A Árvore do Conhecimento

 
O detetive Heitor Portela estava quase indo embora da delegacia naquela tarde de outubro quando a novata bateu na sua porta.

– Posso entrar, senhor?

– Pode, qual o problema? – Heitor começara com o pé esquerdo com a moça, mas depois de ver a atuação dela no caso do degolador em série aprendeu a dar mais ouvidos àquela menina.

– Chegou uma solicitação de investigação lá do IML. Pediram pra gente ir o quanto antes.

Heitor suspirou, cansado, alisou a careca e disse:

– Fazer o que, né?

Chegando ao local procuraram o encarregado das autópsias, que liberou o alerta para a Homicídios. Era um homem de meia idade, calmo, que respirava profundamente. O barulho daquela respiração pausada irritava Heitor.

– Boa noite, detetives. Recebi ontem e na semana passada dois corpos sem nenhum ferimento externo e sinais de infarto fulminante.

– E por que chamaram a gente? Querem prender o Ronald Mcdonald? – debochou Heitor.

O técnico de autópsia riu e preferiu mostrar a falar: puxando a gaveta da geladeira revelou um rapaz negro, de 18 anos, em perfeita forma física.

– Acho que o culpado não é Ronald Mcdonald, detetive. Os exames mostravam taxas de colesterol, triglicérides e glicose dentro dos padrões, e a necropsia do coração não mostrava nenhuma malformação. O da semana passada também, uma jovem totalmente saudável.

– Eles se conheciam? – perguntou Jane.

– Aí é com vocês, não tenho como saber. Há mais uma coisa: - disse o homem abrindo a boca do cadáver. Um mau cheiro emergiu, fazendo Jane torcer o nariz – A língua deles têm essa coloração azulada.

– E isso não é coisa de morto? – perguntou Heitor.

– É sinal de falta de oxigenação. É estranho estar concentrado na língua. Geralmente afogados e enforcados mostram esse sintoma de modo generalizado.

Heitor e Jane pegaram os relatórios da autópsia e no dia seguinte foram até a casa da primeira vítima: Samanta Borges. A família da menina morava em um condomínio de classe média. A mãe estava completamente abalada, dormia à base de remédios. Quem os atendeu foi o pai:

– Bom dia senhor Júlio. Lamentamos profundamente a morte de sua menina. Gostaríamos de fazer algumas perguntas, se não se importar.

O homem parecia acabado, com olhos inchados e olheiras. Perguntou confuso:

– Do que se trata?

– Gostaríamos de fazer umas perguntas sobre sua filha Samantha. – disse Jane.

– Por quê? Minha menina teve um infarto...

– Sua família tem histórico de problemas cardíacos, senhor? – perguntou Heitor, pegando um bloco de anotações no bolso do paletó marrom.

– Não senhor. Diabetes sim, câncer sim... Coração, não.

– Sua filha conhecia Diego Moura?

– Não, quem é esse?

– É outro jovem que parece ter morrido nas mesmas circunstâncias. Estamos investigando.

– Vocês acham que alguém matou minha filha? – inquiriu Júlio, os olhos enchendo de lágrimas.

– Calma senhor, estamos apenas seguindo uma pista, pode não ser nada. Podemos dar uma olhada no quarto dela? – perguntou Jane. O homem fez que sim e indicou o caminho. Detetive Heitor continuou fazendo perguntas e anotando.

Jane percebeu que a casa toda era muito bem arrumada, iluminada e arejada. A escada continha diversas fotos da família. Em uma delas a moça fazia acrobacias. No quarto da menina, perfeitamente em ordem, uma estante com troféus e medalhas de ginástica olímpica e natação. Uma escrivaninha continha livros de direito e filosofia. Pôsteres de bandas pop coreanas tomavam por inteiro a parede sobre a cama.

Saíram da casa da menina dando pêsames ao pai e seguiram para a casa do rapaz. Era uma casa de fundos em um bairro pobre. Quem atendeu foi uma mulher negra com aspecto abatido e olhos vermelhos.

– Quem são vocês? O que querem?

– Boa tarde senhora. Gostaríamos de falar com a mãe de Guilherme Silva.

– Sou eu. O que querem?

– Podemos entrar? Somos da Homicídios e gostaríamos de fazer algumas perguntas.

– Meu filho morreu, ele não fez nada! Vão embora.

– Nós sabemos, meus sentimentos. É justamente sobre a morte dele que gostaríamos de conversar. – disse Jane com respeito.

A mulher fitou a moça com os olhos cheios de água, assentiu com a cabeça e fez sinal que entrassem.

– Dona Tereza sua família tem histórico de doença cardíaca? – perguntou Heitor, já pegando o bloco de anotações.

– Que eu saiba, não. Mas também não conheci meu pai...

– Seu filho, o Guilherme, usava drogas? – perguntou Heitor. Jane estranhou, ele não perguntara aquilo para a família de Samantha, e além do mais o toxicológico dera negativo.

– Não senhor, meu filho sempre foi muito bom menino. Estudioso de verdade, conseguiu até bolsa na faculdade...

– Faculdade Católica São Vicente? – perguntou Jane.

– Essa mesma. Eu criei quatro filhos fazendo faxina, moça, o Guilherme era o melhor. Só me dava orgulho. Por que ele, meu Deus?!

– Posso dar uma olhada no quarto dele, senhora?

– Fica ali, na direita – indicou, chorando.

O quarto era pequeno e cabiam dois beliches. Um guarda-roupa pequeno com a porta meio torta, uma escrivaninha bagunçada com livros escolares, cadernos e livros de faculdade. Jane observou os livros e viu que um deles, “O Contrato Social”, de Jean-Jacques Rousseau, era idêntico ao do quarto de Samantha. Folheou o livro bastante grifado e anotado. Havia um carimbo de sebo: “Árvore do Conhecimento”, acompanhado dos dizeres “Leia Gen:17”.
Saiu do quarto com o livro em mãos, perguntou para a mãe se podia levá-lo. A mulher deu de ombros e eles saíram. No carro Samantha disse, mostrando o livro:

– Tenho uma pista! Samantha e Guilherme estudavam juntos, estavam lendo o mesmo livro, do mesmo sebo. Temos que ir até lá amanhã.
Naquela noite Jane se pôs a ler o livro. Que conexão poderia haver? Acabou pegando no sono no primeiro capítulo. Teve uma noite difícil, cheia de pesadelos, e acordou cansada e estranhamente ansiosa.
No dia seguinte detetive Heitor tinha novidades:

– Descobri que Guilherme e Samantha faziam uma disciplina em comum, o livro era leitura obrigatória. Um dos colegas encontrou vários exemplares baratos em um sebo virtual e a notícia se espalhou. A turma inteira comprou e adivinha só: tem mais um jovem internado. Já fiz o pedido do mandado, temos que ir.

O sebo ficava no centro comercial, segundo o endereço registrado na internet. Chegando ao local, porém, só haviam lojas fechadas e galpões abandonados na rua. Conferiram três vezes o endereço antes de arrombar. O local era uma simples sala com pilhas e pilhas de livros antigos e novos. Na salinha dos fundos os policiais encontraram uma série de livros devidamente empacotados para envio sobre uma escrivaninha, um computador com acesso à internet e um livro de registros. Heitor procurou alguém na rua para interrogar, só encontrou alguns mendigos. Eles disseram que só de vez em quando vinha uma pessoa naquela aloja, saía com uns pacotes e não falava com ninguém. Não conseguiam descrever a figura quase invisível que trabalhava ali.

Estava muito quente e abafado, o colete à prova de balas estava pesando mais que o normal. Jane teve uma vertigem e se apoiou em uma estante, derrubando alguns livros. Atrás deles havia um frasco com uma substância azulada com cheiro forte de flores. Ela tentou chamar Heitor, mas a voz falhou, a respiração estava difícil. Então ela caiu, e sua última lembrança foi a equipe correndo até ela.

Uma semana depois ela acordou na UTI. Tentou falar, não conseguiu, havia um tubo em sua garganta. Heitor estava ao lado dela e disse:

– Não tente falar, vai se machucar. O perigo já passou: como você encontrou o veneno, conseguiram te tratar a tempo. Dois rapazes da Universidade, porém, não resistiram.

Jane olhou assustada. Heitor estava abatido, porém continuou:

– Havia um homem envenenando as páginas dos livros no Sebo. Ele tinha uma lista de livros “proibidos” pela igreja e decidiu impregnar as páginas com veneno para punir quem os lesse. O pior é que ele enviou vários pelos correios, não sabemos ao certo quantos. Pode haver mais vítimas, pelo país todo.

Levantando-se, Heitor disse:

– Bom trabalho moça! Não descobriríamos sem você!
Jane se agitou, fez sinal que queria anotar algo. Heitor pegou o velho bloco e a caneta inseparáveis no bolso do paletó e colocou nas mãos da moça, que escreveu:
 
“Gênesis 2:17?”
 
Heitor franziu a testa, será que a novata era religiosa? Ela então escreveu:
 
“Carimbo sebo”
 
Ele deu de ombros, falou pra ela descansar que ele voltaria no dia seguinte. Chegando em casa, porém, a curiosidade falou mais alto. Procurou a velha bíblia da mãe, devia estar em alguma gaveta. Assim que encontrou, pesquisou o que Jane pedira e leu:

“Contudo, não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com toda a certeza morrerás!”

 
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 17/02/2021
Reeditado em 21/02/2021
Código do texto: T7186722
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