O mundo é uma caixinha de surpresas
Letícia estava, literalmente, num beco, sem saída. Ou melhor, estava numa sala sem saída. Presa numa cadeira, ela estava perto de entrar em um colapso, uma vez que a sua vida estava na reta, de uma forma nada agradável. Era uma sensação de medo e adrenalina que havia sentido poucas vezes na vida. E, por mais que fizesse das suas, aquele momento jamais teria passado pela sua cabeça. Mas, como várias vezes na sua vida, estava na mão invisível do destino. Será que sorriria pra ela novamente?
Ao seu redor, estavam circulando, pelo menos, quatro pessoas. Conseguiam sentir pelas pisadas no chão. Seriam homens, mulheres? Estariam armados? Todas essas suposições faziam o seu sangue ferver e não do bom jeito. Nesse momento, começava a fazer uma revisão da própria vida, pensando nos bons e maus momentos. E no meio dessas memórias, as imagens de Luís apareceram bem forte. Podia jurar que ele estava conversando com ela, entendendo algo como “Você não cair agora, né? Qual é, nem parece a mulher forte que eu conheço!”. Um sorriso se abriu no seu rosto, enquanto lágrimas escorriam pela sua face. Depois disso, começou a se debater e a gritar tentando se soltar.
Todavia, todas essas lembranças evaporaram quando uma luz foi ligada sobre sua cabeça e uma voz falou com ela:
- Então, você é a gata borralheira que estava olhando pela janela?
- Socooooooorro- continuava a gritar Letícia.
- Pode gritar, espernear à vontade! Essa sala é à prova de som. Ninguém irá te ouvir!
- O que vocês querem de mim? E por que essa máscara, seu covarde!
- Olha, ela tem coragem, rapazes! Quem diria não é?
Risadas ecoaram pela sala, incluindo o professor de Letícia, sem a menor vergonha.
- Já que você perguntou, eu quero saber onde está a grana.
- Grana? Mas que merda de grana, vocês estão falando?
- Ah, deixa de se fazer de sonsa, vai! A grana que o detetive deixou pra você!
- Dete… você tá falando do Luís??
- Menina esperta! Vai, desembucha! Onde que ele deixou a grana?
- Do que caralhos, você tá falando? Sei de nenhuma grana! Luís não era assim!
- Hohoho! Olha só senhores, como o amor é lindo! Até protege o amante, mesmo na hora da morte!
Gritos ecoavam pela sala num misto de zombaria e provocação.
- Bem, já que você não lembra, a gente vai te ajudar a recordar não é, rapazes?
- É o quê?
Nesse momento, os rapazes trouxeram um colchão, um balde cheio de água e uma toalha. Letícia olhava para tudo com apreensão e medo, sem saber o que a esperava. Num ato súbito fui cadeira foi derrubada e foi colocada uma toalha na sua face. Em seguida, jogaram um balde com água em sua face, simulando a sensação de afogamento. Ao esvaziar do balde, logo era preenchido para repetir a mesma ação. Tal fato foi repetido por cinco vezes, posto que Letícia seguia sem dizer onde estava a grana escondida por Luís, até porque não sabia de nada.
Todavia, assim como uma escrava em épocas de Império, Letícia seguia sofrendo. Após a tortura com água, seguiu-se para outro tipo de tortura mais “branda”. Forçaram-na a ver vídeos de presos sendo espancados, ameaçando fazer o mesmo com ela, caso não revelasse o esconderijo da grana de Luís. Isso não foi capaz de derrubar a convicção de Letícia que seguia firme e forte nas suas certezas, amparada pelas lembranças de Luís.
A tortura ia alternando níveis e foi se tornando pior até que exibiram um vídeo de Luís recebendo propina e fazendo acordo com assassinos procurados, que depois foram presos. Nesse momento, Letícia mudou a sua expressão, tornando a chorar. “Não é possível, isso não pode ser” pensava consigo mesma, enquanto via o que Luís fazia. Como a pensar em que ele podia tê-la enganado tanto assim, como desceria tanto, afinal qual era a sua verdadeira face? A do investigador devotado ao trabalho ou do malandro que fazia negócios no submundo? Estava confusa, sem saber o que discernir.
A confusão de Letícia era tanta que não notava o jogo feito pela gangue, evitando machucá-la muito, investindo em quebrar o seu psicológico para que cedesse e entregasse Luís, algo que seria impossível, uma vez que não sabia de grana nenhuma, tamanha foi a maneira usada por ele para iludi-la. Parecia ser o momento em que quebraria de vez a imagem de Luís. Mas só parecia…
Quando a gangue, achou que Letícia ia ceder e contar, mesmo que fosse mentira, onde estaria a grana de Luís, os ecos da voz dele surgiram forte na cabeça dela que, sem entender bem porquê, decidiu confiar naquelas vozes e não falar nada, nem que fosse uma mentira só para livrar a sua cara. Todos se entreolharam incrédulos e surpresos, mas ainda havia algumas torturas por fazer.
Novamente, o balde foi trazido, cheio de água. Dessa vez, a tortura consistia em afundar a cabeça de Letícia na água e levantá-la depois de 1 ou 2 minutos. A diferença é que agora, a gangue perguntava se ela era cúmplice de Luís para protegê-lo tanto, afirmando que não haveria necessidade disso, uma vez que poderia custar a sua vida. Letícia, mesmo bem cansada, só rebatia com um olhar cansado e uma única fala “naqueles, em que a gente confia com o coração, nenhuma razão há de derrubar”.
Toda aquela resistência começava a gerar confusão nos membros do grupo, que estavam ficando cansados de tantas torturas e nenhuma quebra. Pelo contrário, à medida que o tempo passa, a resistência dela seguia firme e forte, mesmo que seu corpo já apresentasse as mazelas de um cansaço e de um pesado estresse, algo incomum para quem não era do ramo.
Por fim, as torturas findaram e a gangue acabou com o jogo. O homem mascarado, enfim, retirou o seu artefato do rosto para o choque de uma aturdida Letícia.
- Parabéns minha querida.
- Hector? Mas que porra, por que essa merda toda comigo??
- Lição número um: instintos e lealdade.
- Hein?
- Eu queria ver até onde vai a sua lealdade e como você reagiria em momentos de pressão.
- E?
- E você passou.
- Mas e a história do roubo, das propinas do Luís que eu vi em vídeo?
- Ali, foram partes investigações passadas quando ele atuou como um infiltrado. Busquei nos seus arquivos da polícia e do que ainda tinha na sua nuvem pessoal, cujo acesso foi-me cedido pelo seu irmão.
- Puta merda, Hector! Precisava disso tudo?? Quase morri, cacete!
- Ué, você não disse que queria ser uma detetive? Estava apenas testando os seus instintos!
- Ah tá.. E aí?
- E aí que isso foi apenas um ensaio. Na vida real, a coisa complica e muito! Tá venda essa cicatriz na minha cara? Foi de uma tortura que passei.
Letícia olhou para aquilo com uma sensação de desgosto, sentindo o seu estômago embrulhar. Todavia, diante de tudo o que havia passado naquelas horas, aquilo era fichinha.
- Realmente, foi tenso isso aí.
- Imagine você que estará sobre a mira de missões assim o tempo todo. Ainda assim vai querer?
- Querido, eu fiz uma promessa pra mim mesma e... (olha para janela e tem a impressão de ver o fantasma de Luís, de pé, acenando com a cabeça e abrindo um sorriso de leve, concordando com as suas ações.
- E?
- E eu sou uma mulher de cabeça-feita e palavra forte. Portanto, é só você me dizer quando a gente começa que eu já estarei lá!
- Boa! Esse é o espírito!
- Por sinal, tira uma dúvida, antes que eu me esqueça.
- O quê?
- E o sósia do Luís ali. Como você me explica isso?
- O seu professor?
- Sim.
Nesse momento, Hector dá uma grande risada, enquanto chamou o seu professor para se juntar.
- Roberto, faz o favor de vir aqui.
- Pois não?
- Como você se parecesse tanto com o Luís?
- Ah, isso? Bem, eu estudei alguns vídeos que vi dele e os seus trejeitos e modos de agir, conforme foi me falado pelo Hector.
- Mas, como ficou tão parecido?
- Bem, aí você credencia ao pessoal da maquiagem que acertou no figurino (respondeu Roberto, enquanto tirava alguns itens do nariz e das orelhas para a perplexidade de Letícia).
- … Hector, você me paga!
- Acho que podemos dizer que estamos quites, né? Afinal, você me gerou muita dor de cabeça naquela missão!
- Ah! Seu idiota! Agora, eu viro detetive nem que seja a última coisa que eu faça!
- Era só isso que eu queria ouvir!
O andarilho
Continua...