ERA SÓ MAIS UM DIA... NO MORRO DONA MARTA
"É a guerra, neguin, nós somo a guerra, neguin
Sofremo a guerra, neguin, vivemo a guerra, neguin
No Chile é guerra, neguin, Brasil é guerra, neguin
Michigan é guerra, neguin, Nós somo a guerra, neguin"
'É a Guerra Neguinho'
- MC Marechal
Rio de Janeiro, 1998 - 21: 35 da noite.
Os três rapazes entraram esbaforidos na casa de Mariana, a parte baixa da favela já estava tomada por uma força-tarefa composta pelas Polícias Civil e Militar, e o BOPE, não tardaria em chegar.
Em circunstâncias diferentes, os rapazes teriam chegado à casa da amiga, que, aliás, era a namorada de Tico, sorridentes, alegres, festejando com aquele gingado jovial que lhes era característico. Mas, na atual conjuntura, assim que ela abrira a porta, eles se precipitaram para dentro, armados com pistolas calibres 45 e 9 milímetros e um fuzil AK-47. A moça, completamente estarrecida e assustada com a súbita invasão, ficou sem ação, com os olhos esbugalhados, vendo sem crer, a confirmação dos noticiários e plantões jornalísticos da TV, sobre o fatídico assalto ao banco Bradesco, na Voluntários da Pátria, que vitimara pessoas inocentes, e no qual seus amigos, e o seu próprio namorado, estavam envolvidos.
Mariana titubeou entre uma tentativa de fala, e a concatenação de algum raciocínio, mas apenas conseguia fonalizar sons inarticulados.
Tico atravessou em diagonal, sobre seu corpo, a bandoleira do fuzil que portava, pendurando-a no ombro esquerdo, e acudiu a namorada, tentando tranquilizá-la. Segurava o rosto dela com ambas as mãos, aflito, mas mirava-a com ternura.
- Mariana! Calma, calma! Pelo amor de Deus! Fica tranquila, meu amor. Vai dar tudo certo. Nós só precisamos de uma ajudinha para fugir pela floresta. E, daqui da sua casa, é o ponto mais próximo que temos para chegar lá. Aqui também foi o único refúgio seguro em que consegui
pensar... Por favor, me perdoa!
- Caraaa... – ela atalhou. Seus olhos se encheram de lágrimas. – que merda foi essa?! Vocês não precisavam disso... Você, então! Tu estuda, cara. Acabou de passar num vestibular, ia ingressar numa faculdade pública! O que você está fazendo da sua vida...?!
- Sem neurose, princesa! – disse "Duda Cavalão" se metendo na conversa do casal, pôs sua pistola na cintura, e trancou a porta atrás de si. – Todo mundo aqui estuda, ta sabendo? Mas é a vida, pô! "Deu ruim", "deu ruim!"
- “Deu ruim”. – Mariana remedou-o. – seu idiota! "A parada" não só deu ruim, mas acabou de foder a vida de vocês pra sempre!
- Amor. - Tico interveio - Nós só quisemos ajudar o parceiro, Andrezinho. O cara, cê sabe, é dependente químico, e estava devendo uma grana alta pro "Parrudo". Eles "iam" "passar" ele, se ligou?! - explicou.
Mariana baixou o olhar, suspirando profundamente, no fundo, ela entendia o dilema que os rapazes vivenciaram, optar entre o certo e o errado. Fazer a coisa certa ou deixar o amigo se estrepar. E eles, desde pequenos, assim como os três mosqueteiros, eram um por todos, e todos por um.
Nisso, Andrezinho, que carregava a enorme bolsa de viagem contendo o dinheiro roubado, jogou-a no chão, e atirou-se no sofá, iniciando um misto de crise histérica com abstinência, devido à sua dependência química. Fazia mais de 24 horas, que não consumia cocaína, e seu corpo começava a ressentir-se. Tremia-se todo, dando socos na cabeça, e deixou sua arma cair.
- Aí, ta vendo?! Tá vendo o que tu fez?! - Duda Cavalão irritou-se com Mariana, indo em socorro do amigo. Sentou-se ao seu lado, abraçando-o. – Calma “parcero”. Vai ficar tudo na paz!
Os ânimos estavam bastante exaltados, devido a gravidade e o perigo da situação, mas, como grandes amigos que eram, eles tentavam lidar com o conflito, da melhor maneira possível. Mesmo que, eventualmente, se desentendessem.
Silencioso, Tico fitava Mariana com ternura, "sua" Mariana, a “mina” que ele amou desde a primeira vez em que a viu. Conheceu-a ali mesmo no morro. Ambos tinham 12 anos de idade na época. Ela com os cabelos ruivos encaracolados, de uniforme escolar, mochila nas costas, a pele clara e linda, e aquele batom vermelho... Ele, negro, magrinho, cabelos cortados à maquina 02. Os dois trocaram significativos olhares, quando se cruzaram em uma viela da favela, indo em sentidos opostos. Ela vinha da escola, e ele estava indo. E foi nessa troca inocente de olhares, que o romance deles começou...
De um estalo, Tico "despertou". Apagou aquela lembrança repentina de sua memória, quando se voltou para os amigos sentados no sofá. Súbito, ele apanhou a pistola de Andrezinho caída no chão, e rumou em direção à saída.
- "Vambora" daqui, cambada! Essa porra não ta certa!
- Que isso, cara, enlouqueceu?! - Duda Cavalão levantou-se exaltado. – porra! Os "homi” tudo aí fora na nossa captura, e o dono do morro querendo a nossa cabeça, cumpadi!
- Não tá certo envolver a Mariana e a família dela nisso. - Tico argumentou. - Nós quem erramos. Anda, vamos cambar fora daqui!
Num rompante, Duda Cavalão apontou a 9 milímetros para Tico, que numa reação rápida, catou a bandoleira, puxando o AK-47, mirando-o para o amigo.
- Num fódi, porra! Num fódi! – Duda gritou. Os ânimos exaltados. Dedos coçando gatilhos... Sangue nos olhos... Será que a bela amizade de infância terminaria ali?!
Um apontava arma para o outro.
O clima tenso fez Andrezinho ter outra explosão emocional.
- Gente, parem! Pelo amor de Deus! – Mariana entrou entre eles, tentando apaziguar, e ficando sob a mira das armas. – Somos todos amigos, aqui. Não é assim que vamos resolver essa situação. Parem, por favor. Não vamos começar um tiroteio aqui dentro da minha casa, porra! Minha avó está lá dentro. Doente em cima de uma cama. Respeitem porra! – ela estendeu os braços, pondo uma das mãos sobre o cano do fuzil de Tico, e a outra sobre a pistola de Duda. Calmamente, baixando ambos os armamentos.
Quando ambos esfriaram os ânimos, fizeram as pazes, dando um aperto de mãos.
- Foi mal, desculpa, aí! - disse Duda.
- Tranquilo. - Tico replicou - ok, vamos ficar então, por enquanto. Até ver o que fazemos para meter o pé pra floresta. - ele decidiu.
Duda assentiu com um aceno de cabeça.
Nisso, tiros espocaram lá fora. Eram os combatentes da lei, que começavam o enfrentamento contra os traficantes, exigindo que os assaltantes do Bradesco fossem entregues.
Dentro da casa, os rapazes se puseram em alerta. Alguém começou a bater insistentemente na porta, e forçar a maçaneta. Instantes depois começou a gritar, chamando por Mariana. Era o seu irmão Rafael, de nove anos de idade. Quando ele entrou, deparou-se com os rapazes armados no meio da sala, apontando armas em direção à entrada. Assustado, correu a abraçar a irmã.
Tico sorriu para o garoto, para descontrair, indagando depois:
- E aí, rapá?! Fica tranquilo. Somos nós, “os três porquinhos”. Diz aí, como ta a comunidade lá fora? Tu viu os "meganha?" E os bandidos, tão malocados?
- "A chapa ta quente" lá fora tio Tico! – replicou o menino, ainda segurando o vestido de mariana. – tem polícia em todos os lados, e os bandidos tão escondidos.
- Ahhhh, garoto esperto. Valeeeuuu! – Duda avançou amistoso em direção ao menino, chacoalhando seus cabelos encaracolados.
Andrezinho, ainda sentado no sofá, sob os funestos efeitos da abstinência, cobria a face com as mãos e apoiava a cabeça sobre os antebraços, e, estes, apoiados nos cotovelos, sobre as coxas. Assim, reclinado, ele murmurava palavras desconexas, enfatizando que todos eles iriam morrer. Sua mente oscilava entre um flash e outro, rememorando passado e presente, e, por vezes, perdendo-se no mundo das ilusões... Nesse momento ele se lembrou de sua infância, quando perdera os pais ainda bastante jovem, e foi criado na comunidade, com muita luta e dificuldade por sua tia Léa. Ele juntamente com Tico e Duda Cavalão, eram crias da favela, e, desde sempre, desenvolveram uma grande amizade um pelo outro. Era como se os três fossem irmãos. Faziam quase tudo juntos. Iam para a escola juntos, jogavam futebol sempre no mesmo time, e torciam para o Mengão! Quando aprontavam suas travessuras, um sempre protegia e encobria o outro.
E assim foram crescendo, e suas amizades cada vez mais se fortaleciam. Até que Andrezinho experimentou maconha pela primeira vez, e ofereceu aos amigos, que, por uma dessas razões desconhecidas, acabaram fazendo o errado para não "desapontá-lo", e aceitaram, experienciando, assim, juntos, os seus primeiros cigarros de maconha. Tico e Duda, não foram muito “nessa onda”, preferiam tomar cerveja. Mas Andrezinho, experimentava de tudo. Até que conheceu a cocaína e por ela, “se apaixonou”. Quando não tinha dinheiro para comprá-la, ia até a boca-de-fumo e pegava fiado. Mas sempre pagou. Ele fazia trabalhos avulsos para arranjar dinheiro, mas quando ficava na fissura, e batia àquela “ura”, às vezes “sem um puto no bolso”, aí não tinha jeito, vendia o que tivesse de valor em casa, por uma bagatela, só para poder sentir a realização de ter um papelote entre os dedos. Daí as coisas começaram a piorar, e ele já realizava pequenos furtos para sustentar o seu vício. Mas com tudo isso, ainda estudava. Muitos anos depois (já no presente), quando ele estava no terceiro ano do ensino médio, enquanto Duda e Tico já haviam concluído os estudos, Duda trabalhava, e Tico enfrentara um acirrado vestibular para a UFRJ, passando em terceiro lugar para o curso de engenharia. Ambos os rapazes eram honestos, inteligentes e esforçados, tinham um bom futuro pela frente! Andrezinho admirava muito essas qualidades em seus amigos. Mas para ele mesmo, não... Não queria isso. No fundo, não gostava nem de estudar e nem de trabalhar! Estava mais para um “boa-vida”, mesmo. Não queria nada com a "Hora do Brasil", por assim dizer. Gostava muito de ir aos bailes funks da comunidade, e pegar as garotas... Queria ser o tal! Isso é que era vida para ele, mas, quando a sua tia, já cansada, de tanto “dar murros em ponta de faca”, e o rapaz, simplesmente, não tomar jeito e nem criar responsabilidade, colocou-o para fora de casa. Então, ele caiu de vez na vida do crime, e foi querer dar uma de esperto, “plantando no movimento” como “Vapor”. Adorava soltar àqueles foguetes 12x1 para sinalizar quando a polícia entrava na comunidade. Cedo fez amizade com Gilson o dono morro, o chefão do tráfico da favela, conhecido pela alcunha de “Gil Parrudo”. Sujeito cruel e calculista, que conduzia com mão-de-ferro o seu império, ou como ele mais "familiarmente" gostava de denominar: “a firma”. Sua dívida foi crescendo com Parrudo, pois como Vapor, Andrezinho, adorava “meter o nariz no pó”. Até que um belo dia, seu crédito foi suspenso, e ele teria de pagar sua dívida integral, com a Boca de fumo, para voltar a usufruir os benefícios das viagens espaciais concedidas pelo pó branco mágico...
E foi exatamente aí, que as coisas se complicaram para ele. Como nas letras dos "Raps", a vida de todos os heróis na favela, prenunciava o fatalismo.
"Todo mundo devia nessa história se ligar
Por que tem muito amigo que vai pro baile dançar
Esquecer os atritos, deixar a briga pra lá
E entender o sentido quando o DJ detonar"
"Era só mais um Silva que a estrela não brilha
Ele era funkeiro, mas era pai de família (...)”
E, assim, na maioria das vezes, era com um "RAP", estrondando nos graves das potentes caixas de som, que começavam os bailes funks no Dona Marta, regados à bebida alcoólica, bastante entorpecente, garotas seminuas, danças sensuais e sexo, muito sexo! Era óbvio que o tráfico de drogas na comunidade promovia os bailes como forma de fomentar o negócio. O "arrego", pago aos policiais corruptos, garantia a realização do evento e o livre comércio de drogas, sem quaisquer repressões ou interrupções por parte da “lei”. A circulação dos “filhinhos de papai” oriundos de diversas áreas da zona sul, e sua assídua frequência nos eventos de bailes, promovidos pelo tráfico, na favela, demonstrava a subjetividade da teoria de que berço denota caráter.
Para o 'Movimento', em si, o Baile Funk era espetacular, pois "legitimava" um estilo de vida, e comportamentos baseados numa subcultura pseudo revolucionária, dando a ideia de "empoderamento" e a falsa ilusão de poder aos jovens, e, melhor, ainda, era quando o tráfico mais arrecadava dinheiro, e recuperava um pouco do prejuízo dado pelas “autoridades”. Pois, para os "empreendedores" das drogas, o "evento" funcionava, também, como uma espécie de "compensação", ainda mais em épocas próximas às eleições, quando o governador tinha planos de reeleição, e resolvia mostrar serviço, sufocando o tráfico com operações policiais constantes, atrapalhando os negócios, apreendendo armas, drogas e eliminando alguns elementos aqui, outros ali, e prendendo outros tantos. Com isso, fragilizando o contingente, o arsenal, o poder econômico e o moral dos bandidos, que ficavam à mercê de invasões de quadrilhas rivais. Sim! O lucro obtido pelos traficantes, nos bailes funks nas favelas, também era uma forma de compensar o prejuízo causado pelo sistema. Não que o sistema fosse bom, observando pelo olhar da sociedade, mas apenas funcionava como uma espécie de prato, equilibrando forças no lado oposto da balança. Nesse modelo imperfeito de mundo em que vivemos, dentro do aparelho estatal estabelecido.
Andrezinho adorava os bailes funks na comunidade, curtia até altas madrugadas. "Se fosse preso", pensou, seria a diversão da qual mais sentiria falta. Lembrava-se dos últimos momentos de bonança que vivera, antes de atravessar a tormenta que se aproximava. Os flashes de lembranças continuavam indo e vindo. Agora ele vivenciava o último baile bom que curtira junto com os amigos, Tico e Duda. Era uma sexta-feira. Mas, infelizmente, àquela noite, seus parceiros precisaram ir embora mais cedo, pois Duda trabalharia no dia seguinte, no sábado, e Tico tinha um encontro com a namorada.
Na manhã de sábado, Duda se despediu da família, antes de ir trabalhar, tomou seu café apressado. Deu um beijo em sua mãe e sua avó na mesa da cozinha, e saiu esbaforido, descendo até o ponto da São Clemente.
Tico, por outro lado, dormiu até tarde, e, quando seu pai, Sr. Jordão, orgulhoso por ter um futuro universitário, um futuro engenheiro na família, finalmente o pôs pra fora da cama, sua mãe D. Clara já havia servido o almoço. A feliz família, mal sabia que tudo tenderia a mudar (para pior), ainda àquela tarde. Sob o augúrio de sua avó, D. Turquesa, que tentou deter o neto de sair de casa, com aquelas palavras que ainda deviam martelar-lhe na cabeça: “meu neto. Tô sentindo um aperto forte aqui no peito. Alguma coisa me dizendo pra você num ir na rua hoje. Num vai, "meu fio". Por favor. Escute a sua avó, fique em casa”. Mas Tico não dera ouvidos, dera? Obviamente, não! E foi assim que descobriu que Andrezinho devia muito dinheiro à Boca de Fumo, e iria ser morto caso não quitasse a dívida. Em meio à “crise”, o traficante "Parrudo" não só promovia os bailes funks na comunidade do Dona Marta, mas como também aliciava os jovens a cometerem assaltos, a fim de “fortalecerem o movimento”. Principalmente, quem estivesse em débito. E, justo naquele dia, quando foram buscar seu amigo na boca de fumo, Tico e Duda Cavalão foram persuasivamente convencidos pelo bandido a auxiliarem seu incauto amigo a cometer um assalto. Bom, era isso, ou o amigo morreria ali mesmo, na hora. Na frente deles. Não havia outra saída, senão topar. Os bandidos lhes forneceram os armamentos para o roubo. O resto era com eles.
E foi assim que tudo aconteceu.
Em pouco tempo, e em sua inexperiência, os rapazes planejaram de forma apressada, um audacioso assalto ao Bradesco da Voluntários da Pátria. Uma das poucas agências que não possuía a segura PORTA PANDA. Àquela porta giratória, cujo sensor travava automaticamente se alguém tentasse entrar com objetos de metais. O foco da ação deles, seria exatamente a fragilidade na segurança, relativa ao acesso à agência.
Sobre o assunto em questão, Parrudo apenas limitou-se a dizer, sendo enfático com os rapazes:
- Se fizerem merda, perderem minhas armas, ou trouxerem a polícia aqui na favela, a última coisa que vocês vão vestir serão àqueles pneus lá da desova. E o último cheiro que irão sentir, é o de churrasquinho de carne queimada com borracha! Entenderam? Tá dado o papo.
Bem, o resto nós já sabemos... A ação ocorreu logo na segunda-feira seguinte, e o noticiário deu ampla divulgação, sobre "o assalto à agência do Bradesco, onde um policial paisano tentou reagir com o apoio de um vigilante. Ambos foram baleados pelos bandidos, e morreram no local. Os marginais após recolherem todo o dinheiro dos caixas, um pouco mais de 300 mil reais, e logo em seguida empreenderam fuga em alta velocidade num Gol GTI, provocando vários acidentes, e ferindo diversas pessoas no trajeto. Ao que tudo indicava, os bandidos foram em direção ao Dona Marta, e se esconderam na comunidade". Repetia o noticiário televisivo como uma novena.
Algum tempo antes dos rapazes chegarem à casa de Mariana, “Quebraqueixo”, o testa-de-ferro do dono do morro, conversava ao celular com “Cabo Urtigão”, um PM corrupto mancomunado com o tráfico de drogas, e que os mantinha informados a respeito de operações policiais que iriam ocorrer na comunidade. A conversa orbitava em torno do incidente ocorrido no assalto, e que os elementos que se esconderam na favela, deveriam ser entregues vivos ou mortos à polícia. Caso contrário, eles iriam enfrentar “o inferno na Terra” àquela noite, com a incursão de uma força-tarefa das policias civil e militar na comunidade. O caso tivera uma forte repercussão, e a ordem de “intervenção” viera diretamente do gabinete do governador.
Quando encerrou a ligação, o bandido fez um muxoxo e apanhou o rádio comunicador HT, e contatou diretamente o dono do morro.
O traficante Parrudo nadava na piscina de sua luxuosa casa, situada numa área estratégica e fortificada, bem no alto do morro, com visão ampla e privilegiada aos diversos acessos à comunidade, quando de repente, um de seus soldados lhe trouxe o rádio, anunciando que Quebraqueixo queria falar-lhe.
- Na escuta, Quebraqueixo, prossiga.
- “Patrão”, “lombrou geral”. Os “homi” vão tampar o morro. Já tem "verme" formando na entrada da favela... Aqueles três “pela-sacos” fizeram merda da grossa. E correram pra cá pra se esconder. Tão querendo a cabeça deles. Qual sua ordem?!
- Puta que pariu! – Gil Parrudo esbravejou no rádio. – Ainda falei praqueles merdas! Seguinte. Dá uma geral na comunidade, descobre onde esses filhos de uma cadela estão escondidos e “passa o cerol”!
- Já é Patrão! “Vou dar o papo aos morador”, e chamar geral na “boca-de-ferro”.
- Ok! Me mantenha informado. Detalhe: quem estiver escondendo esses filhos da puta deve servir de exemplo. Estamos entendidos? Câmbio final. – concluiu Parrudo, soltando a tecla PTT. Devolveu o rádio ao seu segurança, que estava armado com um fuzil 762, e voltou a mergulhar na piscina.
Quebraqueixo, acompanhado por um pequeno séquito de bandidos armados até os dentes, começou a executar o plano para localizar os rapazes, percorrendo as ruas, becos e vielas da comunidade com um alto-falante nas mãos, exortando aos moradores que entregassem os fugitivos, caso contrário, sofreriam represálias.
Porém, o tempo passava... E nada de encontrarem os rapazes. A situação ficava cada vez mais tensa e dramática no Dona Marta.
Enfim, a força-tarefa chegou à comunidade, e os agentes invadiram, ganhando terreno, pelos becos e vielas, fazendo evoluções topográficas estratégicas, progredindo pouco a pouco, até atingirem o morro. O confronto das tropas contra os traficantes começara... Iniciava-se uma sinfonia mortal e ensurdecedora, além de assustadora para as famílias carentes que ali residiam. Não bastassem as condições sociais precárias de vida que levavam, estavam constantemente expostos a uma guerra insana, mutante, injusta e cruel. Muitas vezes desencadeada por interesses e forças poderosas, motivados por objetivos torpes e egoísticos.
Sob os clarões do fogo cerrado, Sargento Fidelis ex-BOPE, comandava um dos primeiros grupamentos que invadiu a favela, conduzindo seus homens até o topo da comunidade, entrando nas residências, à caça dos fugitivos, todavia, de forma urbana, sem “esculachar” os moradores, diretriz essa, inclusive, repassada aos seus subordinados. Com vasta experiência, conhecimento, e uma sensibilidade adquirida ao longo de vários anos de sua vida como combatente, ele agia de forma assertiva. Não disparava um tiro desnecessário, e sempre acertava o alvo que queria atingir, exceto uma única vez... Motivo, pelo qual, o honesto sargento, deixara o Batalhão de Operações Especiais da PM, após ter baleado uma criança, durante uma operação no morro do Turano.
Voltando ao momento presente, na casa de Mariana, Andrezinho lutava contra os efeitos da abstinência à cocaína. Tentando manter-se desperto e lúcido, reagindo ativamente às intermináveis digressões de sua mente, enquanto tomava um café bem quente e forte. Ao passo que, Duda Cavalão, andava aflito de um lado pro outro, com a arma em punho, alarmado com o foguetório lá de fora, além do barulho, cada vez mais próximo, dos helicópteros que apoiavam a operação na captura deles.
Tico se beijava com a namorada, em clima de despedida. Lágrimas e suor se misturavam, num misto de emoção, dor e esperança que os arremetia, enquanto a ameaça dos bandidos ou da polícia invadirem a residência, se tornava cada vez mais premente.
- Pessoal! Atividade! - Duda exortou. - Só precisamos chegar na mata, só isso! E temos que fazer isto enquanto ainda está escuro!
Após o toque do amigo, Mariana deixou a sala por um momento, e retornou em seguida, trazendo três roupões bege-escuros, que compunham o uniforme evangélico feminino da Assembleia de Deus, pertencentes à sua avó. Trouxera, também, perucas e maquiagem.
- Ta aí! Um para cada um! - ela disse, numa careta, atirando os uniformes sobre a mesa da sala.
Todos riram por um instante. E entreolharam-se fazendo caras e bocas.
- Gente! O que foi?! - ela espichou os olhos. - Eu sei... Esse é o plano mais absurdo que já concebi. E é por isto que vai dar certo! – Mariana tornou, otimista. – Mas não temos muito tempo. Vamos. Vistam logo os roupões, que irei maquiá-los e por as perucas!
- Nós vamos conseguir. – Tico afirmou confiante, vestindo o roupão por cima de suas roupas.
Após todos estarem disfarçados de “beatas”, Mariana repassou o plano de fuga que haviam acordado de antemão:
- Sigam pela floresta até chegarem na Rua Assunção, quando chegarem lá, vão até o condomínio onde a minha amiga Adriana mora. Ela irá ajudá-los. Vou ligar "praquela" doida e dizer que vocês estão “ferrados”, e indo pra lá. Sejam discretos, pelo amor de Deus!
Andrezinho que até o momento estivera mais apático, envolvido com seus pensamentos, abraçou Mariana com um sentimento de gratidão e tristeza ao mesmo tempo, por terem-na envolvido em suas embrulhadas.
- Pô maninha! – ele foi dizendo. – só você mesmo pra nos salvar! Em qual outra porta na favela poderíamos ter batido, e sido salvos desse jeito?! Você é nota mil!
Duda Cavalão soltou uma gargalhada.
- Salvou é pouco. Viramos até beatas, hahahaha...
Todos caíram na gargalhada ao mesmo tempo. Relaxando por um momento, e liberando àquela tensão, além de desanuviarem a enxurrada de pensamentos negativos e maus pressentimentos que lhes oprimia o peito. Fizeram uma prece, em seguida, Duda Cavalão saiu da casa acompanhado por Andrezinho, rumando em direção aos limites da comunidade que levava à floresta. Tico escondeu o AK-47 embaixo do sofá, não poderia levá-lo consigo, por ser grande, e nem ocultá-lo sob o disfarce de crente, com o risco de ser descoberto. Levaria apenas a pistola 45 embaixo de suas vestes.
Tico entregou a bolsa com o dinheiro à Mariana, que a guardou em seu quarto, em cima do guarda-roupas, camuflando-a com umas cobertas por cima. Prestes à partir, ele tentou persuadi-la a não segui-lo, mas, ela foi veemente em sua súplica, dizendo que só iria acompanhá-lo até o limite da favela, e ele, infelizmente, não pôde dissuadi-la.
Dez minutos após seus amigos terem saído, o casal deixou a casa, observando bem toda a movimentação externa, seguindo de forma sub-reptícia, na penumbra dos becos. Uma garota e uma “beata”, andando a passos apressados, em direção à mata. O vento, àquela altitude, soprava forte e frio em seus rostos.
- Não to gostando disso. – Tico resmungou de repente. – ta tudo muito quieto na favela...
- PSSSIIIT! – fez ela encarando-o com um olhar sério, para que fizesse silêncio. Já estavam próximos à entrada da floresta, a um passo da liberdade, quando ela ouvira um ruído no mato. Ambos entreolharam-se, e Tico se pôs alerta. Seu coração disparou de repente, quando o ruído se repetiu por mais duas vezes, e de forma mais evidente. Ele tentou sacar a pistola, mas já era tarde. De detrás do matagal, surgiu Quebraqueixo, acompanhado por dez soldados do tráfico, que os renderam, e qual foi a surpresa deles ao verem que seus amigos também haviam sido capturados, e já estavam bastante machucados, pois haviam levado uma baita surra dos traficantes.
Quebraqueixo sorriu irônico, gesticulando com os braços, fazendo menção para que seus cupinchas atirassem os prisioneiros ao chão.
Duda Cavalão e Andrezinho foram arremessados de forma violenta ao solo e chutados pelos traficantes.
- Olha só as “beatas do senhor” – ironizou Quebraqueixo em tom ameaçador. – Tão pensando que “nós” é trouxa?! Vocês trouxeram os “vermes” pra favela, seus vagabundos burros!
Mariana chorava abraçada a Tico, que soltou-a de repente, e acabou tirando sua peruca, já que o disfarce não servia mais para nada, e, adiantou-se, aproximando-se com cautela de Quebraqueixo, tentando negociar com o bandido.
- Porra Quebraqueixo! Deixa a gente a ir. Podem ficar com o "ganho" todo que a gente fez. Tá tudo escondido lá na casa da Mari... Diz pro Parrudo que a gente nunca mais bota os pés aqui...
- Deixar vocês irem, “docinho”?! - Quebraqueixo atalhou. - Tentaram fazer a gente de trouxa, e agora querem arrego?! Tomá no cu! Porra! – nisso o testa-de-ferro impiedoso, passou um rádio para Gil Parrudo, informando-o da situação. – Salve, Patrão! Pegamos esses merdinhas. Escuta só uma coisa. – ele aproximou o rádio HT, de Tico, em seguida, de pistola em punho, disparou um tiro à queima-roupa, na cabeça do rapaz. Seus olhos convergiram pra cima, para a testa, apontando em direção ao sistema nervoso central, e ele cambaleou e caiu morto no chão. Mariana gritou desesperada, chorando, e foi agarrada pelos soldados do tráfico, que bateram nela e a puseram de joelhos, sob xingamentos. O estampido do disparo a deixara atordoada, seus tímpanos zumbiam, sentia-se completamente grogue e enjoada com o cheiro nauseabundo da pólvora, e, ao mesmo tempo, percebia todo o seu corpo trêmulo. Soltou um jorro de vômito, e respirou ofegante, não podendo mais suportar o mal-estar súbito. Em sua mente, àquela vozinha não parava de dizer: "é o fim".
O rádio permanecera ligado, emitindo estática, e documentando ao “Patrão”, cada momento das execuções. Andrezinho se levantou de forma furtiva e tentou escapar, chegou a correr alguns metros, mas fora alvejado pelas costas por um balaço de fuzil, disparado por um dos bandidos do bonde de Quebraqueixo. O rapaz caiu agonizante, morrendo instantes depois.
Duda Cavalão, com o rosto colado ao solo, e os olhos cheios de lágrimas, via os corpos dos amigos, tombados, inertes e sem vida, e Mariana ajoelhada, implorando para viver, com a cabeça sob a mira de uma pistola. Aqueles instantes foram os mais longos que já vivera, sua vida passou diante de si, como numa tela de cinema, e, por um momento, por mais improvável que pudesse parecer, quando os sons ao seu redor pareceram desaparecer diante de seus sentidos, diante de sua consciência, ele se lembrou da aula de física quando o seu professor falou sobre a tal lei da relatividade. É estranho o que se passa em nossa mente quando estamos prestes a morrer, mas foi nisso que ele pensou. E, quando o tempo pareceu ter congelado, ou na melhor das hipóteses, estar “passando em câmera lenta”. Ele viu a amiga ser executada com um tiro na nuca e cair fulminada com os olhos esbugalhados, olhando para ele. Aqueles olhos grandes e bonitos, outrora cheios de vida! Pobre Mariana...
Em meio a gritos, xingamentos e imprecações, que ele mal ouvia, viu os bandidos tentarem empreender fuga, mirarem as armas para os lados, e, de repente, como num passe de mágica, também começarem a cair... Mortos!
A tropa do Sargento Fidelis, surgiu naquele trecho furtivamente, e surpreendera os traficantes, os que reagiram foram baleados. Alguns tomaram o rumo da floresta, conseguindo escapar por hora, mas Quebraqueixo, que se viu encurralado, tentou reagir, e acabou sendo abatido com um tiro certeiro na cabeça, disparado pelo fuzil do Sargento. Após verem os miolos de seu líder espalhados pelo chão, o restante dos bandidos que sobraram ali, acabaram por se render, largando suas armas, e levantando as mãos para o alto, sendo imediatamente presos pelos policiais.
- Sargento! Tem "mais um" vivo aqui. – gritou um dos PMs levantando Duda do chão, e o arrastando para frente.
- Algema ele e traz! - Fidelis replicou, em seguida, fez um gestual tático para que dessem mais uma olhada em volta. Os policiais buscavam também, partindo das descrições que possuíam dos suspeitos, uma identificação positiva, entre os mortos e capturados, se os assaltantes do Bradesco figuravam entre eles. Após confirmarem que dois dos assaltantes da agência estavam mortos, e que o terceiro elemento havia sido encontrado e preso por eles, a tropa conflagrou a segurança do perímetro, e empreendeu retorno, fazendo meia-volta.
Enquanto desciam o morro, Duda Cavalão, com os pulsos algemados às costas, olhava silencioso para o solo tingido de vermelho. Já perdera a conta de quantas vezes testemunhara àquela terra sangrando. Seja de sangue amigo ou inimigo. A dor profunda que procedia das perdas, deixaria marcas perenes nas famílias das vítimas, mas, para todos os outros, seria apenas mais um dia que seguia no cotidiano da comunidade.
(CONTO Nº 7)
AVISO:
ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO, QUALQUER SEMELHANÇA COM NOMES, PESSOAS, FATOS OU SITUAÇÕES DA VIDA REAL TERÁ SIDO MERA COINCIDÊNCIA.
Créditos:
Letras de músicas - RAPs (trechos):
- "É a Guerra Neguinho" - MC Marechal (trechos).
- "Rap do Silva" - Mc Bob Rum (trechos).