Falcão, o desconhecido

Certo domingo, próximo ao início da domingueira, possivelmente com as moças já arrumadas em suas casas e com suas bocas fartas de baton, um enorme estrondo tomou conta da cidade. Assustados os moradores saíram à rua e puderam ver o salão paroquial despencando em chamas.

Esse dia ficou na história de Recanto das Flores, o nome da cidade, que de flor não tinha nada. A estiagem não era pródiga com elas.

Naquela pequena, solitária e seca cidade no interior do Piauí, o sol batia fundo no paralelepípedo e uma fumaça insistente inundava as ruas com grande frequência em razão do calor. Tudo era literalmente silêncio, exceto as domingueiras que aconteciam no pequeno salão da igreja, aos domingos no findar da tarde.

As tímidas moças passavam a semana costurando, a mão, seus lenços e adornos para enriquecerem os seus poucos vestidos e fazerem bonito na ocasião. Já sonhavam com casamento e amor para toda vida, com maridos dedicados que lhes dessem pelo menos um corte de tecido por ano. Eram felizes do seu jeito. Naquele domingo não foi diferente.

Dois meses antes, em final de dezembro, mais quente que o mesmo período em anos anteriores, começou a circular na cidade um homem alto, forte e, tirando as roupas maltrapilhas e a barba por fazer, poderia se pensar que fora um lord. Vagava pelas poucas ruas e dormia ao relento na praça, dentro do coreto. Nunca se viu alguém fornecendo comida para ele - todos tinham medo; mas era visto abrindo um saco de pão e dele tirando um sanduíche no meio do dia. Nunca se soube se ele havia feito contato com alguém. Era alguém em meio ao nada, já que nada significava, não tinha história, passado e vivia um presente incógnito.

Algumas crianças o apelidaram de “Falcão” e, desde então, assim foi chamado e, com o advento do incêndio, seu nome percorria as mesas dos poucos bares da pequena cidade com bochichos dos mais variados.

Naquele dia tudo aconteceu rápido demais e os presentes, atônitos, deixaram a pequena cidade mais silenciosa ainda. Não houve qualquer movimento para contenção das chamas.

O Prefeito, que estava dormindo no momento, foi chamado e imediatamente ligou para a polícia da cidade vizinha. O forte cheiro de álcool no local fez com que a perícia, se assim podemos chamar, determinasse que o incêndio fora criminoso.

Duas pessoas foram chamadas na delegacia: o padre que nunca concordara com as domingueiras porque as considerava profanas e o presidente da associação de moradores - tipo um segundo prefeito para explicar melhor. Ambos, sem pestanejar, apontaram Falcão como o criminoso, alegando que a cidade era pequena demais para desconhecerem a moral de todos os moradores.

O delegado de polícia, casualmente primo irmão dos dois depoentes, relegando a importância do caso e objetivando retomar o seu trabalho habitual que nada mais era do que tratar de uns poucos abigeatos, deu o caso por encerrado em dois dias, com visível satisfação.

Falcão foi preso e, a partir de então, passou a ter três refeições por dia e banho com água fria. A barba foi cortada, recebeu um macacão de gorgurão e por lá ficou, até vir a óbito cinco anos depois. Deixou somente um presidiário amigo, tão estranho quanto ele, que vez ou outra sentenciava para o nada: “meu amigo se foi, mas se foi também a sua angústia de ter sido condenado sem razão. Que Deus cuide da sua alma!”

Com a morte de Falcão sendo de conhecimento somente do presídio, o delegado ordenou a captura de seu único documento.

Algumas semanas mais tarde um soldado, seu fiel escudeiro, encontrou na sua mesa, embaixo de um amontoado de pastas desalinhadas, o documento com o nome verdadeiro de Falcão: Pedro Schumann, natural de Novo Hamburgo/RS. Bateu os ponteiros e entendeu o que uma cidade inteira, embora pequena, não havia entendido: o filho bastardo do delegado se chamava João Schumann, sobrenome pouco comum para que não fosse uma triste coincidência.

Escrito na Oficina "Provocações" - módulo 03 (Editora Pragmatha)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 19/05/2021
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