Recordações
Volta no tempo. Cinco anos atrás. Luís ingressava num grupo de apoio a viciados em jogo, graças a intermediação de seu irmão Ezequiel, assustado após ele vender o carro, as cadeiras de casa e quase empenhar o fogão para bancar o vício. Apesar de todas as reclamações, conseguiu arrastá-lo para ser atendido.
Contrariado com a situação, Luís ainda fez confusão e arrumou brigas no local, mas acabou se fixando após alguns meses de convivência. Não era o primeiro e, tampouco, seria o último a arrumar confusão, num local em que um dos requisitos para ser habilitado era estar num momento de turbulência.
Passada a turbulência, começou a assimilar melhor a ideia do grupo, da convivência, como algo que poderia contribuir para a sua melhora em todos os aspectos, inclusive evitando o assédio de agiotas, como o seu irmão tantas vezes, reclamava. E foi durante esse princípio de calmaria que teve um encontro decisivo para o resto de sua vida.
Era uma quarta-feira à noite, dia das reuniões do grupo. Mas aquele não era uma reunião como todas as outras. A coordenadora chamou Luís de canto, pois tinha uma "surpresa" reservada para ele.
- Olha Luís, como você está aqui conosco há um bom tempo, fazendo bons progressos, creio que é chegada a hora de você ter uma pessoa para acompanhá-lo e dar suporte para quando vierem os dias ruins, em que você se sinta tentado a ter recaídas.
- Eu achei que essa fosse a função de vocês.
- Aqui, a gente dá suporte para você se recuperar e organizar a sua vida. O que eu estou te dizendo agora, é que você terá uma madrinha, alguém pra te acompanhar nesse processo.
- Hein? Eu vou ter uma "babá", agora é isso?
- Não se trata de uma "babá", é alguém com quem você pode conversar e relaxar, quando estiver passando por problemas. É algo que vai te ajudar.
- Ah... não sei se quero isso, dona. E quem seria essa pessoa?
- Que bom que perguntou. Letícia, querida pode vir aqui?
- Claro, Raquel. Oi, tudo bem?
- Olá e não. Não preciso que você me acompanhe.
- Luís não seja tão rude, você nem sequer a conheceu...
- Raquel, eu estou bem, não preciso de babá pra mim, tá? Prometo que não falto às reuniões.
- Mas, Luí...
Nesse momento, Letícia toma a dianteira da conversa, fazendo um gesto para Raquel de que ela irá conduzir daquele momento em diante.
- Ô bonito, você não vai nem dizer qual o vício que te levou pra cá?
- Jogo. Eu tenho problemas com jogo.
- Ah, perfeito.
- Já acabou? Posso ir?
- Você topa um desafio?
- Desafio?
- Sim, se eu beber mais que você, serei a sua madrinha. Se você beber mais que eu, pagarei a sua conta por inteiro e ainda um jantar.
- Hmm. Devo supor que o seu vício não foi bebida, então.
- Sim ou não?
- Ok, eu topo. E como prova de boa-fé, deixo você escolher o local e a bebida.
- Feito, vamos de vinho na Hacienda del Pedro, amanhã às 20h.
- Ok, eu encontro com você lá.
E assim foram. Para a surpresa de Luís, Letícia era boa de copo e de prosa, ganhando a disputa com facilidade. Mal sabia Luís que estava embarcando em uma jornada de muitas venturas e encontros naquele dia.
Presente. Letícia fica em prantos ao saber que Luís está entubado, na UTI, vivendo na dependência de aparelhos. A situação se agravou bastante devido a infecções sofridas no tiro e no local da praia onde se encontravam. Letícia tentava distrair sua mente, recordando do primeiro encontro de ambos, mas toda aquela situação a deixava angustiada. Era algo inédito para ela, uma vez que nunca cogitara a morte de Luís, alguém com quem desenvolveu um grande afeto.
A impressão que dava era de sofrer mais que o seu irmão, Ezequiel, cujo feição permanecia calma, tentando consolá-la. Às vezes, pensava se ele também estaria sofrendo naquele momento. Todavia, preferia não perguntar. A dor da perda é diferente para cada um.
Foi nesse momento caótico de dor, perdas e incertezas que Letícia tomou um susto, quando Ezequiel tirou um caderno pequeno de sua mochila, intitulado "minhas pistas, processos e conquistas". Ficou curiosa ao ver aquilo e pensou se teria algo a ver com Luís.
- O que é isso, Ezequiel?
- Isso? Bem, isso aqui é do meu irmão. Contém todos os casos que ele trabalhou nos últimos cinco anos. Anotações, observações, minúcias, tudo o que foi determinante para as suas pesquisas.
- Tá, mas por que você tem isso em mãos?
- Faz dois meses, Luís se encontrou comigo e me repassou. Disse que temia pela sua vida, e que, caso viesse algo a acontecer com ele, deveria te repassar.
- HEIN? O que você está querendo dizer com isso?
- Ah e também tem mais uma encomenda.
Nesse momento, o médico de Luís chega para dar notícias sobre o estado do paciente. Traria consigo novas esperanças ou preparos para uma despedida?
O andarilho