Cantos da meia-noite
- Ô Zé Roxo, você que vive contando aí histórias do Teddy Vieira, da família dos Carrero e outras, ouve essa que vou te contar, mas antes preciso molhar o bico. Grita com o balconista do boteco “Thunderbird vê se me traz aí um da barra”.
- São João da Barra?
- Pois é claro, meu bro, São Joaquim da Barra é que num é!
Esclarecendo ponto a ponto: essa história, das verídicas, pelo menos como foi contada, aconteceu em um boteco nas redondezas de Andradas; narrativa regada a conhaque de alcatrão, cerveja (a que tivesse mais gelada), cachaça alambicada por ali mesmo e muito torresminho. O Zé Roxo aí citado, apelido que ele abominava, mas não reclamava que “era pra não pegar” na verdade se chamava José Rochadale Fausto da Silva (melhor Zé Roxo!). O thunderbird ninguém sabia, corre boato que foi um filme ou desenho animado que ele viu e dizia que era o melhor que já tinha visto, de tanto repetir virou ele mesmo.
Passava em branco de sem graça que era.
Bom, mas o fato.
- Então, Zé. Teve uma vez aí que um produtor de espetáculos de circos de Sorocaba e região foi dar uma volta pelo interior em busca de novos talentos pra música caipira. Não queria mais pagar os “altos” cachês que o pessoal que já tinha um certo nome pedia e foi tentar achar, como ele dizia “nego bão e cantador que cobre pouco”. Saiu a garimpar interiorzão a fora.
Foi de trem, que essa história não tem data, mas é véia.
Na ida, em uma cidadezinha perdida que devia ter nome, mas que ele não registrou em canto nenhum, conheceu uma dupla que chamou atenção – Porrete e Paturi. Contratou (papel nenhum, só na palavra que é o que vale nesses casos - 90% pra mim, 8% pra vocês e 2% pros impostos).
Fechado! Deixou tudo apalavrado pra volta e saiu a campear outros talentos emergentes. Em uma boate bem frequentada conheceu Mara Morena que, apesar do apodo, era uma loira farmácia quarentona de tirar o fôlego (à meia luz, claro). Em um empório (do Zé da Luz) ouviu e gostou do que ouviu um tal de Afonso Pequeno (e era pequeno mesmo, daí o apelido; pouco mais que anão). Já de perto do Mato Grosso, trouxe um sanfoneiro que cantava como um curiango, Mané Etelvino das Dores (esse ainda estava em dúvida se mantinha ou se tirava do nome artístico o Etelvino, só Mané das Dores ficava mais dolorido, fazia mais sentido com as músicas que ele gostava. Embora, como todo bom sanfoneiro, fosse obrigado de vez em quando a tocar coisas alegres, no íntimo era um ressentido, mas isso era com ele, tinha lá os motivos dele que não interessavam a curioso nenhum).
- Thunderbird, outro!
- Da Barra?
- De onde ocê quiser, mas tem que ser de alcatrão que controla o colesterol, meu filho!
Na volta, já perto de casa, em mais uma parada – com a troupe toda embarcada – ainda encontrou Sinhana dos Prado, uma senhora idosa, cabelos branquinhos, já bisavó, mas com uma garganta de ouro. Pensou “vai dar trabalho, mas levo assim mesmo. Deixo cantar um tempinho e mando de volta”.
No trem, viagem longa, daquelas de dormir, acordar, dormir de novo. Jantar, almoçar, dormir, diversas audições pra afinar e conhecer o elenco.
E as músicas se repetiam incansavelmente – “Cabocla Teresa”, “Chico Mulato”, “Falso amor”, “Rio Pequeno” e outras e outras. O trem disparava noite a fora e lá dentro o som da viola e da sanfona, cada um tocava num tom.
No amanhecer de um domingo, um corpo ficou. Paturi!
Foi num foi, descobriram que havia sido assassinado. Peixeira na garganta, fatal.
Trem na estaçãozinha perdida. Chamaram o delegado. Interroga um e outro. Desconfia de um de outro (principalmente do parceiro Porrete; que não se perca pelo nome, pensou o investigador). Mas, quando o caso estava se complicando, se encaminhando pra insolúvel, com os olhinhos tristes Sinhana dos Prado se apresenta – fui eu Doutor!
Olhos se fixam na mulher, aturdidos todos. Surpreso, o delegado pergunta: mas qual o motivo minha senhora (lembrem-se, era uma senhorinha já entrada em anos)? Quem é a senhora?
Sinhana sorri. Um sorriso frouxo, pequenino!
- Sou a cabocla Teresa, doutor! E se prostra timidamente no assoalho da composição; mansamente conduzida, inda retoca baixinho, como se só pra ela cantarolasse - “minha vida é vingar todas elas"
Silêncio no boteco de agora, como se fora moda caipira, o narrado emocionou. Thunderbird, furtivamente, deixou escapar uma lágrima miudinha, mas logo se recompôs e tornou encher os copos que a vida verdadeira é amealhar moedas, ainda que seja pra enricar o patrão.