[Público] vs. [Somente eu]

Ele começou a sua vida numa década em que sabia nada sobre tecnologias. Começou não sabendo nem mesmo como manusear as primeiras televisões e rádios que surgiram e nesse meio tempo, em meio à necessidade de adaptação, atualmente ele não conseguiria mais abandonar o seu celular por mais de meia-hora. Teria que pegá-lo. Teria que conferi-lo, conferir os seus perfis, suas conversas. Sem isso, sentiria uma parte sua desfalecendo. É como se não existisse mais por inteiro. Ele frequentemente posta coisas, tem que postar pra mostrar que está vivo, que está bem, que está melhor do que todos, ou pior. Já postou fotos encenadas com a sua família, o seu filho exibindo um sorriso forçado, a sua esposa tentando mascarar o desconforto. As suas redes sociais em algum ponto passaram a saber mais sobre ele do que a própria família. Por um lado, é estranho ter a sua família adicionada online. Aqui é como um mundo privado à parte, que aqueles íntimos não deveriam saber. Nós somos mais reais aqui ou fora daqui? A internet abriu a ele portas, inclusive hoje é parte essencial do seu trabalho. Em algum ponto não mais satisfeito com a inevitável monotonia, ele procurava contatos com coisas novas online. E ele encontrou. Encontrou aquilo que nunca pensou que o satisfaria. E, neste instante, ele se encontra em fuga de uma viatura policial que o persegue com a sirene e a velocidade aturdidas entre os demais carros. Ele acelera mais. Suor escorre pelo o seu rosto afobado. Ele só pensa no seu celular, e então apanha-no, tremendo, quase derrubando nos pedais do carro. Uma gota de suor cai na tela enquanto ele tenta achar o contato do seu filho e discernir a direção. Ele já se desculpou com a sua esposa, em vão, mas o seu filho merece um perdão educativo melhor porque ele ainda não sabe como é a vida, e esta é a última chance de educá-lo. Ele necessita se desculpar, se confessar. Necessita ser, ao menos agora, um pai melhor. Ele abre o gravador. Começa a falar, tremidamente, e apenas desabafa o que lhe vem à mente desconcertadamente fervilhada. Ele permite suas emoções se embalarem àquela gravação sentimental. E então ele avista a viatura mais perto. E acelera mais intrépido. Ele necessita terminar a gravação. Pede perdão, chora entremeio, soluça, oferece conselhos que um pai experientemente sensato normalmente daria. Ele espera pela a sua vida que o filho lhe ouça e que não repita nenhum dos seus erros. Enfim ele termina o seu longo sermão e aperta o “Enviar”. Olha pelo o retrovisor externo, e um dos policiais está posto afora da janela com uma carabina apontada. Ocupa mal um segundo até ele discernir e o vidro detrás do seu carro se estraçalha e um guincho de dor paralisante atravessa as suas costelas. Ele perde o controle, de si, do carro. Apenas sente longínquo enquanto se capota e se estatela pelo asfalto roladamente. Mas ele não larga aquele celular, segura quase amassando-o. Os movimentos param, ele se sente tão quebrado quanto o carro, sente gosto de ferro na boca, vê sangue pingando de si próprio, mas não sente os seus movimentos mais, se desfaleceu como o carro. Ele está vidrado na tela do celular ainda agarrado em mãos. A sua mensagem ainda sendo enviada. Ele sente o seu coração desacelerando, a única engrenagem nele ainda funcionando. A mensagem ainda enviando. As suas batidas tão lentas quanto o badalar de um relógio. E então, na tela, “Erro ao enviar, tente novamente”. Ele força o seu dedão paralisado pra que se mova até a cuja opção, e então o seu coração trava numa batida. E a última visão que ele tem é da tecnologia que mudou a sua vida como também a destruiu, e que no momento que ele mais necessitava, humanamente, falhou consigo. Ele que falhou consigo próprio na verdade. A tecnologia e a internet apenas ajudou a revelar o quão falho e vil ele poderia ser. Lhe abriu portas que ele nunca deveria ter entrado. Portas pornográficas. Prostituíveis. E não mais satisfeito pelo o que o alimentava, ele buscou novas fontes. Até encontrar a pedofilia. Sustentar o seu vício lhe pôs num trilho que cedo ou tarde corria o risco de ser apanhado pelas luzes. E assim aconteceu. Fotos que lhe acusavam encontradas no computador do seu trabalho, e também uma das suas últimas entradas online na qual ele assistia a uma garotinha de dez anos drogada sendo exibida e violada numa webcam através de uma rede secreta pra sustentar o seu vício, e no qual a polícia investigava e chegou até ele. O último bem que ele poderia ter feito, aquela gravação, foi em vão. Ele teve muito tempo pra ter feito melhor. O filho saberá sobre ele pela a mesma tecnologia, saberá pela internet que tipo de pai ele era, aquele que nunca conheceu, e saberá que poderia ter sido uma das suas vítimas, e indiretamente foi. O filho já é uma vítima desse mundo virtual. O pai, por outro lado, em algum ponto não foi mais uma vítima. Atos imorais começam com meros atos, meros dígitos, meras palavras, usuais, despercebidos. Tudo começa com o mínimo imperceptível. Tenha cuidado, talvez você já esteja pondo o pé nesse trilho. Não está?

LOHAM
Enviado por LOHAM em 31/08/2021
Código do texto: T7332548
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