COPO DE LEITE
 
Detetive Heitor Portela tinha acordado daquela maneira miserável das segundas feiras. “Com o tempo você se acostuma a acordar cedo”, eles disseram, mas já se passavam quatro décadas de vida adulta e nada. Heitor tinha uma terrível hiperatividade nas madrugadas, o que lhe roubava completamente o sono. Nenhum professor da época de escola entendia como aquele aluno desleixado que passava a aula inteira dormindo conseguia tirar as melhores notas. É simples: passava as madrugadas estudando, lendo, jogando vídeo-game, qualquer coisa, menos dormindo.

Heitor mal havia preparado o café instantâneo, ainda meio adormecido, quando recebeu uma ligação da central:

– Fala logo Jane, por que me incomoda?

– Bom dia seu Heitor, encontraram mais um. Pediram pro senhor ir correndo. Rua Itabira número 56.

– Inferno! – disse Heitor como despedida antes de bater o telefone na cara da moça.

Jane era uma novata, muito promissora aos olhos da chefia, muito chata aos olhos de Heitor. Sempre pontual, sempre animada pelas manhãs, sempre lembrando e decorando cada coisa. A deixaram com a função de registrar a entrada de Boletins de Ocorrência, mas como ela havia por duas vezes solucionado o crime antes mesmo da investigação, apenas observando inconsistências nos relatos iniciais, a jogaram aos lobos do departamento de homicídios logo cedo. A função dela era recolher provas e anotar depoimentos, mas ela queria muito mais que isso, e estava pronta para galgar seu espaço.

Chegara ao local do crime cedo, antes do colega Heitor. A perícia fazia as fotografias de praxe, recolhia impressões digitais, etc. Heitor chegou uma hora depois, seu desalinho contrastava com as roupas perfeitamente passadas da novata. Apagou o cigarro antes de entrar na casa, um sobrado modesto em uma rua tranquila. Foi recebido com uma enxurrada de informações dadas por Jane:

– Bom dia, senhor! Bianca Reis, 21 anos, parda, solteira, dividia o apartamento com outras três colegas universitárias. Foi encontrada morta às duas horas da ma...

– Chega! Deixa eu acordar, pelo amor de Deus! Deixe-me ver com meus próprios olhos!

– Sim senhor, me desculpe!

Entrando no quarto, local do crime, Heitor vira mais uma vez aquela cena insólita: a moça amarrada a uma cadeira, com uma longa camisola antiquada, cabelo trançado para trás e degolada, banhada em sangue. Perguntou para a novata:

– O que temos dessa vez?

– Os Três Porquinhos, Senhor. – disse Jane pegando a prova etiquetada e embalada em um saquinho plástico.

– Então é ele?

– Creio que sim senhor, foi por isso que nos chamaram especificamente.

Vinte anos trabalhando na Homicídios, Heitor já tinha ficado amortecido com cenas de tiroteio e execução. Crimes com um tema em comum: tráfico, dívidas, jovens mortos e mães desesperadas. Aquela era uma cidade periférica, o índice de homicídios só crescia, mas agora havia uma coisa definitivamente diferente. Já era a quarta moça encontrada naquelas condições incomuns. A polícia estava no escuro de provas: nenhuma digital, nenhuma testemunha ocular, nenhum retrato-falado. A imprensa local, sarcasticamente, usou a expressão “Assassino sem rosto” para zombar da ineficiência da polícia. E com razão, pensou Heitor: tinham ficado comodistas e preguiçosos naquele departamento. Cada jovem preto e pardo que morria baleado era igual ao outro, cada família já estava resignada em sua tragédia desde o início, a polícia considerava aqueles homicídios endêmicos e ninguém cobrava a solução dos casos. Mas agora não: aquelas moças não eram um crime endêmico. Era uma epidemia, e como tal, devia ser contida. Mas eles não sabiam como.

Foi no terceiro crime que Jane notou uma prova até então negligenciada por todos: em cada cena de crime havia um livro infantil e um copo de leite. Heitor achava que era bobagem, descartou logo de cara:

– Qualquer um pode ter esses livros em casa, novata! Não inventa não, se você não encontrar uma impressão digital nesse livro ele não é uma prova!

– Mas senhor, todas as moças eram adultas e não tinham filhos nem crianças em casa. Por que teriam esses livros na cabeceira? Cachinhos Dourados, Chapeuzinho Vermelho, João e o Pé de Feijão... E tem o copo de leite também.

– O que tem o copo de leite? É crime beber leite, agora?

– Com todo respeito Senhor, quando foi a última vez que o senhor tomou um copo de leite puro?

– Quando eu era moleque.

– Exatamente, senhor... Se fosse só em uma cena de crime, mas já é a terceira. Tem alguma coisa envolvida.

Heitor fez um muxoxo desdenhoso, mas secretamente mandou analisar o copo de leite indicado pela novata. Havia indícios de saliva, e o DNA era masculino. Não chegava a ser uma prova definitiva, sua intuição já suspeitava que só um homem mataria daquela maneira. Mas resolveu dar mais ouvidos à novata.
Dessa vez a quarta vítima repetia todos os padrões, e mais uma peça se encaixava: a moça era universitária, assim como as anteriores. Resolveu então que sua próxima parada seria a faculdade da cidade. Mandou analisar o copo de leite da cena de crime quatro para constatar se o DNA batia com o da a cena três.

Chegando à Universidade, Heitor e Jane conseguiram um horário com o reitor, que se mostrou terrivelmente perturbado, mas também pouco surpreso:

– Desculpe, detetives, eu fico surpreso que tenham demorado tanto para me procurar. Desde que a primeira vítima morreu a faculdade toda tirou um dia de luto, quando foi a vez da segunda o burburinho já corria por aqui: quem seria a próxima vítima?

– E o senhor não procurou a polícia por quê? – Heitor quis saber.

– Porque no início eu achei que fosse exagero. Se um assassino procura moças jovens é natural que sejam universitárias. Mas a partir da terceira vítima, e com o surgimento de campanhas dos diretórios estudantis contra o feminicídio, foi impossível ignorar.

- Precisamos das fichas estudantis das moças. Qualquer coisa pode ser uma pista. A propósito: elas eram próximas entre si?

- Ao que tudo indica não, eram de turmas e cursos diferentes. Mas poderiam ser amigas de corredor, isso vocês precisarão investigar. Bom, darei autorização escrita para o livre acesso dos senhores aos documentos e dependências da Universidade. Qualquer outra coisa que eu puder ajudar, estarei à disposição.

O reitor prometera fazer uma campanha imediatamente para chamar os estudantes a dar depoimento na sede da delegacia. Heitor se despediu e decidira ir embora quando Jane sugeriu:

– Não acha que deveríamos da uma olhada por aí, senhor?

– Tenho mais o que fazer, garota! Já temos acesso aos documentos e aguardaremos os depoimentos na delegacia, o que mais pode querer?

- Conversar com as pessoas, saber mais. Alguma pista pode ser coletada por aqui.

- Bom, se você não tiver nenhum relatório para terminar na sede...

-Terminei todos ontem, senhor. Não se preocupe.

Jane resolvera caminhar pelo Campus: era um prédio novo, cercado de jardins e áreas de convivência. Havia cartazes para todos os lados chamando para eventos, apresentações artísticas e grupos de estudos. Os rapazes e moças pareciam, contudo, apressados e nervosos, olhando para todos os lados.

Em um pequeno jardim, próximo a uma estátua, um acúmulo de flores e velas chamou atenção de Jane. Era um memorial. Alguns estudantes próximos conversavam e choravam. Jane se aproximou e resolveu escutar.

- Eu não consigo acreditar, ela era tão nova... Ninguém está segura aqui! – a moça gordinha disse, esfregando o lenço no nariz muito vermelho.

- Eu também tô com medo. Minha família já me mandou voltar pra minha cidade, mas eu estou insistindo em terminar as provas finais primeiro. – a ruiva argumentou.

- Eu não vou esperar! Não mesmo! Eu estou apavorada...

- Com licença. Vocês conheciam a Bianca? – Jane resolveu se aproximar.
- Sim, ela era da nossa turma.

- E vocês suspeitam de alguém?

- Não, ninguém odiava ela. Era muito popular, sabe?

- Ela tinha namorado?

- Namorado não, mas ela estava ficando com o professor Carlos Augusto. – entregou a ruiva.

- Mentira... – se chocou a gordinha.

- Carlos Augusto, o professor de... – Jane estalou os dedos, jogando verde.

- De Filosofia!

- É, esse mesmo. – Jane colheu maduro, e continuou: - E era coisa séria?

- Ah, você conhece o Carlos Augusto... Pega todas, mas não larga a mulher. – a ruiva era uma língua-solta!

- Ele dava aula para as outras meninas que morreram também?

- Ele dá aula pra todo mundo em algum momento da faculdade. Disciplina obrigatória, uma chatice... – a gordinha disse, de repente modificando a expressão e completando o raciocínio: - Oh meu Deus, será que ele...?

- Claro que não, Carlos Augusto é um lord, jamais faria mal a alguém!

- Ah, mas você se lembra daquela vez que a menina ameaçou mostrar uns prints pra mulher dele e ele quebrou o celular dela no meio do corredor? Ele estava possesso naquele dia! E a menina... Era amiga da Rebeca, que morreu primeiro! Oh meu Deus, minha família está coberta de razão, eu vou embora hoje mesmo. Amanhã eu teria aula com ele!

- Você ta paranóica, Paulinha!

Jane resolveu fingir desinteresse e sair de fininho. Voltou à central e foi direto à mesa de seu parceiro:

- Seu Heitor, tenho uma pista!Precisamos de um mandado para investigar o professor de filosofia da faculdade, Carlos Augusto da Nóbrega. Segundo dados que eu recolhi ele tinha um envolvimento com a vítima Bianca Reis e também tinha dado aula para todas as demais vítimas.

- Baseado em quê?

- Em depoimentos que eu colhi, senhor.

- Esses depoimentos são oficiais?

- Não, senhor.

- Então trate de conseguir depoimentos oficiais ou outro tipo de prova, entendeu? Não posso simplesmente invadir a casa de um professor de Universidade!

- Mas, senhor... Eu tenho um bom palpite.

- Se tem um bom palpite jogue no Bicho! Não trabalho com palpites aqui, mocinha!

Jane aquiesceu, desanimada. Mais tarde, naquele mesmo dia, teve uma ideia: foi até o setor de provas recolher o celular da vítima para analisar. Após algum trabalho da equipe técnica para decodificar a senha do aparelho, ela conseguiu o que precisava: uma série de conversas entre a vítima e um “Carlos” em que haviam trocas de fotos picantes e conversas mais picantes ainda. Heitor se deu por satisfeito: intimou o professor para depor no dia seguinte.

E ele veio: um homem alto, grisalho usando um blazer escuro. Parecia nervoso:

- Eu não sei por que vocês me chamaram aqui.

- Para depor sobre o assassinato da senhorita Bianca Reis, conhece?

- Sim, ela foi minha aluna. Todos estamos chocados na Universidade.

- Temos motivos para acreditar que ela era mais que sua aluna, professor.

O homem empalideceu imediatamente, engoliu em seco e umedeceu os lábios antes de dizer:

- Não sei a que está se referindo, detetive.

- Gostaríamos de saber onde o senhor estava na madrugada do último dia vinte e sete, professor.

- Ora, estava em casa, com minha esposa, como sempre faço...

- Se ligarmos ela confirmaria seu álibi?

- Confirmaria, mas... isso é mesmo necessário?

- Absolutamente, senhor.

- Por que isto é necessário?

- Porque temos motivos para acreditar que o senhor estava tendo um caso com a vítima – Heitor lhe estendeu páginas e mais páginas de prints retirados do celular da vítima.

O professor gaguejou, esfregou o rosto com as mãos e por fim disse:

- Sim, eu estava tendo um caso, mas o que isso tem a ver com o assassinato?

- O senhor também está ligado às outras vítimas e precisamos estabelecer um álibi para as outras datas dos crimes.

- Como assim estou ligado?

- O senhor foi professor de todas elas, e segundo fontes também teria envolvimentos amorosos.

- Isso... Isso não é verdade. Pode investigar, eu garanto!

- Nós já estamos investigando. Precisamos confirmar seu álibi e recolher suas digitais e DNA.

- Pode ficar com meu DNA e com as digitais – o professor, em um ato impulsivo, arrancou um tufo de cabelos e estendeu para o detetive à sua frente – mas, por favor, não vamos envolver minha esposa nisso...

- Sem esposa, sem álibi... Mas fico contente, por enquanto, com suas digitais e seu DNA. E tire esse tufo da minha frente, não é assim que trabalhamos aqui! Jane!!! – gritou para a sala ao lado – Chame alguém da equipe de legistas aqui!

Jane chegou, juntamente com a legista. O homem suava em bicas, e após ceder o que era necessário, disse para ela:

- Fala pro detetive que pode ir na minha sala, lá na Universidade, toma a chave – ele a entregou – podem pegar tudo que for útil lá pra investigação de vocês.

A moça estranhou o ato, mas obteve autorização do chefe para ir ao local pela manhã.
 
A sala do professor não tinha nenhum indício ou prova que o ligasse aos crimes. Os arquivos confirmavam a informação de que todos os alunos passavam por ele. A análise do celular, também gentilmente oferecido, não mostrava nenhuma prova de envolvimento com as alunas: ele devia apagar os históricos diariamente, pensou. Resolveram aguardar as informações vindas da central de telefonia: havia troca de mensagens íntimas entre o professor e várias alunas, mas a lista não batia com as vítimas. Após a confirmação da localização do aparelho nos dias dos assassinatos, ele foi afastado como possível suspeito. Precisavam de novas pistas, pra ontem! A imprensa não dava trégua.
 
Frustrada, Jane resolveu andar mais uma vez pela faculdade. Havia um prédio com maior fluxo de estudantes, e Jane descobriu ser a Biblioteca. Resolveu ir até lá observar e fazer algumas perguntas. Era uma biblioteca universitária, com diversas estantes de filosofia, história, cálculo e biologia, mas não havia uma sessão de livros infantis. “Claro, o que eu estava esperando?”, pensou frustrada. Mas mesmo assim resolveu perguntar ao bibliotecário:

– Boa tarde. Vocês têm livros infantis?

– Boa tarde. Não temos, mas se você quiser trazer seu filho tem roda de leitura infantil toda quarta no saguão da biblioteca. As escolas públicas trazem as crianças e voluntários lêem pra elas.

– Voluntários de onde?

– Daqui mesmo, alunos e alunas. Isso conta créditos de horas complementares, sabe como é.

Jane teve um estalo, agradeceu e correu para a delegacia. Precisava contar para o detetive Heitor.

– Senhor, eu tenho um novo palpite, gostaria de sua permissão para investigar – e contou, detalhadamente, sua trilha de raciocínio
Depois do meio dia e de muito café, Heitor já estava menos ranzinza e quis ouvir com atenção.
– Acho que encontrei outra ligação entre as vítimas: elas são voluntárias num projeto de leitura para crianças. Obtive uma lista de voluntários do projeto de leitura na biblioteca, as vítimas estão todas aí. Acho que o assassino as escolhe na biblioteca.

– Isso faz sentido! Liguei para um amigo meu psicólogo lá de São Paulo. Ele disse que o assassino pode estar fazendo uma – procurou uns papeis, franzindo o cenho, colocou os óculos e leu - transferência freudiana. O fato de haver modificação da aparência das vítimas, vesti-las de maneira específica, ele pode estar tentando simular uma experiência com sua própria mãe. O leite e a leitura podiam ser uma rotina infantil, e ele tenta reviver tudo isso.

– Senhor e se ele estiver repetindo um crime da infância? E se a mãe dele foi assassinada?

Foram até o arquivo morto. Todos os arquivos de crimes com mais de dez anos estavam lá, sob toneladas de poeira e ácaro. O setor de informática prometera digitalizar tudo, mas até agora só os mais recentes haviam sido escaneados. Pediram ajuda de mais três detetives para a pesquisa: assassinato de mulheres por degola, solucionados ou não.

Detetive Heitor achou que seria fácil, mas se impressionou com a quantidade de casos de assassinatos femininos, sobretudo anteriores à década de 90: esfaqueadas, surradas, baleadas, sem contar os acidentes suspeitos como quedas de janelas e escadas. O suspeito quase sempre era o marido ou namorado, mas as investigações quase sempre eram arquivadas por falta de provas. Lamentou muito viver naquela cidade, naquela sociedade, e não pode fazer nada para mudá-las. Só não deixaria que daquela vez fosse igual!

Terminaram o dia com duas caixas de arquivos, dor nas costas e rinite alérgica. Jane se ofereceu para fazer serão analisando os arquivos, e ele aceitou. Lá pelas duas da manhã, ela encontrou:

– Aqui! Elizete Braga, 26 anos, degolada. Suspeito: Francisco Braga, 37 anos, seu marido.

Ela mostrou as fotos do caso de 30 anos trás. A mulher estava com uma camisola e usava uma trança para trás. O marido negou, alegou um álibi e nenhum outro suspeito foi levantado. Havia uma testemunha ocular: o filho de sete anos de idade. Mas ele dizia não ter visto nada sobre o crime por estar dormindo na hora. O nome do menino: Renato Braga.

No dia seguinte descobriram que Renato Braga trabalhava como Assistente de Serviços Gerais na Faculdade e foram atrás de um mandado. Encontraram o endereço dele, bateram e ninguém atendeu. Foi fácil arrombar a casa: uma quitinete escura e com cheiro de mofo. No quarto do homem encontraram sobre uma estante uma coleção de antigos livros infantis e um diário onde o último registro era:

“Leia pra mim mamãe. Não consigo dormir. Tenho pesadelos, ouço gritos. Mas quando você lê afasta o monstro dos pesadelos por um tempo. Por favor, leia uma história. Você não terminou aquela dos Elfos sapateiros...”

Enquanto estava lendo o diário o telefone de Heitor toca:

– Senhor, temos outra cena de crime

Correram para o endereço, a cena idêntica à demais. A nova vítima era a moça ruiva com quem Jane havia conversado. Na mesa de cabeceira, um copo de leite pela metade e um exemplar de Os Elfos Sapateiros.

Renato Braga agora é um dos homens mais procurados pela polícia, acusado por cinco homicídios. Agora a imprensa não o chama mais de “Assassino sem Rosto”, sim de “Maníaco do Copo de Leite”.

 
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 02/11/2020
Código do texto: T7102517
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