Infortúnios Afortunados

Eu fitei o vidro que cobre a mesinha de sala na minha frente, especificamente analisei o meu reflexo entre as fotografias e os recortes de jornais espalhados por cima. Agora, que pela a primeira vez desde muitos anos atrás pareço de fato me enxergar, não me reconheci. Trêmula, peguei uma das fotos: eu e Matt, numa tardinha à beira da praia, no segundo dia da nossa lua-de-mel. Matt foi a única pessoa que enxergou em mim o valor que em algum ponto todos fantasiamos, e passei a me ver através dele. “Laura, você fica linda ao natural sem essas maquiagens,” “Você não precisa de saias curtas ou decotes pra ser linda, Laura,” “Seus cabelos são tão lindos na cor natural, meu amor,” e então aos poucos eu parei de ser vaidosa e, em pouco tempo, me entreguei às totalitárias graças dele. Sem ter forças de tentar, eu fitei um dos recortes de jornal — “MATTHEW MCCALL MORTO” — e, sem perceber, uma lágrima fluiu de mim golpeando quente o meu braço. Eu fitei, desconcertada, a mulher na minha frente, sentada curvadamente me observando voraz como se ansiasse entrar na minha cabeça e vasculhar cada canto do que eu guardo e, dado que é uma repórter, eu não espero diferente. É a primeira, dentre todos os repórteres que me afugentaram completamente lá fora ao ponto de uma fobia, com quem aceitei enfim conversar. Nós, ambas eu e ela, já tínhamos passado dos estágios preparatórios e iniciais de coação por parte dela em me fazer abrir o bico. Ela me perguntou sobre o meu início com Matt, todos os passos até o altar, até a nossa tentativa de construir uma família. Eu solucei algumas lágrimas na parte da família. Matt e eu tentamos de tudo pra construirmos a nossa, até descobrirmos que éramos inférteis, e como nada pode ser perfeito, isso manchou o nosso matrimônio. A repórter, de nome Emily, tentou contornar a minha tristeza contando aleatoriedades sobre os dois filhos que ela tem e que como sendo mãe viúva pode ser trabalhoso, ela me contava coisas divertidas que uma mãe passa com filhos e as absurdas também, coisas que eu poderia nunca saber, mas eu quis saber mais de como era com ela. Talvez tenha sido essa abertura que me coagiu a confiar nela pra me abrir, somos duas opostas dividindo um mesmo espaço. Fitei a foto de uma garotinha sorridente ali no meio e, enfim, comecei a me abrir aos viés pelos quais ela estava ali. O nome da cuja garotinha é Rose, e o declínio do nosso matrimônio. E o de Matt. Aquela garotinha, de apenas 5 anos. Sequestrada. Matt quem raptou. Por mim, por ele. Pra tentar tirar a mancha no nosso casamento sobrepondo com outra pior. A mancha se tornou vermelha rubra tanto quanto as sirenes das viaturas policiais ao cercarem a nossa casa com armas e gritarias dirigidas pra Matt assim que ele saiu pra fora segurando Rose envolta num braço na frente do corpo dele e com uma faca rente ao pescoço franzino dela enquanto ela soluçava chorosamente clamando pelos os pais. Não haveria clemência, o tiro foi certeiro na testa dele. De dentro, da sala de estar, enquanto eu tremia prostradamente como uma árvore num terremoto prestes a perder as suas fundações e raízes, ouvi o estalo do tiro, senti a bala, e desfaleci da consciência junto com o meu amado. Quando acordei, eu não estava mais viva como antes...

...não tão viva quanto me sinto agora. O toque da mãozinha inocentemente franzina dele na minha me religou em adrenalina. Não foi difícil descobrir mais sobre aquela repórter, Emily. Não foi difícil me passar pela a babá do filhinho caçula dela ao buscá-lo na creche que Emily o deixa enquanto caça por boas novas, bastou uma peruca e uma identidade falsa. Eu tenho um tato absurdo com crianças, ele nem mesmo resistiu a mim. Eu tenho o dom maternal, e Matt sabia, eu sabia, e eu não poderia admitir ser desafortunada justamente na maternidade. O que não sabem, nem Emily nem a polícia, é que foi eu quem coagiu Matt a sequestrar aquela garotinha. Eu planejei, plantei a semente, e cultivei. Um homem que te enxerga e ama é um homem que fará de tudo pra te manter. Eu investiguei em parquinhos, arredores de creches, até encontrá-la, e ela era perfeita, foi amor maternal à primeira vista. E ele, oh, meu amado Matt, ele provou o valor que enxergava em mim ao se sacrificar no meu lugar. “Você merece uma segunda chance,” foram as últimas palavras dele sorridente pelas lágrimas no seu rosto antes de se arrastar com Rose pra fora, ao seu fim. Eu mereço uma segunda chance, e estou com ela segurando minha mão enquanto caminhamos rumo ao carro velho que comprei só pra fuga. Emily talvez descubra um dia o maior furo na história da sua profissão, mas sentirá o na sua própria vida, tão profundo quanto a dor que senti quando ouvi Matt sendo baleado, e ela não saberá de onde o golpe veio. Talvez ela se lembre de mim, mas definitivamente saberá o que a mãe de Rose sentiu quando raptaram a sua amada filhinha. Mas Emily não perdeu o filhinho caçula pois eu irei criá-lo com o melhor que uma mãe poderia dar, em outro estado, e se possível logo mais em outro país.

LOHAM
Enviado por LOHAM em 02/09/2021
Código do texto: T7334139
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