Letícia, uma detetive

Desde o dia daquele “experimento”, Letícia mudou. Aprendeu a ser mais focada e menos intrometida, com uma dedicação que, há muito não se via em seu semblante. Passou a andar mais séria e comprometida com as aulas, trabalhos e, especialmente, nos momentos em que iria a campo para pesquisar e entrevistar suspeitos, criminosos e analisar casos e perfis psicológicos. Literalmente, uma transformação da água pro vinho.

E assim, os dias passaram rapidamente. Com um piscar, já tinham se esvaído dois anos do curso e estava perto de se formar. Não sabia dizer quem estava mais empolgada se era ela ou Hector, um ilustre desconhecido que acabou por se tornar o seu mentor e, por que não o seu modelo de detetive? Afinal, já conviviam há um bom tempo e tinham trocado aprendizados e brigas o suficiente por uma vida. Não podia negar que ele era importante para ela.

Contudo, era quase impossível que ocupasse o lugar de Luís em sua mente e coração. Desde a sua convivência como madrinha e afilhado até a sua morte foram muitas emoções, que acabaram condensadas nas palavras não-ditas, no sentimento que ficou por demasiado no ar, mas por pouco na vida real, na expressão falada. Embora não falasse muito sobre o assunto, isso pesava muito para Letícia. Em alguns momentos, chegava a ver Luís em seus sonhos e durante alguns trabalhos. Gostava de pensar nele como seu “guia espiritual”, mas sentia-se envergonhada de comentar com alguém. Na verdade, até falou com Júlia, mas diante da sua reação preferiu resguardar pra si. Sentia-se melhor assim.

Todavia, a vida gosta de pregar suas surpresas. Eis que, no dia de sua formatura, as imagens de Luís seguiam vindo à tona, especialmente na hora de receber o título de detetive. O seu olhar fixo no horizonte captava uma imagem dele a aplaudindo, com um belo sorriso no rosto, coisa raríssima, mesmo quando estava feliz. Não conseguiu evitar que uma lágrima caísse do seu rosto nesse momento. Num ato reflexo, tentou disfarçar. Contudo, aquilo não passou desapercebido. Especialmente para alguém que fitava o seu rosto com retida atenção.

Hector notara que Letícia aparentava estar mais triste esses dias, embora não dissesse nada. Pensou que, talvez, tivesse relação com Luís, mas preferiu não dizer. Tornou-se um tabu, falar sobre ele. Então, foi para o caminho prático, embora fosse mais complicado: a observação. E eis que em uma dessas observações, viu Letícia falando sozinha. Conseguiu ser sorrateiro em uma dessas incursões, aproximando-se o suficiente para ouvi-la dizer: “Luís”. Suas suspeitas não estavam equivocadas no fim das contas. A questão era como abordar um tema tão delicado desses?

Hector decidiu aguardar até o dia da formatura, quando o choro de Letícia ficou claro. Esperou até o momento em que ela pegava o diploma para abordá-la. Fez de tudo para ser da forma mais sucinta possível. Convidou-a para um café, um local em que se sentiria mais confortável e, quem sabe, poderia falar com mais calma sobre isso. Precisava entender o que acontecia com a sua, agora, colega.

- Detetive Letícia, hein? Quem diria!

- Rá rá, até eu tinha minhas dúvidas.

- Pois é, foi difícil, mas chegamos até aqui!

- Sim, sim – dá uma risada de leve.

- Então, como se sente agora?

- Ah, normal, eu acho. Por que? Faltou alguma coisa lá?

- Bem, agora você é uma de “nós”. Então, acabou o recreio. Pessoas vão te passar casos difíceis para solucionar.

- Ah sim, sim. Bem, creio que estou um pouco ansiosa, sabe? Afinal, foi um caminho longo até aqui.

- Sim, com certeza. Um grande carrossel de emoções né?

- Com algumas contribuições suas também.

- Fiz o que deveria ser feito para você amadurecer.

- Nem no meu momento de glória, você é gentil?

- Sério, que você esperava isso?

- É, pensando bem, não. Se fosse, eu acharia suspeito.

- Nisso, estamos de acordo.

- Haha.

- E o que o Luís acha disso?

- Bem, ele.. Espera, hein?

- Corta o papo-furado! Eu vi você falando sozinha, aparentemente com ele. Há quanto tempo isso está rolando?

- Bem, não é nada…

- Não é nada que já dura meses. Vai, desembucha, o que tá pegando?

- Ai, seu chato! Tá, tá, eu tive essas visões há um ano, depois de uma aula do curso.

- E o que elas são pra você?

- Bem, surgem como mensagens de conselho, de dúvidas, como se fosse um guia, sabe?

- Compreendo. E isso te atrapalha de algum modo?

- Inicialmente sim, mas aprendi a conviver com elas. Espera, você não está assustado?

- Bem, eu já tive um problema parecido quando a minha primeira esposa faleceu. Passei 2 anos a vendo.

- Caramba!

- Pois é, mas aos poucos ela foi se dissipando da minha mente, especialmente quando mergulhava no trabalho.

- Hmm, e eventualmente parou?

- Sim. Não que eu não me lembre dela, mas agora consigo separar as coisas.

- Entendi.

- Uma coisa que me ajudou na época, também, foi fazer terapia. Quem sabe não seja um caminho pra você?

- É verdade, vou pensar no caso.

- Liga pra essa doutora aqui – Hector passa um cartão. Certeza que vai te ajudar.

- Agradecida, sinto-me melhor agora.

- Esteja à vontade pra procurar ajuda. Você tem um grande futuro pela frente!

Ainda conversaram um pouco mais e depois partiram. Cada um para o seu lado. Letícia estava se sentindo mais leve depois da interação com Hector. Sua sensação de solidão estava menor, afinal se ele, que era um detetive de sucesso e grande experiência passou por isso, ela também poderia superar. Por fim, decidiu voltar para a sua casa e descansar. A semana havia sido cheia.

Depois de dois dias, Letícia decidiu ligar para a doutora para marcar uma sessão. Estava tensa e ansiosa para aquele momento. Talvez tivesse mais problemas do que suspeitava. Talvez fosse só a expectativa por aquele momento mesmo. Vai saber.

Após as primeiras sessões, Letícia se sentia mais leve. Conversar com alguém sobre o fantasma que via, além de outras situações perturbadoras, ajudaram a acalmar a sua mente. Começava a relaxar e sentir que não se tratava de ser tudo sua culpa ou que deveria cuidar de tudo sozinha. Poderia contar com mais pessoas do seu novo cotidiano. Não era preciso ser solitária nem carregar o mundo. Vai ver era isso que Hector queria dizer.

Seguiu em terapia por três anos. Ao mesmo tempo que crescia a sua fama e atuação como detetive particular e consultora da polícia. Mergulhava cada vez mais fundo no campo, chegando a trocar tiros e participar de missões de emboscada, ora sendo comandada, ora liderando as missões. Definitivamente, era uma nova mulher.

Chegou a sair ferida de algumas missões, mas nem isso a abalou. Eventualmente, saiu da terapia, apesar de ainda ver e ouvir Luís falar em sua mente durante as missões. Decidiu que foi melhor assim, afinal sempre tentava se envolver com seus trabalhos. Dessa forma, trabalhavam “juntos”, e não teria mais do que reclamar. Ainda tinha a vantagem de Luís ser mais simpático em suas visões do que quando era vivo. Mas nem tanto, pra não estranhar.

Letícia também ganhara um sobrinho, fruto do segundo casamento de sua irmã Júlia. Agora, era ela quem tentava convencê-lo a participar das ações da polícia, contando histórias de suas missões e investigações pelo mundo. Sua irmã não gostava muito, mas seu sobrinho adorava aquelas visitas, pois tinha a impressão da sua tia ser uma “supermulher” capaz de tudo.

De certo modo, ele não estava errado. Afinal, Letícia passou por poucas e boas para chegar até ali. Todavia, ela preferia que não a chamasse como “supermulher” ou algo do gênero. Pra ela, bastava que a chamasse por Detetive Letícia, pois sentia mais familiaridade com esse nome e com todas as bagagens advindas dele. Nada mais justo, para alguém que, enfim, encontrou com o seu próprio destino: uma vida de investigação. E nada mais poderia pedir.

Fim.

O andarilho

Rousseau e o Andarilho
Enviado por Rousseau e o Andarilho em 28/06/2021
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