A Catedral do Conhecimento

Bintse Ykema estacionou a viatura oficial (um modesto DAF 66 branco, da Polícia Metropolitana) numa vaga próxima ao Departamento de Literatura da Universidade Van Tuinen. Havia se comprometido com seus colegas, Wagenaar e Holwerda, bem como com o comissário Pasma, a entrevistar os colegas de trabalho do falecido Roimer Veenstra. Levara também cópias do retrato falado feito pelo porteiro Piersma, a única pessoa no prédio a ver com clareza o rosto do visitante misterioso do professor.

Ykema - que concluíra apenas o ensino médio - parou um instante para admirar a imponente construção de pedra cinzenta em estilo neogótico. Havia inclusive janelas com vitrais, como se fosse uma catedral. E, num certo sentido era, pensou consigo mesmo, enquanto subia as escadarias de granito em busca do gabinete do decano do departamento; uma catedral do conhecimento.

- Estou procurando o decano Gribbert Dijkstra - informou, exibindo o distintivo com o grifo dourado para um guarda de segurança usando luvas brancas, no hall de entrada. Três corredores abriam-se a partir dali, sendo o central o mais curto e vazio; pelos demais, fluía um tráfego preguiçoso de estudantes entre aulas.

- Deve estar no gabinete - redarguiu o guarda, indicando o corredor central, atrás dele. - Última porta, fim do corredor; há uma placa de bronze sobre ela.

"Decano do Departamento de Literatura", dizia a placa. E havia também na porta de mogno, folha dupla, uma aldrava de bronze com uma cabeça de grifo segurando a argola, que era uma cauda de leão. Ykema deu duas batidas.

- Está aberta! - Disse uma voz feminina vinda de lá de dentro.

Ele entrou e deparou-se com uma antessala, contendo uma escrivaninha de cerejeira atrás da qual estava uma mulher de meia-idade.

- Pois não? - Indagou ela.

- Sou o inspetor Bintse Ykema, da Polícia Metropolitana - identificou-se, mas sem exibir o distintivo. - Fui eu quem ligou mais cedo, para marcar uma hora com o decano Dijkstra.

- Ah, sim - murmurou a mulher, erguendo-se. - O caso do professor Veenstra... um momento, por favor.

Deu duas batidas na porta atrás dela.

- O inspetor está aqui - avisou em voz alta.

- Que entre! - Veio a resposta lá de dentro.

A secretária abriu a porta para que Ykema passasse. O decano, que era mais velho do que ele imaginara, levantou-se com dificuldade para recebê-lo, mão estendida.

- Inspetor...

- Ykema, decano Dijkstra.

- Ykema, como Maurits Ykema? - Questionou o velho com ar matreiro, indicando uma cadeira estofada à frente de sua imponente mesa de mogno coberta de formulários da universidade e alguns poucos livros encadernados. Ykema riu, balançando a cabeça, sentando-se no local indicado.

- Quem me dera, decano... não, nenhum parentesco com esse Ykema.

- Ou não estaria trabalhando na polícia? - Inquiriu Dijkstra.

Ykema ficou pensativo.

- Bem... na verdade, eu gosto de trabalhar na polícia. Me permite conhecer pessoas interessantes...

E, abrindo a pasta de documentos que havia levado:

- Algumas delas mortas, infelizmente.

- O professor Veenstra.

- Sim, ele mesmo.

Retirou da pasta uma cópia do retrato falado e a entregou ao decano.

- Já viu este homem? Ele esteve no apartamento de Veenstra na noite do crime.

Dijkstra ajeitou os óculos de aros redondos sobre o nariz e franziu a testa.

- Não o conheço; é um suspeito da morte?

- Cremos que não, mas talvez ele possa nos dizer a razão dela.

- A forma brutal como o professor Veenstra morreu, foi um choque para toda a comunidade acadêmica - ponderou o decano, pousando o retrato falado sobre a mesa e retirando os óculos de leitura.

- Veenstra possuía algum inimigo conhecido... alguém preterido numa promoção ou coisa assim? - Questionou Ykema.

Dijkstra fez uma careta.

- Veenstra não era um homem capaz de acender ódios ou paixões; era um bom professor, nada mais do que isso. E promoções dificilmente despertariam os instintos homicidas de alguém nesta universidade... a maior parte da remuneração vem por tempo de serviço, não por promoção.

- É isso que nos chamou a atenção nessa investigação - admitiu Ykema. - A aparente falta de motivos para que alguém quisesse a morte de Veenstra; mas o que sabemos, é que quem o matou, procurava algo no apartamento dele.

Dijkstra estreitou os olhos.

- Reviraram o apartamento dele? Até onde eu saiba, o professor Veenstra não era um homem de posses.

- Aparentemente, não era dinheiro ou jóias que o assassino buscava. Ambos foram abandonados na cena do crime.

O decano abriu uma gaveta da mesa e dali puxou uma latinha redonda de goma de mascar, que estendeu para Ykema. Este declinou, com um sorriso.

- Estou tentando parar, obrigado.

Dijkstra ergueu os sobrolhos.

- E quem lhe disse que isso é um vício? - Questionou com ar mordaz, colocando uma pastilha na boca.

Ykema não refutou. O decano ficou algum tempo mascando, mergulhado em seus pensamentos. Finalmente, parou de mastigar e voltou-se para o policial.

- O que eu vou lhe contar é uma suposição... não tenho nenhum meio de comprovar que seja verdade; trata-se de um boato, uma história de corredor, que circula nesta universidade há muitos anos. Uma anedota, se assim quiser.

Como Ykema nada dissesse, o decano prosseguiu.

- Contam que depois de um seminário dado pelo professor Hane Wiersma sobre "A Vida de Dominik Panek"... conhece o livro, suponho?

- Já ouvi falar - confessou Ykema, embaraçado.

- Pois bem... o pessoal foi comemorar num bar próximo da universidade, e consta que Veenstra bebeu um pouco além da conta; ele não costumava beber, ressalte-se.

- Naturalmente - acedeu Ykema.

- E, bem... ele comentou algo sobre o seminário ter sido abaixo da crítica, porque Wiersma nunca havia tido a oportunidade de conversar com Dominik Panek.

Dijkstra ficou esperando uma reação de Ykema, a qual não veio.

- Desculpe... acho que não captei o ponto da anedota - admitiu Ykema.

O decano suspirou.

- Vamos lá; há quem diga que o livro foi baseado na vida de uma pessoa real... Dominik Panek. Mas não no sentido de ser uma biografia, mas como se toda a vida dele fosse convertida num livro... e quem estivesse de posse desse livro, o original, pudesse conversar com o próprio Dominik Panek.

- Está me dizendo que o professor Veenstra possuía esse suposto original? - Questionou o inspetor, sobrolhos erguidos.

Dijkstra balançou negativamente a cabeça.

- Veenstra nunca afirmou que o tivesse, ou que ele existia. Oficialmente, tudo não passou de uma conversa de... bêbado.

- E se alguém houver acreditado nessa lenda urbana? - Questionou Ykema. - Eu gostaria de aproveitar que estou aqui, e falar com esse professor Wiersma.

- Só não lhe diga que ouviu essa história de mim - solicitou o decano, erguendo-se. - Fale com minha secretária, ela lhe dirá como encontrá-lo.

[Continua]

- [11-08-2021]