos Filho. A redução para Tonny foi natural.

Se algo a ver com o ator brasileiro?

Talvez, de uma forma bastante remota – o pai por vezes ao se lembrar de brasileiras coisas dizia que quando vivia no Brasil assistia vez em quando uma novelinha na Tupi onde a personagem principal (vivido pelo ator em questão) tinha esse nome (que remetia ao apelido de seu filho). A novela era “Os amores de Bob” e o Bob aí do título sempre terminava preso numa geladeira, daquelas grandes tipo câmara fria de açougue, parece que era isso, ou ao menos era desses pequenos detalhes que o pai recordava, mas o mais exato que a memória guarda mais forte é que o nome – a redução do nome - veio mesmo de apelido normal na escola onde falar Antônio não era muito simples, exceto para os filhos de imigrantes que eram maioria mas tinha um ou outro filho de norte-americano pobre, que também existe norte-americano pobre – canadense ou estadunidense da gema; mexicano é pra lá de sabido - embora muita gente pense que é lenda. Ah, e também o pai se referia muito vagamente a um tio Toni que morou um tempo na região de Londrina, no norte do Paraná; sabia pouco ou nada desse parente distante, mas que teve isso teve.

Chegar a detetive? Bota caminho tortuoso nisso! O fato de ser filho de imigrantes, mas falar inglês com desenvoltura (imigrantes em suas casas normalmente conversam na língua pátria, dificultando o aprendizado, Tonny contrariamente somente se comunicava em inglês e os conhecidos diziam que ele era “verbose”) e ter um certo charme meio puxado pra galhofa, pro desinteresse, despertaram atenção – creio que a característica da verborragia também - quando ele se imiscuiu nos meandros da lei através de indicações e testes e tal.

Bom relacionamento com a rapa da bandidagem local também ajudou. Não que pendesse para este lado obscuro das ruas, mas sabia dele e tateava bem, nem tinha inimigos e nem tinha amigos, era no trato, sem muita maldade. Impunha respeito (médio) e respeitava (muito); sobrevivia por ali!

Não tinha sido sempre 100% dentro da lei, mas nunca fizera nada que sujasse sua ficha – beirou, triscou, a palma da mão até que coçou, mas não pegou, digamos assim, ou se pegou ninguém viu, percebeu. Fenômeno e tal esse menino!

O andar era cambaio, o jeito maneiro, o falar cantado – memórias de uma Minas Gerais de narrativa, resquícios de um tempo / lugar que nem conheceu, só de ouvir contar. Vontade conhecer tinha nenhuma que se o pai fugira de lá coisa muito boa não podia ser. Pensava em solidão.

Conhecia “Bridges” do Milton Nascimento / Fernando Brant, que o pai era fã, em dueto com Sarah Vaughan – achava aquilo lindo, de uma sonoridade absurda, mas reforçava a ideia de que Minas era lugar ermo, das furnas, da solidão; tinha um medo inexplicável da solidão. De um dia ser sozinho.

Sai à rua pra ver gente, pra ouvir o burburinho, talvez pra fugir em sol menor com Bach.

Contradições. Percebe-se na personagem uma elevada dose de cultura facilmente explicável. O pai, trabalhador braçal no novo país, tinha sido professor no Brasil. Essa é uma linha que transparece nos imigrantes, contrariando o que normalmente se pensa a maioria é composta por pessoas letradas, quase sempre ou sempre inconformistas que se recusam entender o motivo de, sabendo tanto das coisas, serem tão mal remuneradas, então partem que partir é o que resta ou então permanecer no limbo, no sub qualquer coisa, na esperança do que virá, não, não virá, virá claro que virá – e a vida não anda.

As ruas da cidade eram como todas as ruas das cidades. Um pouco sujas, um pouco feias com tiquinhos esparsos de bonitas.

Havia as flores nos jardins bem cuidados – havia também o cheiro de carne crua (??).

Não sabia o motivo, mas não via – via sim, mas bem poucos - cães, fato intrigante num mundo tão pet.

Andar por ali não era nada demais, passagens apenas, mas era a sua cidade, crescera naquelas ruas, conhecia cada cantinho e isso, esse conhecimento de área, era agora fundamental em sua atividade e sua atividade era caça. Era levantar seres fugidios. Era saber de seus passos e, se possível, engaiolá-los. Não sentia prazer nem arrependimento, somente fazia o que devia ser feito, razoavelmente bem feito quando dava e se sustentava com isso. Era um trabalho como outro qualquer; nunca lhe passara pela cabeça a ideia de ser herói, era um funcionário.

Até o dia em que espirrou o taco!

2

A manhã era fria, vento. Na calçada simétrica a sombra se projetava alongada. Apressava o passo afim de não perder a quentura, ou a memória da quentura, da cama que deixara há pouco. Apenas a cama e seus lençóis desarrumados. Vivia só e isso lhe bastava, temia a solidão, mas de uma outra forma, conceitual, dos grandes espaços vazios (das enormes plantações sem fim, das geleiras, do espaço sideral, das profundezas da terra, das áreas sem saída) não essa de estar sozinho (de solteirice, sem amarras sólidas) que prezava acima de tudo a liberdade, a solteirice e suas mil e uma possibilidades, os inúmeros encontros em bares sórdidos, em esculhambados locais periféricos decrépitos, decadentes, mulheres que se garantiam. Bebida barata nos bares à beira do cais e rostos pintados molhados ou de chuva ou preferencialmente de lágrimas; o fazer pelo prazer.

Não era um homem - jovem, bastante jovem - do seu tempo. Tinha um pé no passado, estava sempre meio que uma ou duas ou mais décadas atrás – tinha uma fixação, entre outras, por “The Continental Op” by Dashiell Hammett. Nem por isso dava o braço torcer; não buscara uma vida detetivesca por isso, apenas aconteceu. Claro que o inusitado de ser íntimo de velhas histórias assim ajudara na decisão, mas não idealização, não era sonho de menino. Ah, o “Falcão Maltês”? Bem, deixa pra lá. “Entrega em noon street”, de Chandler, amava isso – aquele clima todo, ruas negras, pessoas que não se materializavam, sombreavam por ali como flashs. *“O conjunto, atrás das cortinas lá adiante, tocava, num lamento doloroso, uma canção de Duke Ellington, uma melodia desesperançada de metais sufocados, violinos amargos”. Poxa!

Resumia seus pensamentos, tracionava onde dava e beliscava um bacon com fritas também, prático.

Seu caminho era semiacabado, buscava o sentido de nada, percebia apenas o pisar no chão, ilusão era o depois, o depois de amanhã. Estava, agora, nesse instante, em seu elemento. Caçava informações sobre um suspeito de furto, não que o fizesse com forte ímpeto, em tempo integral, apenas bisbilhotava aqui e ali. Ao cabo chegaria, sempre chega quando há outros interesses em jogo. Esperar e olhar, era assim.

Entrou na Central. Um cumprimento geral, nenhum em especial. Quando o inspetor-chefe chegasse aí sim, que uma certa demonstração de respeito (respeitava muito) sempre caia bem, acertava melhores casos (menos perigosos se possível). Casos intrincados, “deixa pros outros”!

As horas passavam, já no quinto café foi aumentando o diz que diz, no ar um sentimento inexplicável. As vozes na Central de Comunicação excediam o tom. Aquele não era um dia típico, alguma coisa acontecera pra enovelar os fatos.

3

A mãe, uma pessoa a parte.

Quando o pai – após anos de preparação, mais mental do que financeira, que dessa parte tinha pouco a preparar – finalmente partiu, e partir naquele tempo distante não era tão complicado como agora, não era essa aventura louca que termina muitas vezes nas mãos de coiotes enlouquecidos, era só pegar um avião, descer em solo estadunidense, fingir que ia voltar e se perder na multidão, a mãe desesperou. Até então o pai falar em partir era motivo meio que de troça “vai nada, tem medo até de subir em barranco, que dirá em avião”, “deixar a boquinha na escola pública desasnando esses moleques daqui pra ir atrás de dólar? Espera sentado”, “aquele lá? Naquela frouxidão que cansa só de olhar pra ele, vai nada!”. E não é que foi mesmo? Num avião da Varig, lá foi ele voando a jato pelos céus.

Deixou no norte de Minas a mulher, sem nem saber que estava em “estado interessante” como se dizia à época, e uma filha de doze anos que recendia a melissa. No país estrangeiro sua vida não teria sido fácil se não contasse com a sorte, mas contou. Nem tinha muitos percalços pra ilustrar prosa. Razoável domínio da língua, saúde boa, um que outro conhecido – por correspondência, mas que corresponderam à realidade que “venderam” – pra suavizar (fato raro entre imigrantes, inúmeras narrativas demonstram que os que lá já estão costumam não facilitar muito, ou mesmo nada, para os recém-chegados; antes querem é que voltem pra casa o mais breve possível) ajudou muito. Em questão de dias estava acomodado e empregado, sub qualquer coisa ainda, mas empregado. Comia, dormia, bebia, pouco ou nada de álcool, mas já fazia o suficiente pra viver.

Dono de cultura acima da média, por ali era bem visto. Ajudava os que tinham mais dificuldades com o idioma, dava uma forcinha extra quando o tema era assimilar melhor as diferenças do país em que viviam. Reforçava ideias e projetos e, até pelos anos de magistério, aprendera que as pessoas nem sempre estão interessadas em aprender nada até porque aprender requer mudanças e não é isso que as pessoas querem; querem apenas ouvir e amoldar o que ouvem aos seus próprios pensamentos, então ele fazia exatamente isso “entendia o que o próximo queria e dizia isso pra ele com palavras que o tornavam feliz, imaginando que ele – o próximo – estivera sempre certo e o mundo errado”. Entender o Ser Humano? Passo.

Conhecera algumas garotas, mexicanas, colombianas, mas falar sobre isso “never”. Não importou, não incomodou, foi um tempo bom, só isso.

Um dia (o pai mandou sempre um dinheirinho pro Brasil, animando a esposa a “vir também”, mas jamais acreditou que isso se tornaria real) recebeu uma carta. A mulher viria se juntar a ele. Danou-se, estava de caso firme com uma garota da Guiana; era só o que faltava. Vinha mandando dinheiro – até em quantidade razoável – mas não era “de verdade” pra ela vir também. Não é que a danada deixou tudo de lado, até a melissa – quer dizer, a garota que recendia a melissa, mas que se chamava Ethel e foi deixada com uma tia-avó pra não carregar o orçamento - e embarcou também?

Tão pouco tempo de liberdade e o cabresto curto retornava! A mulher chegou pra dar um basta na vidinha boa que ele vinha levando, agora era osso.

O reencontro teve nada demais, mas no final das contas ele ficou feliz. Soube da gravidez, levou um susto, mas não tinha muito com o que se preocupar – um filho americano, nascido ali, seria uma mão na roda pro “green card”. Segue o jogo!

E a melissa, quer dizer, a Ethel? Pensa nisso depois, ora!

A garota da Guiana? Matutou, matutou e deixou pra lá. A mulher nem falava inglês, ia entender nada, só sabia pensar em português, era só rolar o tempo que essas coisas são essas coisas e ficam por isso mesmo. Quem desconversa explica muito, o resto é mito.

Importante é que a partir de agora tinha quem cozinhasse, lavasse, passasse, economizasse (com as coisinhas dela, bem entendido), trouxesse a casa limpinha e arrumadinha sem cobrar nada por isso e ainda vadiasse, como se diz lá na Bahia e no norte mineiro também há quem fale.

4

Melissa / Ethel, vai ficando por aqui.

A garota cresceu, se enrolou e virou dona de casa bem comportada. Não faz mais parte da história. Perdeu!

5

O caso na Central Cop

Caiu como uma bomba. O inspetor-chefe fora vítima de um “secuestro exprés”. Impensável, mas era verdade. Paranoia total, corre corre pelos corredores. Caos instalado, alguém tinha que tomar as rédeas e esse não era o perfil do nosso Tonny, mas alguém achou que era e ele, verborrágico como sempre, desandou falar. Criou-se meio que sem querer um clima de liderança. Outras autoridades foram chegando, mas o bote inicial e absolutamente inesperado o colocou na crista, um dos chefes (excelente administrador, burocrata, mas que entendia patavina de ruas) designou Tonny e equipe (do nada foi “promovido” a líder de equipe) pra ir pras ruas resgatar o sequestrado e, de preferência, sem alardes com a imprensa. Escândalo sobre policial, ainda mais com cargo de chefia, sendo sequestrado quando sua missão era impedir crimes do gênero, era tudo que a polícia não precisava e não queria. A ação deveria ser na medida do possível – e do impossível até – “na moita”.

Lá foram eles. Tonny no comando, sem saber exatamente o que fazer ou pensar. Sabia de golpes miúdos, de cafetinagens, batedores de carteiras (Pickpockets), mas de sequestro....

Foram para a região do cais interrogar os de sempre, quem sabe não surgia uma informação importante. Surgiu!

Foi até fácil demais. Corria à boca pequena que havia um corpo no paredão, aos pés do paredão, no vale. Daí constatar que era o chefe foi um pulo.

Desandou, o que era um crime passou a ser “O crime”, crime raríssimo naquelas plagas e isso daria uma dor de cabeça enorme, acabava assim o sossego das manhãs calmas. Droga!

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Perseguição. A tecnologia facilitou, uma informação aqui outra ali, e a perseguição teve início. Os matadores do policial eram amadores, nada deixava claro o motivo, mas foi matar pra roubar ou roubar e matar. Não se tratava de nenhuma conspiração, aconteceu por acontecer, às vezes acontece assim. O mundo desandou pra cima deles e teria fim, que viver agora não seria mais o mesmo. Alucinada perseguição na estrada tosca. Um pneu estourado, carro no mato; correria.

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Desfecho

Na perseguição, um dos bad guys reagiu de forma mais afrontosa que os outros, parou repentinamente, arma na mão e atirou. Bala assoviando a centímetros da orelha do Tonny, isso o enervou mais do que o costume, revidou e, havia essa probabilidade já que outros também atiraram, foi uma chuva de balas, acertou (caso a bala “matadora” tenha sido realmente a sua, era a primeira baixa na humanidade que propiciava, mas neste instante absoluto não sentiu nada, nada). Um breve cambalear, ainda em pé, o cara caiu. Os outros debandavam, mas não iriam longe. A parada estava concluída. Ponto pra Lei!

Cautelosamente se aproximaram do sequestrador que agonizava, percebendo que ele balbuciava alguma coisa, Tonny e demais policiais (na verdade, Tonny, que estava líder, deu o primeiro passo embora soubesse que estava descumprindo regra, não uma regra escrita, mas um sentimento inexplícito que cabia a cada policial. Fora exaustivamente orientado no Centro de Formação a evitar aproximar-se de moribundos – especialmente quando ele é que despachara para o outro mundo esse moribundo, o que poderia ter ocorrido nesse episódio – sob pena de ouvir coisas que levaria consigo para sempre e, pior, ter aquele olhar, que evitasse olhos nos olhos, para sempre a atormentá-lo; esquecer o olhar do morto. Jamais!”

Se aproximaram e tentaram ouvir. O projeto de bandido dizia baixinho “não conta pra minha mãe, não gosto que ela chore”. Tonny sentiu pena ou algo parecido, abaixou e perguntou “como é seu nome?” A resposta, se ouviu, só ele ouviu, bem baixinho, e aquela vozinha sumida, balbuciante insistia “não conta pra minha mãe, ela vai chorar e não quero que ela chore”. Tonny não sabia o que dizer, pensar. E o quase menino deu o último suspiro, um leve tremor, convulsionou e foi, talvez pro céu, quem sabe um céu comunitário desses que aceita imigrantes, terráqueos alienígenas, um céu qualquer de mentirinha.

Tonny saiu na chuva fina que se iniciara e, pra não chamar atenções desnecessárias, desandou falar no celular (desligado) como se houvesse alguém do outro lado. Verborrágico, falava sozinho. Falava, falava e falava; nessa insana verborragia toda, um pensamento lhe passava pela cabeça “o menino recém-morto mostrara preocupação com sua mãe, ele, se fosse com ele, se fosse ele, se preocuparia com seu pai. Era muito mais ligado ao pai, a mãe que chorasse, o pai não”.

Não era supersticioso, religioso, cioso de nada enfim, mas lá no mais escondido da alma ansiava, sem saber bem o motivo pra que nenhum estudo de balística confirmasse, pra que nenhuma tecnologia trouxesse à luz de que arma partira a bala exterminadora. Ele nunca quis matar ninguém, especialmente alguém que a ele se assemelhava tanto, um garoto, ambos produtos de uma América Latina miserável que implorava pra sobreviver e o máximo que conseguia era sub viver, arrebatando migalhas aqui e ali.

Pensamentos mil, desconexos, seguiu andando e falando. Andando e falando. Falando; falava mais que pobre na chuva.

*Trecho de “Entrega em Noon Street’, de Raymond Chandler; página 162 – coleção L&PM Pocket – volume 772

Luizinho Trocate
Enviado por Luizinho Trocate em 25/02/2022
Reeditado em 20/03/2022
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